segunda-feira, 12 de maio de 2014

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 46




CAPÍTULO 46 

Era sábado de manhã. Eu regressava da Cidade do México para Nova York, num avião praticamente vazio, sentado perto de duas lindas moças mexicanas, e, bem ao estilo das comédias da década de 1950, dei umas olhadas furtivas para uma delas. Elas olharam de volta e, dessa maneira mais vulgar, conheci Ofelia Medina. Ofelia era certamente uma das mais importantes atrizes do teatro e cinema mexicano, venerada pelo povo e odiada pelo establishment. Havia fundado uma ONG, que cuidava de umas duas mil crianças em San Cristóbal de la Sierra e, quando necessário, ela se transformava em porta-voz do subcomandante Marcos, que até hoje conduz, nas montanhas do estado de Chiapas, uma revolução que o governo mexicano não consegue eliminar. Ofelia era intensa, tanto nas lutas quanto nos prazeres. 

Numa quinta-feira, recebi um telefonema em NovaYork. 

— André, venha ao México nesta sexta-feira... Estou fazendo uma greve de fome há uma semana na praça do Anjo. Alugue um carro no aeroporto, venha até a praça lá pelas oito da noite, suba no teto do carro e me faça um sinal. Eu encerro a greve e nós vamos passar o fim de semana em Cuernavaca. 

Eu cheguei lá, como havíamos combinado. Ofelia estava acabando seu discurso para umas duas mil pessoas. Subi no teto do carro, ela me viu, 15 minutos depois acabou seu discurso, cruzou a multidão e entrou no carro. 

— Anda rápido, André! Vamos para Las Mañanitas... Eu preciso descansar. E muito! 

No dia seguinte, ao meio-dia de um dia de calor insuportável, estávamos andando pelas ruas desertas da cidade de Cuernavaca, onde ficava o hotel Las Mañanitas, quando apareceu ao longe, vindo em nossa direção, uma pobre senhora índia, com uma criança nas costas, envolvida por um lenço: 

— Senhora Ofelia , me perdoa... Quero agradecer tudo o que a senhora faz por nós, índios… Que Deus a abençoe! 

Foi também através da Ofelia que vivi um dos momentos mais emocionantes da minha vida profissional. Ela era muito amiga da Carmen Parra, famosa pintora mexicana, e as duas tinham ido passar o fim de semana na casa da Carmen, em Tepotzlan, vilarejo a duas horas da Cidade do México, no caminho para Cuernavaca. Na noite de sábado, Carmen, com fortes dores de cabeça, chama Ofelia para irem comprar aspirina na praça. 

Perto da farmácia, havia uma mendiga suja e bêbada, sentada na sarjeta, como que cantando para si mesma. Chegando à farmácia, Ofelia vira-se para Carmen e diz: 

Engraçado, essa velha soa como Chavela Vargas … 

Também achei — respondeu Carmen . 

Ao saírem da farmácia, elas pararam um instante à frente da velha, que continuava cantando, olhando para o chão, como que perdida dentro de seu mundo, e Ofelia perguntou: 

—Você, por acaso... seria Chavela ? 

A velha levantou o rosto marcado pela idade e pela bebida, por anos de desamparo, e, com a voz embriagada, respondeu: 

— Sim, sou. Acabava de ser reencontrada uma das mais importantes personagens da música mexicana, de quem ninguém tinha notícias havia mais de vinte anos! Índia puro-sangue, costariquenha, tinha sido esbelta, belíssima, com seu rosto de águia e sua pele morena, sempre vestida — na cidade ou no palco — com um traje de rancheiro branco, bordado de rendas de fio de ouro, e botas brancas com saltos bem altos. 

Bebia tanto quanto os homens mexicanos, e tomava peyote frequentemente. Chavela foi a primeira mulher a cantar músicas rancheiras, que, até então, faziam parte de um repertório exclusivamente reservado aos cantores, com suas vozes machistas imponentes e impostadas. Chavela era uma lésbica notória, que cantava ostensivamente para seduzir as mulheres, e frequentemente aparecia de madrugada cantando serestas embaixo das janelas das futuras conquistas, sem se preocupar com os maridos. Até que um dia, cantando num teatro onde se encontravam em uma das primeiras filas um ministro de Estado mexicano e sua formosa esposa, Chavela se plantou bem à frente da mulher, que a encarou, cantando durante o concerto inteiro como se ela fosse a única espectadora. Em seguida, Chavela apareceu sob a janela do quarto do casal, montada em seu cavalo branco, e cantou serestas durante a noite inteira. Conta a lenda que a mulher, seduzida, fugiu com Chavela a cavalo na mesma madrugada. O marido, ofendido publicamente, ordenou um completo boicote, em consequência do qual Chavela não pôde mais aparecer em qualquer lugar público, cantando ou não. Durante um certo tempo a cantora viveu de favores, para em seguida desaparecer, transformando-se pouco a pouco na mendiga errante sentada à beira da calçada numa noite de sábado, num vilarejo próximo à Cidade do México. 

Ofelia e Carmen mandaram Chavela para uma longa recuperação em uma clínica de Madri e, após alguns meses de repouso, Chavela gravou uma fita cassete na casa de amigos madrilenos, que chegou às minhas mãos pela Ofelia. A sonoridade daquela voz — que soava cansada, dramática, de registro grave — e o jeito de frasear os versos nos convenceram ser imperativo gravar Chavela antes que a saúde frágil a impedisse de cantar. 

Foram gravados três discos praticamente de uma só vez, todos com repertório do mais puro estilo rancheiro, cada um de uma simplicidade monástica, para que a personalidade da intérprete surgisse intocada, com o acompanhamento de um simples trio mexicano residente em Madri. As gravações tiveram um sucesso fulgurante no México e na Espanha. 

O cantor e ator espanhol Miguel Bosè e o cineasta Pedro Almodóvar se tornaram seus mais apaixonados divulgadores. Chavela Vargas começou a cantar na comunidade artística madrilena e — a partir do sucesso de uma de suas canções, incluída por Almodóvar em seu mais recente filme Carne trêmula — em lugares públicos cada vez maiores, em toda a Espanha. Chavela se recusava a voltar ao México, que ansiava por seu retorno. Ofelia viajou a seu encontro e a convenceu de cantar no Teatro Belas Artes (o teatro municipal da cidade), que tinha sido o lugar de sua desgraça uns trinta anos antes. Almodóvar a acompanhou. Ofelia e Carmen encomendaram o mesmo poncho dourado e branco, as mesmas botas brancas, o mesmo sombreiro de mariachi dos tempos antigos, e assim Chavela surgiu — velhinha, porém altiva — ante uma platéia enlouquecida… Sua volta ao México foi triunfal! 

Trazendo a mulher e a filha recém-nascida, Francisco Céspedes fugiu de Cuba com destino ao México quando a polícia local descobriu a existência de uma casa de jogos clandestina e de um puteiro que ele administrava com sucesso. Viajando em uma embarcação que aportou nas praias de Cancún, Francisco chegou de carona à Cidade do México, onde viveu por um tempo com a família na casa de outros exilados cubanos, em situação de grande miséria. 

Para se vestir, dispunha de um único terno, já muito surrado. É um sujeito imenso, forte e mulato, que costumava ficar persistentemente, pela manhã, à porta da Warner do México, na esperança de ser recebido pelo diretor artístico Mauricio Abaroa, que passava batido e nunca o atendia. Até que um dia, cansado de esperar, Francisco mudou de tática: de humilde pedinte, transformou-se num homem imponente e ameaçador. Quando Mauricio Abaroa , o diretor artístico, apareceu, Francisco plantou-se entre a porta da gravadora e o Mauricio, e disse: 

— Senhor Abaroa, o senhor é um louco de não me receber e ouvir minhas canções. Não sabe quanto dinheiro e sucesso está perdendo... 

E ali mesmo, no meio da rua, pegou o violão e cantou. O Abaroa ficou estupefato, levou Francisco para sua sala, ouviu mais duas ou três canções e não precisou ouvir mais: 

— Você tem toda razão! Eu sou um belo idiota! Porém, para compensar, você está contratado não somente como compositor, mas também como cantor. 

O Abaroa me telefonou contando esse episódio: 

— Você tem que ouvir esse sujeito, ele é o melhor compositor que apareceu neste país desde o Armando Manzanero. E canta incrivelmente! 

Assim começava a carreira do maior compositor e intérprete cubano contemporâneo. Seu sucesso foi imediato e arrebatador — no México, nos Estados Unidos e na Espanha. 

No ano seguinte, Henry Droz, o poderoso diretor comercial da Warner Music norte-americana, responsável pela venda e distribuição dos nossos discos nos Estados Unidos e no Canadá, me telefonou: 

— André, eu convidei Paul Simon e David Foster para encerrar cada noite da nossa próxima Convenção Anual de Vendedores e Promotores de Rádio, e gostaria de apresentar também o Céspedes. Pode ser? 

A turma de trezentos vendedores diante dos quais se apresentaria o Francisco não era uma turma de Primeira Comunhão... Era um pessoal “barra-pesada”, que, em matéria de música latina, só se interessaria pela silhueta da Jennifer Lopez ou pelos rebolados do Ricky Martin. 

— Henry, eu tenho receio do teu pessoal. O Céspedes não é nenhuma Christina Aguilera ...Você acha que eles vão prestar atenção? — perguntei. 

André, eu já ouvi muito o disco dele. E garanto que vão adorar! 

E se o pessoal estiver de porre? 

Aí é que eles vão adorar mesmo! — respondeu meu interlocutor. 

Então o Céspedes estará aí com seu grupo. 

No segundo dia da convenção, voei para Atlanta, cidade-sede da CNN, que filmava o evento, e achei que não deveria deixar nas mãos do Henry Droz a responsabilidade de apresentar o Céspedes. 

Subi, então, ao palco e contei para as trezentas “feras” toda a história do Francisco, desde a saída de Cuba, passando pelo episódio da contratação, até chegar ao seu recente sucesso, e anunciei sua entrada no palco. Céspedes — imponente como um elefante e leve como um pássaro — entrou dançando ao som do seu conjunto, rodando, piruetando e rebolando no melhor estilo cubano, com a filha de três anos nos braços, e começou a cantar suas canções de amor para ela... A imensa sala de convenções veio abaixo! Francisco recebeu uma ovação emocionada... Muitos gringos estavam chorando, surpreendidos pelo vigor de uma expressão musical até então desconhecida por eles.

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