A exatamente 22 anos falecia um dos maiores nomes da música brasileira e sem dúvida alguma o maior da música nordestina. Hoje, Luiz Gonzaga e a bandeira que defendia, está muito bem representada por um garanhuense que desde cedo já era considerado pelo próprio "Lua" como seu sucessor.
Por Samuel Valente
José Domingos de Morais, aos seis anos de idade, era reconhecido como garoto prodígio. Dominguinhos – carinhosamente chamado Neném – era a sensação da sanfona de 8 baixos nas praças, nos hotéis e nas feiras das cidades interioranas. Com Neném, mais dois irmãos: Morais (pianista) e Valdo (acordeom). De passagem por um desses recantos, Luiz Gonzaga ouve falar de uma criança que, dizem, “toca igualzinho a ele”. Aguçado pela curiosidade, vai conferir para crer. Fica impressionado com a habilidade e com a apurada técnica, coisas muito difíceis de se ver num garoto daquela idade.
“Esse fedelho vai longe...”, fica matutando. Tão grande é a satisfação de Luiz Gonzaga que ele se levanta e vai cumprimentar aquele “pinguinho de gente” que puxa um fole até melhor que muitos adultos. Aproveita para lhe confidenciar uma promessa:
“Quando você for mais crescido, vou dar-lhe uma sanfona nova, presente de ‘padrim Gonzaga’, seu cabra!”
O tempo passa. Cada vez mais entranhado nos segredos harmônicos da sanfona, dádiva que vem de berço, Dominguinhos logo é reconhecido como um dos seguidores do estilo Luiz Gonzaga. O mestre, sempre pelas imediações, observa a trajetória do pequeno grande artista. Até o encoraja a seguir os rumos do Rio de Janeiro.
“Mas, ele é ainda quase um menino”, comentam alguns de seus colegas.
“É cedo que se começa – pondera Gonzaga – e esse cabrinha, que já é um cabra da peste, tem talento que nenhum ouro do mundo compra”.
Fica feliz o Rei do Baião quando sabe que o rapaz “está se garantindo” com os sucessos nas boates e nos cinemas dos arredores do Rio de Janeiro. Resolve, então, acolher de vez as suas prodigiosas adolescências, pensando até em proclamá-lo como herdeiro artístico. O primeiro passo é recomendá-lo à RCA Victor.
Outras ideias, no entanto, borbulham em seus pensamentos. No dia 13 de dezembro de 1956, aniversário de Luiz Gonzaga, sua casa na Ilha do Governador fica parecendo uma “sucursal” da Música Popular Brasileira, onde estão cantores, compositores, músicos de todas as tendências, gente do rádio, da televisão e do disco.
Em dado momento, Luiz Gonzaga reúne os convidados e traz pelo braço um jovem rapaz aparentando 14 ou 15 anos, de chapéu de couro, lenço no pescoço, um desajeitado pela timidez, mas exuberante no talento de grande artista do acordeom: José Domingos de Morais, o Dominguinhos.
A plateia, que ainda não entende do que e de quem se trata, embora imagine ser mais um candidato a cantor ou compositor, faz profundo silêncio e aguarda a palavra do anfitrião. Gonzaga tira a sua sanfona e passa ao jovem Dominguinhos. Presente do Rei do Baião. O garoto ajeita o fole em seu peito. Treme que só vara verde. Finalmente, apontando para o rapaz, Luiz Gonzaga estufa o peito e, com todos os sotaques nordestinos, anuncia:
“Este cabra da peste é o meu herdeiro artístico”.
Em verdadeiro burburinho fica a casa de Luiz Gonzaga. Todos querem conhecer de perto a nova estrela nordestina. Alguns até pensam que seja mais uma das brincadeiras de Gonzaga. E dizem:
“O aniversário é de Luiz Gonzaga, mas o presente quem recebe é esse franzino, que nem pode com a sanfona”.
Sempre por perto desses incréus, Gonzaga logo corrige:
“O presente não é meu e nem de Dominguinhos. O presente é para a Música Popular Brasileira, que dele vai ouvir falar, e dele vai precisar”.
Dominguinhos, a pedido de seu protetor, toca algumas músicas como se fosse o maior recital de sua vida. Brejeiro, de Nazareth, Vira e Mexe, de Gonzaga, e Escadaria, de Pedro Raymundo. Agora, todos concordam: trata-se de um grande talento.
Poucos dias depois Dominguinhos é levado para conhecer os estúdios da RCA Victor. Gonzaga está para gravar o baião A Feira de Caruaru e Capital do Agreste, ambos do caruaruense Onildo Almeida.
“Você quer entrar nessas gravações, Neném?” pergunta Gonzaga.
Dominguinhos sabe que se trata de um grande desafio. Rejeitá-lo seria atestado de burrice.
“Só se for agora, seu Luiz!”, responde.
E o antológico solo da introdução de A Feira de Caruaru, bem como toda sua base, são tirados da sanfona e dos ágeis dedos de Dominguinhos, ele também participando da gravação de Capital do Agreste. Essas músicas assinalam o começo de sua carreira, um dos maiores talentos do cancioneiro popular brasileiro, o solista, o compositor, o cantor, o incontestável herdeiro das grandiosidades gonzagueanas, mesmo que desses tesouros, por modéstia, abdique. Dominguinhos tem consciência de que, mesmo indicado pela própria majestade, o seu reinado não tem coroa, porque Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, é único.
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