sábado, 12 de dezembro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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• CAPÍTULO 8 •
RAIZ, ANTENA E UM DEDO DE PROSA COM OS PERSISTENTES


“O samba não precisa ser salvo de ninguém, ele tem essa resistência natural, ele se manifesta porque as pessoas se manifestam, não necessita de piedade.”


PAULINHO DA VIOLA



Espero que o leitor que nos acompanhou até aqui tenha curtido este pequeno roteiro em que se traçou um panorama do samba. Este é apenas um caminho entre os muitos possíveis para contar a história do gênero. É isso mesmo: a pluralidade e a diversidade de um fenômeno cultural estão ligadas justamente à capacidade que temos de apreendê-lo em seus múltiplos campos. E o samba, por sua magnitude social, presta-se como nenhum outro gênero a nossas infindáveis discussões de brasilidade. 
Até aqui, por mais que não tenha buscado me aprofundar em análises teóricas, segui o ritmo da pluralidade, da compreensão do samba como resultado cultural das relações estabelecidas entre etnias, classes, segmentos sociais, movimentos musicais, personagens e personalidades, nos diversos períodos históricos.

Usei samba no sentido amplo da palavra, da forma como aparece no imaginário do brasileiro. Samba com respeito à tradição, mas sem tradicionalismo, aquele lado perverso do discurso que circunscreve a qualidade cultural a passados longínquos e intangíveis. Raízes são importantíssimas, mas o que faz diferença são as antenas.
Por isso falei de bossa nova (a “Semana de 22” do samba), falei de samba-canção, festivais da canção, tropicalismo, música de protesto. Falei do samba como legado cultural. Dei destaque a compositores exclusivamente sambistas, mas também tratei daqueles que transcendem o universo do gênero sem deixar de dar sua importante contribuição como intérpretes ou criadores de sambas. 

Casas desamba, nichos da“raiz” 

Ainda são inúmeras as casas de samba pelo país. Templos quase religiosos do gênero, elas são mantidas a ferro e fogo pelos seus organizadores, homens e mulheres que não deixam a chama se apagar. O Cafofo da Tia Surica, pastora da Velha Guarda da Portela, em Oswaldo Cruz, o Bip-Bip em Copacabana, comandado por Alfredinho, ou o Candongueiro, em Niterói, liderado por Ilton e Hilda, retratam a dinâmica e a circularidade que o samba ainda mantém com os espaços da cidade. Segundo Roberto M. Moura, as rodas foram e são a matriz do samba: “Minha convicção é de que o samba, como gênero, nasce somente a partir das reuniões animadas por gêneros de origem ocidental e afro-brasileira.” Para o crítico e professor, as rodas incentivaram os sambistas da Cidade Nova, das escolas de samba, do Cacique de Ramos e da nova geração da Lapa. É na roda que o sambista dialoga com a tradição e reinventa criativamente o samba. 

Caetano Veloso, por exemplo, pode destoar do enredo à primeira vista. Mas vimos que, além de gravar sambistas tradicionais, ele compôs pérolas como “Desde que o samba é samba”: “A tristeza é senhora/ desde que o samba é samba é assim/ a lágrima clara sobre a pele escura/ à noite a chuva que cai lá fora/ solidão apavora/ tudo demorando em ser tão ruim/ mas alguma coisa acontece no quando agora em mim/ cantando eu mando a tristeza embora...” 
É por tudo isso que nos anos 1990 e neste início de milênio continuamos convivendo, mais uma vez, com as raízes e as antenas musicais que circulam por aí. A raiz frutifica de novo pelas mãos de Hermínio Bello de Carvalho, que encantou o Rio de Janeiro com o espetáculo O samba é minha nobreza. No palco, passado e presente, repertório tradicional e nova geração da Lapa. A raiz caminha ainda na apresentação dos jongueiros da Serrinha, fazendo reviver no Rio de Janeiro essa dança dos “pretos velhos” do cativeiro, dos escravos do tempo do Império.

Aliada à forte raiz, a antena não pára de girar. Gira na diversidade de estilos e na tendência cada vez maior a misturar os gêneros. Gira na direção do rock – que, no Brasil, tem precedentes históricos de ligação com o samba – e da música pop. Não foi esse o papel dos Mutantes quando gravaram o samba-rock“Aminha menina”, de Jorge Ben (ainda sem o Jor)? 


Jongo 

Trazido pelos negros da mãe África, o jongo – ou caxambu –, é uma dança profana para o divertimento. A dança de roda e umbigada acontece ao som de dois tambores: um grave – caxambu ou tambu – e um agudo – candongueiro. O canto é responsorial, entoado primeiramente pelo solista com versos livres improvisados, e o refrão é repetido por todos. 
Herdando a tradição de sua mãe, Vovó Maria Joana, que foi mãe-de-santo da cantora Clara Nunes e confeccionava todas as roupas da sambista, o partideiro e jongueiro Darcy da Serrinha tornou-se o maior nome do gênero. 
Darcy deu aula de percussão na Escola Villa-Lobos e tocou com os principais nomes do samba. Foi ele quem quebrou a tradição do jongo ensinando a dança para crianças. 
O mangueirense Ivo Meirelles compôs (em parceria com Paulinho e Lula) um dos sambas-enredos mais famosos da década de 1980, “Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm”, cujo refrão “Tem xinxim e acarajé/ tamborim e samba no pé” é executado no carnaval carioca até hoje. 
Aproximando-se do funk, do rock e do pop, Ivo fundou o grupo Funk’n’Lata, que mistura basicamente o funke a batucada dos redutos cariocas de samba. 
Foi também esse o papel dos Novos Baianos, roqueiros tropicalistas que, depois de uma conversa com João Gilberto, resolveram girar a antena em direção à música popular brasileira, o que resultou no clássico LP Acabou chorare. Nele encontramos músicas com influência joão gilbertiana e fusão de instrumentos de choro e samba (cavaquinho e violões) com guitarras, como em “Besta é tu” e no retumbante “Brasil pandeiro”. 
Quase 20 anos depois, na década de 1990, o papel de aproximação do samba com o rock foi desempenhado por Lobão e Fernanda Abreu, ex-integrantes da Blitz. Desde o dueto com Elza Soares, em 1986, na música “A voz da razão”, Lobão vem dialogando com o universo do samba em seus trabalhos – acabou até integrando a bateria da Mangueira. Fernanda, a garota suingue-sangue-bom, com o funk carioca na pele, uniu morro e asfalto em seus batuques digitais. Fez um sampler de “O morro não tem vez”, de Tom e Vinicius, gravou “Jorge da Capadócia”, de Ben Jor, e “Aquarela brasileira”, de mestre Silas, entre muitos outros. 
Cássia Eller e Zélia Duncan fortalecem ainda mais os nossos argumentos. Rainha blues-roqueira, a magnífica Cássia interpretou com maestria “Na cadência do samba”, de Ataulfo Alves e Paulo Gesta, e emprestou seu forte estilo a Riachão, compositor baiano, em “Vá morar com o diabo”. Zélia, cantora apaixonada pelo mundo do samba, montou o espetáculo “Eu me transformo em outras”, cantando sambas clássicos. Alguns capítulos a mais para a relação da antena com a raiz. 
De fato, o samba vai deitando raízes nas novas gerações. Muitas vezes, a antena gira para todos os lados, em direção às fusões. Marcelo d2, com o CD À procura da batida perfeita, escancara a porta do hip-hop para o samba: mistura ideal de estilos contestadores – cada um a seu tempo –, periféricos por natureza. 


Riachão 

Cronista musical da antiga Salvador, Clementino Rodrigues ganhou o apelido de Riachão na infância: “Quando menino, eu gostava muito de brigar. Mal acabava uma peleja, já estava eu disputando outra. E aí chegavam os mais velhos para desapartar e pregando aquele velho ditado popular: – Você é algum riachão que não se possa atravessar?”, disse ele em entrevista. Riachão é o mais antigo compositor vivo da Bahia conhecido e um dos grandes nomes do cenário nacional. Sua obra tem um quê de senso jornalístico com um tom poético e bem-humorado. Veja o samba que Cássia Eller gravou, “Vá morar com o diabo”: “Ai meu Deus, ai meu Deus, o que é que há?/ a nêga lá em casa não quer trabalhar/ se a panela tá suja, ela não quer lavar/ quer comer engordurado, não quer cozinhar/ se a roupa tá lavada, não quer engomar...” 
O “samba-mangue beat” na voz de Otto em Samba pra burro marca a atualidade do ritmo no movimento musical liderado por Chico Science. Max de Castro, filho de Wilson Simonal e herdeiro musical de Jorge Ben Jor, faz uma explosiva mistura de soul, música eletrônica, bossa nova e samba. Em seu CD Samba raro, Max mostra que é possível utilizar tecnologias contemporâneas na música popular brasileira com qualidade. 


Manguebeat 

O movimento mangue beat trabalhou com a analogia do homem-caranguejo presente na poética recifense e agitou o ambiente artístico da cidade durante os anos 1990, reunindo músicos e jornalistas numa estética pop que gerou, além de Chico Science e Nação Zumbi (que lançou, depois da morte de Chico Science, o CD Rádio S.A.M.B.A – olha ele aí de novo, na mistura!), nomes como Fred 04, com o grupo Mundo Livre S.A., e Otto, que vem firmando seu trabalho. O movimento chegou a flertar com uma temática social, mas não a enfatizou como ponto principal. Com uma “parabólica fincada na lama” (a nossa antena) como símbolo do movimento, o mangue beat misturou gêneros da música pop internacional com outros tradicionais de 


Pernambuco (maracatu, coco, ciranda). 

Por tudo isso, podemos afirmar que o samba é, além de um gênero, um caldo de cultura secular, raiz de nossas sintonizadas antenas parabólicas. Um dedo de prosa com os persistentes O leitor mais “militante” da MPB pode se indagar por que nosso trabalho fala do samba como se ele fosse onipresente na indústria do entretenimento, como se ele não se valesse do famoso jabá para tocar nas rádios ou como se as produções musicais (shows e CDs) dos sambistas tradicionais (entendidos como “de raiz”) fossem algo fácil de ser realizado. 
É preciso ficar bem claro que a indústria do entretenimento faz parte da nossa realidade. Mas sua visão mercantil da cultura não é monolítica – há em seu seio um mar de contradições. Um breve estudo da relação da mídia com o samba, inspirado no ensaio “Os discursos da mídia e do jornal impresso”, do professor Maurício Duarte, pode ajudar a compreender melhor esse complexo mecanismo. 
Popularizado nas décadas de 1930 e 1940 e elevado aos círculos eruditos nos anos 1960, o samba chega revitalizado ao início do século XXI. Mesmo a inegável qualidade artística do samba é insuficiente para explicar uma trajetória tão complexa. Na verdade, boa parte do vigor desse gênero musical deve-se ao desenvolvimento da indústria do entretenimento. Por isso, vamos ousar propor que o sucesso do samba tem uma dívida com o que chamamos de “música de verão”, exemplificada no axé e na “sertanejo music”, no “pagode paulista”, entre outros. 
Mas, afinal, o que o samba tem a ver com esse tipo de música? A pergunta nada tem de descabida. No mercado altamente competitivo dos meios de comunicação, a busca por elevados níveis de audiência fez o entretenimento assumir o papel principal. Nos dias atuais, há uma gigantesca e persuasiva presença do entretenimento na divulgação de arte, da cultura e também dos produtos noticiosos. 
Neste início do século XXI, os meios de comunicação revelaram-se um fenômeno contraditório, ambivalente. Não são meros transmissores ou processadores de informação, nem mediadores neutros entre artistas, intelectuais, jornalistas e opinião pública. De forma sutil e pouco transparente mesmo para alguns profissionais da área, eles são um sujeito ativo na elaboração das notícias, shows e eventos que pretensamente apenas transmitem ou reproduzem. Para alguns teóricos, os meios de comunicação têm até o poder de instituir a agenda pública. Isto é, a mídia não chega a determinar a opinião das pessoas, mas influencia fortemente a escolha dos assuntos a serem pensados e discutidos. 
Por outro lado, onde os produtos da mídia circulam livremente, preconceitos morais e valores conservadores sofrem sérios questionamentos. A visibilidade que a mídia dá aos atos dos governos, dos políticos e das autoridades também passou a obrigá-los a prestar contas dos abusos de poder, da corrupção e do clientelismo. E os meios de comunicação ainda fazem com que, para se comunicar, especialistas de campos como a economia e o direito adaptem seu vocabulário a um público mais amplo. 
Assim, a mídia é um sujeito ativo também na democratização e na flexibilização dos valores, combatendo elitismos. Se, no âmbito da cultura, o elitismo é cristalizado no gosto construído por intelectuais, críticos, escritores, jornalistas e outros setores da mídia, ao mesmo tempo os sistemas de comunicação relativizam esses critérios de gosto ao divulgar músicas que, ao estilo “Tchan” e “Egüinha Pocotó”, têm como único objetivo o consumo imediato e o entretenimento. Nesse sistema contraditório, o samba e outros estilos vistos por formadores de opinião como de qualidade musical são mais bem assimilados pelo grande público a partir de suas “similares mercadológicas”, cantos e danças que estão mais próximos do gosto da massa. 


Academia e tecnologia 

O samba, como outros setores da música popular, passou a ter em seu seio um crescente número de músicos formados pela academia. Se antes tínhamos uma onipresença de músicos intuitivos, que tocavam de ouvido, mas com maestria, hoje a presença de instrumentistas que fizeram cursos em conservatórios e universidades aumentou sensivelmente. A Uni-Rio, por exemplo, tem um curso de graduação em música popular, fato impensável há alguns anos. O avanço da tecnologia também contribui para situar o universo do samba em outro patamar. Se a indústria do entretenimento tem suas preferências, os sambistas tiveram que recorrer ao crescente mercado de gravadoras alternativas – que no Rio de Janeiro geram hoje milhões de reais. Devido aos avanços tecnológicos, essas gravadoras encontram grande facilidade na feitura de um CD. Isso abriu um novo mercado para os jovens e também para os veteranos compositores de samba. E por falar em tecnologia, a Internet tem tido um papel relevante para um grupo seleto mas significativo de pessoas que frequentam sites sobre samba. Esses sites são como rodas virtuais, onde bate-papo, troca de partituras e endereços de casas de samba e venda de livros e CDs são freqüentes. Pela qualidade, organização e tempo de serviço, o site de Paulo Neves, www.samba-choro.com.br, oferece uma bela viagem pelo mundo do samba. 
Ainda no âmbito das contradições da relação entre música e mídia, a indústria do espetáculo foi obrigada a diversificar o investimento para manter o lucro, o que fez com que não só os estilos de consumo imediato, mas a música brasileira de todos os estilos permanecesse um bom negócio. Em outras palavras, o samba alcançou o século XXI com intensa vitalidade também porque é um bom entretenimento. 
Mais do que lamentar o fato de supostamente a mídia não divulgar a música dita de qualidade, deve-se questionar o porquê de o público não optar majoritariamente por ela entre o leque de opções culturais que lhe é apresentado. 
É como disse Paulinho da Viola, em “Coisas do mundo, minha nega”: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”. É aprender, conhecer e optar o que falta aos jovens urbanos, que cedem cada vez mais aos apelos do consumismo, sem acesso a bens fundamentais de cidadania, como educação de qualidade, saúde e emprego. 
Apenas com a garantia de justiça social e dignidade a todos, “As rosas não falam”, “Chega de saudade”, “Vai passar” e outras obras de Cartola, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Chico Buarque poderão ser consumidas em massa pelo prazer estético, além do entretenimento. Mas, sem ilusões: a “música de verão” vai continuar a divertir os consumidores. Porém, críticos e intelectuais vão poder apenas rir dessas diversões. Claro, desde que abandonem a convicção da superioridade dos seus valores e ganhem uma pitada de humor... 





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