CAPÍTULO 47
A IFPI é a instituição que tem por missão e finalidade representar os interesses da indústria perante os governos e as cortes internacionais, coordenar a luta contra a pirataria, compilar estatísticas confiáveis e, sobretudo, oferecer um terreno neutro e amistoso para reunir companhias que competem ferozmente no seu dia-a-dia. Tem sede em Londres e escritórios regionais pelo mundo, exceto na América Latina até 1994, quando fundamos a IFPI latino-americana, com sede em Miami, da qual fui nomeado presidente, cercado por uma diretoria essencialmente composta por executivos de outras gravadoras, encarregados, como eu, dos territórios latinos.
A IFPI latina teve como responsabilidade inicial instalar entidades de classe em todos os países do continente, inclusive no mercado latino dos Estados Unidos, dedicando-se de imediato a desenvolver um plano para combater a pirataria de fitas cassete, cada vez mais vigorosa no México e no Brasil.
Nos primeiros anos de atividade no Brasil, tal qual ocorria no México, constatamos que tudo o que se conversava durante as reuniões dentro dessas duas IFPIs chegava imediatamente aos ouvidos dos piratas e, além do mais, que existiam empresas legítimas que, com ou sem o conhecimento dos seus dirigentes, fabricavam fitas cassete piratas.
Foi então imperativo instituir a entidade APDIF (Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos), totalmente fora do controle das IFPIs locais, exclusivamente dedicada ao combate à pirataria. Para tornar a unidade realmente profissional, contratamos especialistas em investigações — em geral já aposentados e que tinham adquirido experiência nos serviços secretos dos governos locais ou no FBI norte-americano — para operar no Brasil e no México.
No Brasil, a situação era kafkiana. Por volta de 1993, já não se vendiam cassetes nas lojas. E a alegação oficial de muitos executivos brasileiros era que, graças ao “boom econômico” do Plano Real, o aumento do poder aquisitivo das classes menos favorecidas tinha aumentado de tal maneira que o mercado havia migrado inteira e exclusivamente para os CDs. Essa alegação nos pareceu pelo menos fantasiosa, pois se vendiam ainda muitas fitas cassete nos chamados “países do Primeiro Mundo”.
Durante uma reunião com meus colegas em Miami, lembrei que, no Brasil, a pirataria havia iniciado suas atividades vendendo fitas cassete principalmente em postos de gasolina nas estradas interestaduais. Propus verificar se essa prática continuava, à revelia da indústria brasileira. Contratamos um profissional para fotografar as lojas de serviço nas estradas Rio-São Paulo, São Paulo-Curitiba etc.
Descobrimos, então, que os singelos estandes de fitas do passado, que ocupavam um modesto lugar dentro dos postos de gasolina, tinham se transformado em importantes lojas que, em muitos casos, vendiam quase que exclusivamente cassetes piratas. Depois de investigações mais extensas, constatamos que o estrago se estendia também às ruas do centro das principais cidades do país. A dimensão era tal que o processo era, provavelmente, irreversível. As companhias brasileiras, preocupadas com a maximização de sua participação dentro do mercado, tinham simplesmente se esquecido de proteger esse setor, abandonando-o para os piratas. Consternados, só restava imaginar o que aconteceria se e quando essa perfeita rede de distribuição paralela se dedicasse à venda, em grandes quantidades, de CDs piratas.
Mal havíamos formulado essa hipótese, aconteceu o desastre, com a chegada de quantidades cada vez maiores de CDs piratas ao Brasil, provenientes do Paraguai. Formamos uma comissão — constituída pelo presidente mundial da IFPI, Jay Berman, e pela diretoria da IFPI brasileira — e, acompanhados pelo embaixador norte-americano, fomos conversar com o presidente do Paraguai.
Soubemos que havia mais de trezentas pistas de aterrissagem clandestinas para aviões de pequeno porte espalhadas pelo Paraguai; que a maior sucursal do Mossad (Serviço Secreto de Israel) no exterior estava no Paraguai para combater núcleos islamitas ali residentes, que mandavam os lucros do tráfico de armas e drogas para o Oriente Médio; que existia um acordo Brasil-Paraguai chamado “Corredor Alfandegário”, que impedia a Polícia Federal brasileira de verificar o conteúdo dos contêineres que chegavam ao porto de Santos em direção ao Paraguai; e, sobretudo, que a máfia chinesa estava cada vez mais ativa no Paraguai e, segundo o presidente paraguaio, não era impossível que a chegada de CDs piratas ao Brasil fosse proveniente da máfia chinesa.
O presidente paraguaio confessou que, frente a tantos problemas, o governo se sentia incapaz de atender aos nossos pedidos de fechar a fronteira, mas que não teria inconveniente em que a gente montasse e financiasse uma unidade antipirataria para proteger nossos interesses. Seguimos de imediato o conselho.
Alguns meses depois, a mesma comissão viajou para o Brasil e, acompanhada pelo João Araújo, presidente da associação brasileira, foi a Brasília. Com a ajuda e coordenação do embaixador brasileiro em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, encontramos o presidente Fernando Henrique Cardoso, que nos recebeu amavelmente. Procuramos o ministro da Justiça, Renan Calheiros, que não nos recebeu, e o diretor da Receita Federal, Everardo Maciel, que nos informou objetiva e friamente que, excetuando cigarros e whisky, o combate à pirataria de outros produtos não fazia parte de suas prioridades.
Tendo fracassado no Paraguai e no Brasil — os países receptores das mercadorias —, nos restava, então, descobrir que países abrigavam os fabricantes, para tentar suspender suas atividades na fonte.
Por meio de investigações em colaboração com as unidades antipirataria da IFPI do Sudeste Asiático, descobrimos que o fornecimento dos CDs piratas vinha de Macau, colônia portuguesa por poucos anos ainda, antes de ser devolvida à China. João Araújo conseguiu enviar uma equipe da TV Globo a Macau, para filmar uma negociação entre supostos compradores piratas brasileiros e fabricantes piratas chineses. A filmagem era um flagrante perfeito, e foi ao ar, com grande alarde, no “Fantástico” do dia 23 de agosto de 1998. No entanto, Brasília não se sensibilizou.
Sobrava uma pergunta: onde Macau tinha conseguido tantas máquinas para, de repente, fabricar tantos milhões de CDs que inundavam igualmente a Malásia, as Filipinas, a Coréia e a Indonésia? Os responsáveis originais, surpreendentemente, eram Mao Tsé-Tung e a Revolução Cultural! Ao resolver acabar com a Revolução Cultural, Mao precisou do apoio dos generais responsáveis pela ordem nas províncias chinesas. Em troca, os generais obtiveram autorização para desenvolver negócios pessoais à margem do Estado e da economia socialista. Uns vinte anos depois, esses generais tinham criado centenas de empresas que fabricavam e vendiam desde armas, cigarros e vídeos até CDs, além de, em alguns casos, controlar a prostituição e a venda de drogas.
Mao morreu, a China revolucionou sua política econômica e, ao se candidatar para a entrada na WTO, teve que demonstrar para a comunidade internacional seu empenho em controlar a pirataria que saía do país. O governo central ordenou aos generais terminar com a maior parte dos seus negócios e, evidentemente, as fábricas de CDs estavam na lista desse “pacote da boa vontade”. Fechar as fábricas de CDs, os generais de fato fecharam. Porém, em vez de destruir as instalações, eles as despacharam para outros países do Sudeste Asiático, e em particular para Macau, onde a máfia chinesa local, fluente no idioma português, dominava completamente a administração da abandonada colônia portuguesa.
Os discos saíam de Macau escondidos em engenhosas embarcações sub-marinas puxadas por inocentes barcos de pesca, dotadas de um sistema que fazia com que flutuassem quando cheias de ar e afundassem quando esvaziadas, desaparecendo, assim, da vista da polícia quando atracavam em Hong Kong. Dali, os discos eram despachados por via aérea para Amsterdã ou para a Cidade do Panamá, e aterrissavam em alguns dos trezentos aeroportos clandestinos do Paraguai. Do Paraguai, chegavam ao Brasil através das redes 243 de tráfico das máfias chinesas instaladas naquele país e no Brasil.
Ao longo de dois anos, durante as reuniões da diretoria da IFPI em Londres, os responsáveis pela luta antipirataria na região asiática, eu e meus colegas latinos lutamos desesperada e inutilmente para obter subsídios suficientes para confrontar os piratas de Macau e do Sudeste Asiático. Não sendo a pirataria física, naquela época, um problema nos países do Primeiro Mundo, não havia interesse em investir nos países “emergentes”, que representavam apenas 10% do mercado mundial e onde as leis eram escritas, mas não eram fiscalizadas.
Ao final de uma dessas frustrantes reuniões em Londres, tirei uma semana de férias no sul da França, perto de Cap d’Antibes, rezando para que o mundo se esquecesse de mim, nem que fosse só por uns dias. Depois da folga, planejava dar um pulo até Milão — para visitar meus colegas italianos, que, de uma maneira ou de outra, sempre tentavam me dissuadir de trabalhar — e até Madri — onde meus colegas espanhóis sempre achavam que tinham que trabalhar mais, a fim de reconquistar a hegemonia perdida para os ingleses cinco séculos atrás.
Pois bem, mal cheguei a Cap d’Antibes, o telefone tocou. Era meu primo Mounzer Midani, que vivia em Roma:
— Haidar, seu pai me ligou ontem. Ele está muito cansado e quer que você vá visitá-lo em Damasco, o quanto antes...
O sangue deu uma volta vertiginosa no meu coração! Nunca mais vira meu pai depois do tragicômico episódio do meu aniversário em Beirute, quarenta e tantos anos antes. Porém, prudentemente, respondi:
— Mounzer, diga a meu pai para me telefonar pessoalmente. Eu quero que ele mesmo me convide.
No dia seguinte pela manhã, bem cedo, tocou o telefone. Era meu pai . A primeira coisa que falou, com a voz de um ancião de 93 anos, foi:
— Haidar, você ainda tem aqueles cabelos encaracolados?
O meu pai tinha se transformado num demagogo sentimental, e, ao ouvir suas palavras, lá se foram minhas antigas raivas e meus profundos ressentimentos. Com a voz embargada, respondi:
— Pai , eu ainda tenho cabelos encaracolados… Eu vou visitá-lo assim que puder…
Voei de Paris para Istambul e dali para Damasco, onde cheguei no dia seguinte, tarde da noite.
Passando pelo controle de passaportes, dava para ver que a Síria tinha se transformado num triste país. Por todos os lados, grandes cartazes com o retrato do Hafez al-Assad, presidente vitalício do país. Por todos os outros lados, soldados montando guarda. Entreguei meu passaporte brasileiro ao funcionário de plantão, que olhou, olhou, virou as páginas com demorada atenção, e começou a falar comigo em árabe, idioma que desconheço totalmente. Quando respondi em francês, ele se levantou e foi buscar um superior que falasse francês:
O senhor é brasileiro?
Sou sim.
Nasceu aqui em Damasco e mora nos Estados Unidos? Pertence à família Midani e não fala árabe?
O senhor é muçulmano?
Sim, senhor — respondi, já meio assustado com o tom cheio de suspeita do meu entrevistador…
Era somente o início de um interrogatório de mais de meia hora, ao fim do qual fui, enfim, liberado para prosseguir meu caminho. Wallid, um primo de segundo grau, me esperava na saída do aeroporto.
Colocamos minha pouca bagagem no carro e seguimos em direção à casa do meu pai, onde todos os que restavam da decadente família Midani me esperavam, apesar da hora avançada. Entrei, identifiquei meu pai, sentado numa confortável poltrona vermelha desbotada, beijei sua mão, conforme os costumes árabes, e me apresentei a cada um do resto da família. Finalmente, sentei ao lado de meu pai, que perguntou:
E France, tua mãe? Como vai ela?
Minha mãe já morreu faz cinco anos...
Ao receber a notícia, meu pai não mais falou. E, poucos minutos depois, se retirou para seus aposentos. Wallid me levou para o hotel, deixando perceber que ele queria ter uma conversa particular antes de eu voltar a encontrar meu pai. Marcamos para o café da manhã do dia seguinte.
— Haidar, eu cuido do teu pai, passo por lá diariamente, vejo se não falta nada... Só que tenho um problema, e nem eu nem os outros da família ousamos comentar, porque ele às vezes fica muito bravo... Ele é o patriarca da família! Bem, o problema é o seguinte: seu pai persegue as empregadas e mete a mão na boceta e na bunda delas. Imagine... Fazer isso na idade dele... E elas, claro, vão embora... Fica cada vez mais difícil a gente conseguir umas meninas para trabalhar na casa... Cabe a você, seu filho, falar com ele. Outra coisa: eu ia me esquecendo de dizer que a gente sabe que a sua mãe era judia e que você se converteu ao cristianismo. Mas não se preocupe. Ninguém vai saber. Não precisa ter medo! Olhei para ele sem saber se a última observação era para me tranquilizar ou para me acovardar.
No dia seguinte, abordei com meu pai o assunto de suas estrepolias eróticas, com palavras discretas. Ele me ouviu num compenetrado silêncio e, depois de alguns longos segundos, respondeu:
— Haidar, meu filho, eu te chamei porque a vida está fugindo de mim. Estou cansado de viver... Você vem me visitar e, já no segundo dia, quer retirar o único prazer que me resta nesta vida...
Ele tinha toda razão. Beijei sua mão e nunca mais voltei a tocar no assunto, nem com ele nem com o resto da família.
Um ano depois, em 1995, quando meu pai morreu, descobri que, para receber a pequena herança a que tinha direito, eu precisava da ajuda do Walli, e que, se eu não dividisse com ele o espólio, aquela frase fora, de fato, uma ameaça: como filho de judia, era perigoso eu estar na Síria, e, como cristão, me era vedado o direito de receber a herança de meu pai!
Fiquei mais alguns dias nesse país de um passado glorioso e hoje completamente isolado do resto do mundo, obcecado pelo ódio a Israel, e que, naquela altura, tinha somente uma estação de rádio, uma estação de televisão e um jornal, todos pertencentes a um governo ditatorial. Então, me lembrei muito da minha mãe, que costumava dizer que a guerra contra Israel poderia durar dez, cem ou duzentos anos, mas que os árabes não se cansariam até reconstituir o califado e botar o último dos judeus no mar... Ela se ressentia sobretudo de ver esses dois povos milenarmente sofisticados se digladiarem e se deixarem manipular pelos ocidentais, que, como ela dizia, comiam carne crua com as mãos ainda há poucos séculos.
0 comentários:
Postar um comentário