quinta-feira, 26 de março de 2015

HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO CELEBRA 80 ANOS AFIRMANDO FASCÍNIO PELO FORA DO COMUM

Com livros e série de shows, o produtor, poeta e letrista diz ser fã da estranheza


Por Leonardo Lichote


Criador. “Desde criança, em meu primeiro emprego, tento manter uma margem de felicidade no meu trabalho” - Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Às vésperas de completar 80 anos, no dia 28 de março, o produtor, poeta e letrista Hermínio Bello de Carvalho repassa sua vida em casa, cercado de parte do seu vasto passado — o manuscrito de “Piano na Mangueira” com dedicatórias dos autores Tom Jobim e Chico Buarque, fotos de seu mestre inspirador Mário de Andrade (“O verdadeiro nacionalismo foi ensinado por Mário de Andrade: ter os ouvidos atentos a tudo o que há de bom no mundo”, disse certa vez), um vaso de vidro que traz estampado o poema que Drummond escreveu em sua homenagem e é cheio até a boca de peões e bolas de gude, a placa da parede da Taberna da Glória (“As mercadorias expostas são para uso exclusivo da casa”), onde ele ouviu Clementina de Jesus cantar pela primeira vez. Parceiro de grandes como Cartola, Dona Ivone Lara e Paulinho da Viola, responsável por marcos como o espetáculo “Rosa de ouro” — cuja estreia acaba de completar 50 anos (leia abaixo) — e o Projeto Pixinguinha, ele já foi mais de uma vez apontado como um anjo (“mulato de cabelos brancos e olhos verdes”, como já se definiu) que impulsiona a beleza apolínea, perfeita, divina da música brasileira. Mas é dionisíaca e profana a fala que sintetiza o espírito que o moveu e o move — em meio a novos projetos e homenagens pelo aniversário — através das notas, dos versos, da vida:

— Tenho uma atração quase sexual pela estranheza — diz, listando exemplos. — A rouquidão de Louis Armstrong, a dramaticidade misturada à languidez e ao torpor da bebida de Billie Holliday, o ineditismo do canto de Aracy de Almeida, o violão e a voz de Nelson Cavaquinho, a estranheza introspectiva de Zezé Gonzaga, que cantava como se passasse uma pátina de ouro pela canção. E Clementina. Quando a ouvi, tive materializada toda a estranheza fascinante que poderia imaginar.


Ele levanta, apoiado na bengala que o acompanha (“Estou com um problema na perna”) e põe um disco. Flamenco. Entra a voz rascante, cheia de melismas mouros. Ele fecha os olhos e sorri, como se a estivesse ouvindo pela primeira vez.

— Aos 17, 18 anos, ouvi Pastora Pavón (cantora espanhola conhecida como La Niña de los Peines) — diz, apontando para um retrato dela em sua parede. — Ela tinha dentro de si um animal ferino. Quando fui conhecê-la, em Sevilha, tive surdez por emoção. De volta ao Brasil, ouvi Clementina. E só a entendi porque ouvi artistas como Pastora Pavón.

Hermínio identifica a estranheza mesmo na mistura que o formou como homem da música. Uma amálgama que inclui o início como artista mirim, em saraus nos quais cantava quando tinha por volta de 5 anos; as rodas de viola do avô Gregório na ilha da Gipoia, em Angra (“Minha avó preparava o farnel dele e ia remando no caiaque enquanto ele temperava a viola, depois deixava-o na ilha e ele só voltava quando vencesse o desafio”); a Rádio Nacional, como ouvinte e frequentador, onde conheceu mestres como Radamés Gnattali (“Pude ver coisas como o programa ‘Quando os maestros se encontram’, para o qual o Gnattali tinha um subtítulo, ‘os músicos se fodem’”), a escola pública onde estudou canto orfeônico; a igreja e o canto gregoriano (“Era um carola de primeira”); o Teatro Municipal dos Concertos para a Juventude. Uma formação ampla que desembocou na música popular:

— Quando saiu o disco de Aracy cantando Noel (de 1950), com capa de Di Cavalcanti, arranjos de Radamés, vi uma obra de arte completa: música, letra, arranjo, capa. Queria estar nesse lugar.

Em discos, letras e poemas, foi nesse terreno — da comunicação popular de alta nobreza (rimando com estranheza) — que Hermínio trafegou nas últimas décadas. E segue. Tem um livro de poemas inéditos a ser lançado pela Folha Seca, “Meu zepelim prateado”, e outro com 50 crônicas ilustradas pelo cartunista Bap. Além disso, um disco preparado (“Falta só o patrocínio para gravar”) com o parceiro Vidal Assis, de 29 anos. E, no segundo semestre, o Centro Cultural Correios abrigará a série “Hermínio aos 80”, com quatro shows com recortes temáticos sobre sua obra.

— Desde criança, em meu primeiro emprego como entregador de roupas, levando sutiãs a rendez-vous, tento manter uma margem de felicidade no meu trabalho. Aos 80, as coisas não são fáceis. Tenho muito material para publicar, começo a ter medo do tempo. Nessa idade, ele é decisivo. É hora de avaliar, jogar fora o que não presta. Mas medo da morte, não tenho. Tive câncer duas vezes, um AVC e um infarto. Mas consigo ter ideias e sonhar. Quando perder isso, visto a mortalha e fico esperando.


LEIA POEMA DE HERMÍNIO DO LIVRO “MEU ZEPELIM PRATEADO”:

A estrutura é quase a mesma
de um balão, quase:
ao invés de papel celofane,
uso o de crepon, Prateado, porém, esclareça-se:
Sua carcaça rudimentar a inflo com um leve sopro,
e ele,o zepelim, vai tomando sua forma.
Observo sua confecção em suas minudências:
ao invés de goma arábica,
colei suas partes com uma cola artesanal,
daquelas antigas – feitas de água e trigo.
Enfim, a de um balão desses que em festas juninas
Sobem sobem soprado ao sabor da vadiagem dos ventos.
Meu zepelim, leva uma carta de bordo
com instruções detalhadas para seu uso.
Carta, não: uma folha de papel pentagramado
para eventual uso de seus tripulantes –
uma banda de músicos iguais ao do yellow submarine
e minúsculas caixas de sons, mas de alta potência,
acopladas à sua estrutura...
E, sim: um estroboscópio
com seu respectivo manual.
Passará silencioso, num primeiro momento.
Só estrugirá sua música quando passar.
Melhor dizendo: quando, voando ao sabor dos ventos
sobre aldeias distantes em países mais distantes ainda.
E então irá parir melodias antes nunca ouvidas
pelos ouvidos dito humanos (e por
vezes tão desumanos) e se deixará sangrar e respingará seu suor
feito de sopros, cordas e corais
por sobre as paragens onde sua sombra se projetará
nos telhados nas ruas nos rios, nos boizinhos voadores de Chagall –
o combustível desse meu zepelim leva guardado
um matulão de utopias e sonhos delirantes –
ele, arauto enunciador de um novo tempo.

Fonte: O Globo

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