" Tudo no mundo canta: o mar, nas praias e conchas; as cachoeiras, nas pedras e nas cordas da invisível harpa do ar; o vento, nas palmas e folhas e frestas; os trovões, baixíssimos em céus sopranos; vulcões barítonos e lavas solfejantes. O tempo não canta, passa em silêncio, mas esta é outra canção. Até os pneus dos automóveis lacrados dão suas desafinadas. Conheço um maestro inglês que é plagiário confesso da natureza. Plagiário não, escrivão, servo dos criadores da música mais fugaz, encantadora e natural desta terrinha que nos abriga. Depois de décadas de trabalho profissional em música, este personagem resolveu se aposentar e abraçar o amadorismo mais lírico. Hoje, escreve o canto dos pássaros. Sai por ali, entre bosques e estradas, carregando um belo gravador a tiracolo. Prende na fita magnética os desabafos genéticos de toda sorte de aves. Depois, vai para casa. Pacientemente, reproduz no papel, nota a nota, a partitura efêmera do bichinho oferecida quase sempre ˆ companheira. Quando não pode gravar pessoalmente, por conta desses oceanos que teimam em nos separar de nossos desejos, compra o disco. Assim, ficou conhecendo, por exemplo, o virtuosismo de nosso uirapuru.Bom, e o que o Djavan tem a ver com isso? perguntaria um leitor menos dado a metáforas e anti-metáforas. Calma, eu responderia, já já chegamos lá...Ao comparar o canto de pássaros do hemisfério norte com o das aves tropicais, o tal maestro saiu-se com a seguinte pérola: "Os pássaros europeus têm o canto monocromático. Já as aves tropicais executam partituras policromáticas". Em outras palavras, este escravo da vontade de Deus dizia que o rouxinol é ave sem imaginação se comparada a um canarinho brasileiro.O canto de Djavan é policromático. A gente pode até tocar, lamber, as cores de suas melodias e letras. Sinestesia é mato na obra deste homem de olhos doces como rapadura. Graças a Tupã, Djavan nunca foi tropicalista - é tropical. Graças a sei lá o que, Djavan nasceu regional mas nunca foi regionalista. Mais do que internacional, ele é universal, que o atestem os inúmeros e célebres fãs estrangeiros subjugados por suas melodias surpreendentes, a um só tempo quase heréticas em seu atonalismo e altamente palatáveis, receptivas ao grande público que só conhece as ondas do rádio.O som e a poesia de Djavan prescindem de rima, só o ritmo da beleza espontânea. Tocando seu violão, as mãos de Djavan parecem as chamas de uma fogueira em nosso sertão mais profundo. Toca fogo suavemente em nossos fiapos de coração. Certa feita, ouvi alguém dizer, depois de um show de Djavan no defunto Hotel Nacional do Rio: " Achei José de Alencar demais..." Errou a frase e acertou nas palavras... o José de Alencar e é demais!Há pouco, falei em "beleza espontânea". Temo reconhecer que tal coisa não existe. Quando logra-se alcançar a Beleza, como o faz Djavan, não há nada de espontâneo nisso. Não se chega ao sagrado sem a construção transpirada de catedrais...O Brasil se funda de novo a cada acorde deste artista. Guardião da sofisticação nesses tempos vulgares, Djavan é bálsamo para os que ainda prezam o bom gosto. E é popular, como popular é Beethoven.Por isso, peço em nome deste ser alado do Nordeste: nunca joguem o pão no lixo. Triture as migalhas de sua dura bisnaga e espalhe cuidadosamente pelo parapeito mais próximo. Os passarinhos carecem de se alimentar. Para melhor, e sempre, cantar." (Pedro Bial)
É com esse texto que parabenizo o mestre alagoano pela passagem de seus 60 anos e dentre eles mais da metade a serviço da boa música brasileira.
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