Por Leonardo Davino*
terça-feira, 11 de agosto de 2015
LENDO A CANÇÃO
Ao investigar como "a moderna canção popular criada para atender ao gosto da gente urbana é geralmente contemporânea da extensão dos temas de amor às camadas baixas das cidades", José Ramos Tinhorão, em As origens da canção popular, anota que, em sua gênese, a canção de amor optou por adotar apenas o que "de lírico aparecia nas narrativas cavaleirescas".
Segundo o autor, "ia ser exatamente desses versos épico-líricos saídos das antigas gestas, que iam surgir sob a designação agora simples e curta de romances, as breves narrativas sentimentais logo aproveitadas para glosas (...) como canção de amor".
"Canções de amor / servem pra chorar as mágoas / e esquecer a dor", diz o sujeito da canção "Chuva ácida", de Erasmo Carlos e Nelson Motta, diante do instante exato da separação, do "fim do fim" de uma relação que "foi tão longe / foi tão fundo".
Guardada no disco Rock'n'roll (2009), "Chuva ácida" é metacanção que se desdobra para dentro: é o resultado, a tradução daquilo que foi uma relação erótico-amorosa. Se o amor se vai, fica a canção, como prova de que ali - no tempo/espaço ficcional da canção - existiram dois seres que se amaram enquanto o amor durou.
A canção documenta o que não pode ser esquecido. "Se o amor se vai / quanta nostalgia / na canção que um dia / só nos fez sonhar", diria o sujeito de "Se o amor se vai (Si el amor se va)", de Roberto Livi e Bebu Silvetti, na versão de Roberto Carlos e Carlos Colla.
Ao construir a canção o sujeito de "Chuva ácida" retoma a própria individualidade: não sabemos o que o outro (ouvinte/destinatário) pensa e sente diante da canção. Juntando elementos do que foi e do que poderia ter sido a vida em comum, o sujeito glosa a história dos dois. Agora, porém, sem afetações lírico-sentimentais.
O lance agora é hard: "Pra te esquecer / eu faço uma canção de amor / que vai tocar pra sempre / dentro do seu coração", diz o sujeito que, ao eternizar (e se despedir de) o amor na canção, "amaldiçoa" o outro a ficar preso a ele para sempre.
Ou seja, enquanto para o sujeito a canção é o fim, mas também o início de uma nova vida, para o outro a canção representa o (re) começo torturante da solidão, afinal o outro não terá mais quem lhe cante. Dito de outro modo: o sujeito de "Chuva ácida" se basta, pois é cantor de si, enquanto que o outro, sem voz própria e sem um cantor, perde a vida.
Ao invés de um "beijo molhado de luz", o que sela o amor aqui é a canção - a chuva ácida na despedida ferina: suas gotas corrosivas - "que nem o tempo apaga / como um hit popular".
"E quando se esquece de mim, lembra da canção", sentencia o sujeito irônico e forjadamente auto-suficiente da canção de amor rock'n'roll - balada no asfalto - feita para doer no outro, ficar no corpo como tatuagem - "se você souber perder / vai saber ganhar" - cantada na voz significativada de um roqueiro: Erasmo Carlos.
***
Chuva ácida
(Erasmo Carlos / Nelson Motta)
Chuva ácida
dia frio sem sol
nossa história
chega ao fim do fim
foi tão longe
foi tão fundo
mas agora
é hora de dar bye, bye
Sei, que tudo que se quer do amor
tudo que há de bom na vida
se você souber perder
vai saber ganhar
receber
sem chorar
sem nada pedir
Canções de amor
servem pra chorar as mágoas
e esquecer a dor
pra te esquecer
eu faço uma canção de amor
que vai tocar pra sempre
dentro do seu coração
e que nem o tempo apaga
como um hit popular
tocando
lembrando
de nós
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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