sábado, 21 de março de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Noel Rosa

“Quem nasce lá na Vila
nem sequer vacila
ao abraçar o samba
que faz dançar os galhos do arvoredo
e faz a lua nascer mais cedo...”
NOEL ROSA e VADICO, “Feitiço da Vila”

Menino de classe média, nascido e criado no musical bairro de Vila Isabel, Noel de Medeiros Rosa construiu sua fulgurante carreira entre 1929 e 1937 e é até hoje celebrado como o mais poético e moderno compositor de samba de todos os tempos. Não há exemplo de letrista que tenha produzido tanto, e com tanta qualidade, em tão pouco tempo.
O bebê Noel Rosa foi retirado a fórceps, em parto difícil, o que lhe deixou um defeito no queixo que o acompanhou por toda a vida, obrigando-o inclusive a se alimentar apenas de líquidos e papas. A fraqueza no organismo, desencadeada pela má alimentação e pela vida boêmia, levou-o à tuberculose, doença que desde o século XIX ficou associada ao glamour da boemia cultural. O fim não tardou, e Noel partiu para outras bandas aos 27 anos, no auge de sua produção, deixando a soma fabulosa de mais de 200 composições.
Poeta inventivo, Noel falava de amor com comicidade, fazia crítica social e comentava com muita propriedade as transformações do seu tempo. Iniciou sua vida musical participando do Bando de Tangarás, formado em Vila Isabel, grupo cujos integrantes eram, além dele, Almirante, Carlos Braga (o Braguinha), Alvinho e Henrique Brito. Tangarás são pássaros que cantam e dançam formando uma roda com um deles no centro, mas, no Bando, o único a usar realmente o nome de pássaro foi Carlos Braga, que acabou por ficar conhecido nacionalmente pelo apelido de João de Barro.


Almirante

Considerado “a maior patente do rádio”, Henrique Domingues Foreis – famoso pelo apelido de Almirante – começou sua promissora carreira no meio musical carioca como cantor e pandeirista do conjunto Flor do Tempo, formado por rapazes de Vila Isabel, entre os quais o compositor Braguinha. A partir de então, foi conquistando cada vez mais espaço nas rádios, ora como excelente intérprete, ora como radialista, papel que desempenhou com maestria, escrevendo, dirigindo e produzindo programas por mais de 40 anos.
Com o material produzido para seus programas sobre música popular, acumulou um dos maiores acervos de música da história e foi o responsável pela permanência da lembrança de inúmeros compositores brasileiros. A partir de 1947, dez anos depois da morte de Noel, Almirante passou a realizar uma campanha de recuperação e popularização da imagem pública do poeta e promoveu ciclos de palestras, programas de rádio e o lançamento de um livro, valorizando e mitificando a imagem de Noel como o principal representante dos áureos tempos do rádio.
Branco e filho da cidade, Noel chegou a cursar alguns meses de medicina e desempenhou o papel de revisor e redator em programas de rádio (não sendo raro que também reescrevesse letras de amigos sambistas). Cantando e compondo sambas na Lapa, na sua amada Vila Isabel, na Mangueira, no morro de São Carlos ou no Salgueiro, seu legado musical e poético foi construído em meio à promiscuidade vitalizadora de um Rio de Janeiro onde as casas das
“boas” famílias ficavam muito próximas aos cortiços, casas de cômodos e favelas.
O andarilho citadino Noel fazia visitas tão freqüentes aos sambistas de morro que vira-e-mexe dormia na casa do compositor Cartola, em Mangueira. A “santa” Deolinda, primeira mulher de Cartola, cuidava de ambos após os porres homéricos que tomavam. Nessas andanças, o poeta da Vila acabou por encontrar seu parceiro mais constante: Ismael Silva, o bamba do Estácio. Ao todo, foram 19 composições, das quais destacamos “Para me livrar do mal” e “Adeus”. Essa parceria – entre cidade e morro – selou uma linhagem do samba urbano que passaria por Ary Barroso e Dorival Caymmi até chegar ao genial Chico Buarque.
Quando mergulhou no meio musical carioca, Noel Rosa queria ter uma composição que alcançasse o grande público. Sonhava entrar num bar onde as pessoas olhassem e apontassem – lá vai o famoso Noel! Esse sonho não se concretizou com suas duas primeiras músicas, uma embolada e uma toada. Mas sua poesia ultrapassaria o círculo de amigos com o samba “Com que roupa?”, composto em 1929 e sucesso absoluto no carnaval. Nesse samba, Noel rompe com seu passado de inspiração nas tradições nordestinas e levanta vôo com as asas dos sambistas do Estácio de Sá, neles se inspirando para criar um estilo próprio. A seguir, a pérola que lembrava em muito o começo da melodia do hino nacional, antes da modificação do compasso da primeira frase: “Agora vou mudar minha conduta/ eu vou à luta/ pois eu quero me aprumar/ vou tratar você com a força bruta/ pra poder me reabilitar/ pois esta vida não está sopa/ e eu pergunto: com que roupa?/ com que roupa... eu vou/ no samba que você me convidou?...”


A crise de 1929 e a roupa de Noel

Noel dizia para o grande público que seu primeiro sucesso, o samba “Com que roupa?”, surgira quando sua mãe, preocupada com seu estado de saúde agravado a olhos vistos pela boemia diária, escondera toda sua roupa para que ele não saísse mais de casa. Segundo o próprio Noel, ele havia combinado com alguns amigos que viessem buscá-lo para uma festa. “Os amigos não faltaram”, contou. “À noite, batiam lá em casa: ‘Como é, Noel, vamos para o baile?’ E eu, dentro do quarto: ‘Mas com que roupa?’ Mal eu tinha acabado de soltar a frase, quando me ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema...” A difusão do samba pelo Rio de Janeiro – e por todo o país – fez com que o estribilho “Com que roupa?” virasse designativo de falta de dinheiro.
Para os íntimos, Noel contava também que os versos retratavam metaforicamente um país pobre, com fome e miséria, contexto certamente agravado pela quebra da Bolsa de Nova York. O Brasil era extremamente dependente do mercado internacional, e seu principal produto, o café, responsável por 71% das exportações, deixou de ser vendido para o exterior.
A crise de 1929 acarretou, praticamente no mundo inteiro, um nível de desemprego, miséria e fome nunca antes visto no sistema capitalista e que ficou conhecido como a Grande Depressão Econômica.
Noel fez sambas com Heitor dos Prazeres, Cartola, Orestes Barbosa, Lamartine Babo, Antenor Gargalhada, Francisco Alves e muitos outros; entretanto, suas parcerias com o paulista Osvaldo Gogliano, o Vadico, destacam-se por unir poesia, melodia e harmonia de rara beleza. Noel era habilidoso melodista, tocava violão com muita desenvoltura, e, por ironia do destino, acabou por encontrar no melodista paulista – que não tinha as características habituais de seus parceiros – o contraponto ideal de sua poesia. A música “Feitio de oração” celebra justamente esse encontro, diferente de todos os outros que o poeta da Vila mantinha com os sambistas de morro. Vadico, com seu samba-canção, criou as condições para a poesia de Noel afirmar que “...o samba na realidade, não vem do morro nem lá da cidade/ e quem suportar uma paixão/ sentirá que o samba, então/ nasce no coração...” Estava justificada a parceria.
“Provei”, “Cem mil-réis”, “Tarzã, o filho do alfaiate”, “Pra que mentir”, “Conversa de botequim” e o terno e eterno “Feitiço da Vila”, uma ode a Vila Isabel, são mais alguns filhos ilustres da dupla. Na última, Noel brinca com a política do café-com-leite da República Velha (1889-1930), período de hegemonia das oligarquias de São Paulo, produtoras de café, e de Minas Gerais, produtoras de leite: “Quem nasce lá na Vila/ nem sequer vacila/ ao abraçar o samba/ que faz dançar os galhos do arvoredo/ e faz a lua nascer mais cedo/ Lá em Vila Isabel/ quem é bacharel não tem medo de bamba/ São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba...”


Conversa de botequim

O botequim está para o carioca assim como os pubs para os londrinos e os cafés para os parisienses. No ambiente do samba, foi chamado de “escritório” – lugar de encontro, ponto de sociabilidade. Noel Rosa e Vadico, em “Conversa de botequim”, traçam com muita propriedade e humor o garçom ideal:

“Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa/ uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga à beça/ um guardanapo e um copo d’água bem gelada/ Feche a porta da direita com muito cuidado/ que não estou disposto a ficar exposto ao sol/ Vá perguntar ao seu freguês do lado/ qual foi o resultado do futebol/ Se você ficar limpando a mesa/ não me levanto nem pago a despesa/ Vá pedir ao seu patrão/ uma caneta, um tinteiro, um envelope e um cartão/ Não se esqueça de me dar palito/ e um cigarro pra espantar mosquito/ Vá dizer ao charuteiro que me empreste/ uma revista, um cinzeiro e um isqueiro/ Telefone ao menos uma vez para 34-4333/ e ordene ao seu Osório/ que me mande um guarda-chuva/ aqui pro nosso escritório/ Seu garçom, me empreste algum dinheiro/ que eu deixei o meu com o bicheiro/ Vá dizer ao seu gerente/ que pendure esta despesa/ no cabide ali em frente...”

Ao lado de Marília Batista, Noel Rosa inaugurou o partido-alto na Era do Rádio, com a música “De babado sim”. Marília e Araci de Almeida disputaram o coração do sambista como suas melhores intérpretes. Suas vozes imortalizaram o repertório do poeta. Podemos afirmar, apoiados no magnífico trabalho de João Máximo e Carlos Didier, Noel Rosa, uma biografia,2 que a vida de Noel está registrada em sua obra. Seus amores foram cantados em “Dama do cabaré”, “Pra que mentir” e “Último desejo”; em “Palpite infeliz” prestou sua homenagem a Vila Isabel; a crítica à modernidade está em “O século do progresso” e “Não tem tradução”; e, para finalizar, sua crítica social pode ser ouvida em “O orvalho vem caindo”. 
As letras de Noel Rosa eram inovadoras para a época. Isso explica por que seus maiores sucessos foram músicas de carnaval (a exemplo de “Com que roupa?” e “Pierrô apaixonado”, parceria sua com Heitor dos Prazeres). Seu legado passou a ser mais bem compreendido após sua morte, demonstrando a cada dia a vitalidade e a modernidade de seus versos. Não é à toa que Noel é ainda hoje muito revisitado por novos intérpretes.
Poucos compositores cantaram o Rio melhor que Noel. O Rio das gírias, dos costumes, da malandragem, da graça, da delegacia policial, do revólver, do xadrez, do Tarzan, dos bairros, da sua querida Vila Isabel.


Wilson Batista

Foi na Lapa que eu nasci 
foi na Lapa que eu aprendi a ler
foi na Lapa que eu cresci
e na Lapa que eu quero morrer
WILSON BATISTA, “Largo da Lapa”

É pouco provável que haja na história do samba um compositor que tenha vivido tão intensamente a boemia carioca quanto Wilson Batista de Oliveira. Nascido na cidade de Campos, no estado do Rio de Janeiro, Wilson migrou para a antiga capital da República por volta de 1929, com 16 anos de idade. 
Estreando no mundo da música pela voz de Aracy Cortes, com o samba “Na estrada da vida”, Wilson Batista foi apurando seu processo de criação e acabou por desenvolver um raciocínio rápido para compor, utilizando a primeira ideia que viesse à mente; tirava o papel do maço de cigarros para fazer anotações e batia na caixa de fósforos para marcar o ritmo de suas melodias: imaginava a composição e saía cantando. Parecia que a música já nascia pronta.
Wilson vivenciou intensamente a boemia da Lapa, com seus cafés e cabarés.
Desse cenário, no qual desfilavam prostitutas, malandros, gigolôs, policiais e boêmios de todos os tipos, ele tirou inspiração para sua diversificada obra. Rotulado de malandro, vestia-se com apuro: terno de linho branco, camisa de seda pura e cachecol branco jogado sobre os ombros.
Fotógrafo do cotidiano, retratou a malandragem em “Lenço no pescoço”, o amor em “E o 56 não veio” e “Louco”, o morro da Mangueira, onde viveu seu primo Cartola, em “Mundo de zinco” (“Aquele mundo de zinco que é Mangueira/desperta com o apito do trem/ Uma cabrocha, uma esteira/ um barracão de madeira/ qualquer malandro em Mangueira tem”). Fez músicas de forte cunho social – “Pedreiro Waldemar” diz assim: “Você conhece o pedreiro Waldemar?/ Não conhece?/ Pois eu vou lhe apresentar/ De madrugada toma o trem da circular/ Faz tanta casa e não tem casa pra morar...” E “Chico Brito”: “O homem nasce bom/ e se bom não se conservou/ a culpa é da sociedade/ que o transformou.”
Com o cantor e compositor baiano Erasmo Silva, que conheceu no Café Nice, em 1936, Wilson formou a dupla Verde e Amarelo. Os dois se apresentaram em São Paulo, no Rio Grande do Sul e na Argentina. Contratados em 1938 pela rádio May rinkVeiga, gravaram inúmeros discos e acabaram por se separar em 1951.
Uma polêmica musical entre Noel e Wilson marcou a história do samba.
“Lenço no pescoço”, lançada em 1933, traz versos que exaltam o modo de vida do malandro. Noel respondeu no mesmo ano com “Rapaz folgado”, contestando a identificação da figura do sambista com a malandragem. Wilson, ainda novo no meio musical carioca e muito jovem para brigar com o famoso Noel, foi tirando proveito da fama momentânea e prolongou a contenda com “Mocinho da Vila”, que por sua vez teve como réplica a obra-prima “Feitiço da Vila”. Wilson compôs então “Conversa fiada”, música bem elaborada, já revelando o grande sambista que ainda estava por se consolidar. Esta foi silenciada pelo antológico e elegante “Palpite infeliz”. Os fracos “Frankenstein da Vila” e “Terra de cego”, de
Wilson, não mereceram resposta do poeta da Vila. Os polemistas se conheceram entre um e outro desafio e tornaram-se amigos. Hoje podemos agradecer: qualquer que tenha sido o motivo da desavença, quem saiu ganhando foi a música brasileira.
Como faria um bom “repórter”, Wilson descreveu os costumes e o cotidiano do submundo carioca. Seu convívio diário com o ambiente da Lapa e da praça Tiradentes e com personagens que viviam de golpes, exploração de mulheres e jogo e tinham uma acentuada aversão ao trabalho fez com que reproduzisse as brincadeiras, as gírias e a linguagem dos matreiros da época. Suas parcerias se deram com a nata do mundo do samba: Ataulfo Alves, Geraldo Pereira, Haroldo Lobo, Sílvio Caldas, Orestes Barbosa, Dunga e Moreira da Silva, entre outros. 
Infelizmente a voz do “cabo” Wilson, como os amigos gostavam de chamá-lo, calou-se em 1968 na mais absoluta miséria. É a sina do “Pedreiro Waldemar” na música brasileira.


Gírias
Eis aqui algumas gírias que os pesquisadores Luís Pimentel e Luís Fernando
Vieira encontraram nos escritos do compositor.3
Bife com chaleira – média com café e leite Bira – hotel barato
Bomba – música de carnaval
Com a cara – sem dinheiro
Pisante – sapato
Comprositor – comprador de samba Folgar – zombar
Um peru – vinte cruzeiros
Matusco – maluco
Penante – chapéu
Três pernas – trezentos cruzeiros
Panariço – chato





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