Assis Valente escolheu o lado mais perigoso do Corcovado para pular. Um ponto chamado "buraco", que faz com que qualquer objeto jogado do alto dos quase 800 metros da pedra desça direto para a parte mais funda da encosta.
Era 12 de maio de 1941, e o compositor havia decidido se matar. Sem camisa, ele se jogou de costas, diante de uma plateia de bombeiros, policiais, turistas e curiosos.
Depois de 70 metros, o equivalente a um prédio de 20 andares, ficou preso na copa de uma árvore brotada na pedra. O autor de "E o Mundo Não se Acabou" foi resgatado com vida, mas não desistiu do suicídio. Tentaria mais cinco vezes até conseguir, em 1958, ao beber um refrigerante de guaraná batizado com veneno para ratos, em frente à praia do Russel, no bairro do Flamengo.
"Não há dúvida de que Assis pulou para a morte. Ele disse que a última imagem que viu foi a mão direita do Cristo", conta o jornalista Gonçalo Junior, que acaba de publicar a biografia "Quem Samba Tem Alegria", que reconstitui o episódio passo a passo em angustiantes 15 páginas.
"Não é verdade que ele chamou a imprensa para aparecer'. Os jornais chegaram ao local durante o longo período de resgate, que durou das 15h30 às 21h30. Se fosse hoje, seria um espetáculo para os programas policiais. Tudo ao vivo", imagina o biógrafo.
Gonçalo Junior buscou o título do livro na letra do samba "Alegria", gravado por Orlando Silva em 1937: "Minha gente era triste, amargurada/ Inventou a batucada/ Pra deixar de padecer/ Salve o prazer, salve o prazer".
Um das marcas da simpatia de Assis Valente –o sorriso aberto de dentes brancos e saudáveis, propaganda ideal para quem ganhava a vida como protético– escondia um abismo de depressão que se tornou insuportável no fim da vida, quando o talento musical decaiu, a estrela Carmen Miranda (por quem nutria uma paixonite) deixou de gravá-lo e ele acumulou dívidas financeiras em bola de neve.
O compositor nunca se esqueceu da infância dickensiana no Recôncavo Baiano. Filho bastardo, confundia a todos ao informar quando nasceu: às vezes dizia 1901, noutras 1909, 1910 ou 1911 –o biógrafo crava que foi em 1908.
Viveu de favor, fugiu com um circo, depois mudou-se para o Rio na esperança de conseguir emprego como protético ou desenhista –tinha aptidão notável para a ilustração.
Para o biógrafo, a depressão já aparece em 1933, em duas obras-primas do início da carreira do compositor: "Cai, Cai, Balão", gravada por Aurora Miranda e Francisco Alves, inaugurando as marchinhas juninas, e "Boas Festas", que na voz de Carlos Galhardo virou a música de Natal por excelência no Brasil (dos versos "Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel").
O estrondoso sucesso, que durou até 1939, disfarçou os desajustes de comportamento –como gastar mais do que ganhava ou os sumiços do trabalho no laboratório de próteses.
O uso de drogas, principalmente cocaína, aumentou a depressão, e é revelado pela primeira vez no livro.
"Minha principal fonte foi a afilhada dele, Sausa Machado, com quem conviveu bem próximo nos últimos 13 anos de vida. Quando começamos a conversar, ela imediatamente falou: Meu filho, o problema do Assis era a dependência química'", conta o autor.
"Assis viveu na década de 1940 como os viciados em crack de hoje. Andava maltrapilho, ficava dias sem tomar banho e as pessoas mudavam de calçada quando o viam, pois era certo que pediria dinheiro emprestado", diz.
Uma antiga desconfiança –a da homossexualidade não assumida, drama que o teria levado ao suicídio– é descartada na biografia. O autor diz que é possível que apareça alguma carta de amor para um homem, mas a hipótese não condiz com o que pesquisou.
"Nas tentativas de suicídio, ele escreveu bilhetes em que lamentava o fim do seu casamento", conta Gonçalo Junior. "E deixou letras maliciosas sobre o corpo da mulher e os sambas nos quais homenageou muitas amadas e amantes."
A própria produção musical pode ter alimentado a dúvida. Há os exemplos de composições na voz feminina, a mais notável delas "Fez Bobagem", com Aracy de Almeida, um raro sucesso depois do escândalo do Corcovado cujo título soa como auto-ironia.
As gravações de Carmen Miranda são mais picantes e maliciosas: "Camisa Listada" mostra um valentão que se veste de mulher, prática comum no Carnaval; "E o mundo não se acabou", alguém que beijou na boca "de quem não devia".
Autor da "História Sexual da MPB", o pesquisador Rodrigo Faour provoca: "O que dizer do duplo sentido de alguns títulos, como 'Gosto Mais do Outro Lado', 'Ele Disse que Dá' e a emblemática 'Uva de Caminhão'? Neste samba, Assis Valente cita inúmeros sucessos carnavalescos entremeados com símbolos fálicos (pirulito, chupeta, canivete, flauta de bambu)".
QUEM SAMBA TEM ALEGRIA
AUTOR - Gonçalo Junior
EDITORA - Civilização Brasileira
QUANTO - R$ 65 (644 págs.)
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