Por Leonardo Davino*
Por vezes, o acaso ajuda o cancionista a fazer uma canção. É tropeçando nos astros que o cancionista distraído capta inspirações. Nesta perspectiva, ele é a folha que traga e traduz a luz do sol. Traduzir é burilar as ideias, as inspirações.
E é aqui que entra o trabalho - a (trans)piração - de todo bom cancionista. Afinal, como transformar um pensamento em canção? Como dar contornos de naturalidade a algo que, na essência, é uma interferência no modo natural de expressão da língua. O resultado do gesto cancional deve chegar ao ouvinte como que por acaso. Mas, como fazer a palavra falada funcionar como palavra cantada?
"Eu tenho sede de aromas e de sorrisos / Sede de cantares novos". Estes versos que a certa altura atravessam a audição do disco Religar (2010), de Leo Cavalcanti, dizem muito da artesania de toda canção. Cantar é renovar-se, reposicionar-se na vida: afirmar a existência.
O sujeito da canção "Acaso", de Leo Cavalcanti, afirma o carater descompromissado com que as canções, os aromas e o amor chegam até nós. O sujeito canta o quanto sua vida era "fácil, feliz e convencional" até que o outro - a canção? - chegou e (per)turbou.
Dialogando com o sujeito da canção "Distração", de Christiaan Oyens e Zélia Duncan, o sujeito de "Acaso" afirma: "se você não se distrai o amor não chega".
Confundido com o canto existencial e afirmativo da vida, o amor chega e molha a folha seca: que novamente fica verde novinho em folha e se reposiciona no mundo. O amor existe e é, aqui, uma canção exaltação. O sujeito descobre a beleza do acaso.
Mas tudo é intenso e frágil: "Por um triz já não sou o mesmo ser", diz o sujeito. O outro - despoletador das novas verdades - é a confirmação "que o amor não se prevê". Jogando com as instâncias do destino e do acaso, o sujeito de "Acaso" se permite viver.
O acaso lhe mostra que a vida não é "letra de canção atonal, presa no refrão, sem ter espaços a preencher com corais pra fazer o universo se surpreender". Afinal, há canções e há momentos: algumas e alguns oferecem felicidade.
***
Acaso
(Leo Cavalcanti)
Foi mesmo assim, sem querer
Que em você tropecei
E que esse tombo
me desarrumou de vez
Tudo era fácil e feliz
De forma quase infantil
E a vida seguia tão convencional,
Sempre igual, sem motivação
Você apareceu pra molhar meu sertão
E mostrar que nem tudo tem previsão
Mas agora eu sei, o acaso faz a lei
Por um triz já não sou o mesmo ser
Tudo o que sei é que o acaso é meu rei
Foi você quem mostrou, me fez saber
Que o amor não se prevê
Dizem também por aí
Que o acaso é algo menor
Que o destino é escrito e o tempo
o sabe bem de cor
Como um roteiro a seguir
Sem dedos de improvisação
E a vida seria letra de canção
Atonal, presa no refrão
Sem ter espaços a preencher com
corais pra fazer
o universo se surpreender
Mas agora eu sei, o acaso faz a lei
Por um triz já não sou o mesmo ser
Tudo o que sei é que o acaso é meu rei
Foi você que mostrou, me fez saber
Que o amor não se prevê
Foi mesmo assim, sem querer
Que em você tropecei
E que a felicidade teve a sua vez
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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