segunda-feira, 4 de março de 2013

É O AMOR - LUGARES-COMUNS NA MÚSICA BRASILEIRA POR SUAS RIMAS (CONTINUAÇÃO - PARTE 02)


03 - Das Rimas


CONCEITO E TIPOS

Tem-se como conceito geral de rima a “identidade sonora entre dois versos a partir da última sílaba tônica de cada”. Portanto, podemos afirmar que entre o par de versos

Tento esquecer daquele momento [...]
Você mexeu com meu sentimento

existe uma rima, uma vez que as palavras momento e sentimento se identificam a partir da última sílaba tônica, “men”. Este é o formato mais tradicional de rima, também chamado de rima consoante, onde a identidade entre as terminações das palavras é total. É, também, o formato constatado em esmagadora maioria na pesquisa deste trabalho.

Se a identidade das terminações do par de palavras se restringe às suas vogais, temos as chamadas rimas toantes. Ainda que apareçam em número considerável, são mais raras no universo da música popular. Um exemplo, da música Quando Você Passa, de Sandy & Júnior:

Já não saio com os amigos [...]
Que encontrei no seu sorriso

As rimas toantes permitem combinações mais livres de palavras, como por exemplo “camisa/formiga” e “teme/pele”, mas carregam em si uma estranheza maior que a das rimas consoantes, de identidade e assimilação imediata. É uma hipótese provável para sua aparição proporcionalmente menor na pesquisa.

A incidência de rimas oxítonas tende a ser maior na música popular, dada a imensa quantidade de verbos no infinitivo que se prestam a rimas em “-ar”, “-er” e “-ir” – uma em cada seis das rimas analisadas é formada por um par de verbos no infinitivo. Soma-se a isso os substantivos-muletas para contornar rimas de infinitivos, como “mar” e “olhar”, e toda família de terminação “-ão”, também bastante recorrente. Rimas paroxítonas também são comuns, em grande parte pelas terminações de gerúndios como “-ando”, “-endo” e “-indo”. As proparoxítonas, como era de se esperar, constituem raras exceções.

Outra divisão de rimas que vale ser citada, apesar de não ser um aspecto tratado neste trabalho, é a hierarquização parnasiana das “rimas pobres” (entre duas palavras da mesma classe gramatical, exemplo: “gata/pata”), “rimas ricas” (entre classes gramaticais diferentes, ex: “além/amém”) e as “rimas preciosas” (formadas por três palavras, ex: “cabelo/tê-lo”). Estas últimas são bastante incomuns, contando com apenas três exemplares entre os 3073 pares de rimas estudados: “estrela/vê-la” na canção Ela É Demais, de Rick & Renner, “estrela/tê-la” na canção Luz das Estrelas, de Belo, e o rebuscadíssimo “ali/déja-vu” na canção Já É, de Lulu Santos.



BREVE HISTÓRICO

Antes de querer-se teorizar sobre a origem da rima, deve-se procurar, é claro, as origens da poesia – mais especificamente da poesia oral, já que a rima é um efeito que se realiza antes no som que na escrita.

Não que tal distinção seja necessária, pois como nos aponta o professor Segismundo Spina, “a poesia primitiva [...] é a que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva” 5. Toda afirmação acerca dos primórdios da poesia é em larga medida hipotética, todavia pode-se especular que a figura do poeta como a conhecemos, aquele que canta suas próprias emoções de maneira individual, nasce apenas com a separação de poesia e música, decorrente por sua vez da adoção da escrita (c. 4000 a.C).

Antes disso, o que existe é o adivinho ou vate, como era chamado nas antigas culturas indo-européias o encarregado pelos cânticos mágicos de colheita, cura, previsão do futuro etc. A palavra ritmada/cantada tem grande valor místico entre todas as civilizações primitivas, em especial a hindu e também a egípcia, que dedica até um capítulo do Livro dos Mortos ao tema, mais de dez séculos antes de Cristo.

Ao mesmo tempo, os primeiros estudos etnológicos dão conta de que povos pré-civilizados da Austrália, Tasmânia e Índia, além dos peles-vermelhas, esquimós e outras tribos praticavam com desenvoltura o canto improvisado sobre fatos do cotidiano. A poesia, música e dança como a conhecemos hoje nasceram juntas, acredita-se, fruto do sentimento estético inerente ao homem (ou dito de outra forma, da mimese, necessidade de imitação da natureza de que falava Aristóteles). Algo, portanto, precedente à magia e à religião, mas que foi moldado e estimulado por ambas.

Retirando da música a melodia e da dança o ritmo, a poesia aos poucos sofistica suas formas. A repetição consciente de palavras, refrões que se reproduzem ao longo do canto e paralelismos temáticos ou fonéticos entre os versos já podem ser observados em vestígios da poesia grega e latina primitiva, ainda ligada ao canto. Já a origem da rima é mais difícil de apontar, uma vez que a identidade sonora entre o final de dois versos pode ser um fenômeno casual em línguas cujas terminações eram mais restritas, como a dos incas, ou em que todas as palavras começavam e terminavam por vogais, como a dos polinésios. A etimologia da palavra “rima” não ajuda também: deriva do mesmo radical que “ritmo”, o elemento primitivo indo-europeu (sreu-), que significa “fluir” ou “correr com certa cadência”.

Um dos documentos rimados mais antigos que se tem notícia, porém sem data nem autoria confirmados, são os cantos sibilinos, compostos provavelmente no século II a.C. por judeus helenizantes. Segismundo Spina cita a especulação do estudioso Karl Vossler:

Os mais antigos documentos rimados parecem remontar aos lídios da Ásia Menor. Entre eles, [...] já em tempos de Alexandre Magno se encontra a rima regular e amplamente difundida. Portanto, se não semita, a origem da rima é muito provavelmente oriental. Do lídio para o siríaco, depois para o grego e o latim, tal haveria sido mais ou menos seu caminho 6.

O espanhol Juan del Encina, em sua Arte de Poesia Castelhana (1505), afirma que entre os primeiros poetas latinos só aqueles de maior prestígio podiam valer-se do recurso da rima, ainda sim sob o risco de “condenar sua fama” – o que leva a crer que a rima tenha tido uma origem popular, uma vez que a poesia clássica procurava afastar-se das formas menos elitizadas. Já a poesia românica, em especial a vinculada ao cristianismo, abraçou e desenvolveu as rimas em toda sua plenitude, ciente da capacidade destas de facilitar a memorização dos hinos elegíacos. Santo Agostinho, em pleno século V, já fazia uso de rimas consoantes quando queria dar maior efeito expressivo a passagens grandiosas ou patéticas em seus escritos.

As rimas atingem seu mais elevado grau de rebuscamento durante a Idade Média, quando tornam-se aliadas dos trovadores na memorização de suas extensas histórias. O pesquisador francês Henri-Irénée Marrou relata em seu livro Les Troubadours que foram catalogadas nada menos que 1001 fórmulas rímicas na poesia provençal, entre elas as chamadas rimas leoninas (que ocorrem no meio dos versos), rimas para os olhos (semelhanças apenas na grafia das palavras, não no som), rimas equívocas, com eco, toantes e assonantes. Após um período de transição na Alta Idade Média, a rima consoante acaba tornando-se predominante, dada sua maior facilidade de memorização.

No século XVIII, o Neoclassicismo literário promoveu o combate sistemático às rimas, que não seriam compatíveis com os modelos gregos e latinos de fazer poético. Os versos deveriam alcançar a eufonia valendo-se apenas da métrica e do ritmo, livrando-se das “excrescências” barrocas. Grupos intelectuais como o Ribeira das Naus, em Portugal, acusavam as rimas de serem uma “constrição para o pensamento e para o verso” 7. Seu líder, o poeta Francisco Manuel do Nascimento (também conhecido como Filinto Elísio, 1734-1819), escreveu inclusive um poema inteiro dedicado à execração da rima.

Recuperadas pelo Romantismo e o Parnasianismo no século XIX, as rimas voltaram à berlinda estética no início do século XX, quando o Modernismo derrubou as barreiras entre o prosaico e o poético com seus “versos livres”. Em uma tentativa de aproximar a poesia à fala, a corrente aboliu não só as rimas, mas também a métrica e o ritmo tradicionais. Um célebre trecho do Guardador de Rebanhos (1914), obra maior do heterônimo campestre de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, chega a chamar as rimas de antinaturais:

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

Desprestigiada na poesia e retirada de seu papel como índice de memorização, a rima manteve-se firme e forte na canção popular, que passava a atingir públicos cada vez maiores com o advento dos meios de comunicação em massa, principalmente o rádio. Pano rápido, estamos na primeira década do século XXI. Simultânea (porém alheia) a uma cena poética descentralizada, plural e caótica, a lírica da canção popular segue apoiada com firmeza nas rimas consoantes. Assincronia? Anacronismo? Assunto para os próximos capítulos, com certeza.



04 - Da Análise


DEFININDO O OBJETO

A princípio soa como uma tarefa bastante mecânica: contabilizar as rimas utilizadas na música popular e identificar qual delas é a mais recorrente. Tão simples parecia o trabalho que, de início, propus-me a buscar uma lista dos discos lançados nos últimos vinte anos para incluir todos que fossem relevantes na análise.

Dois problemas surgiram aí: o volume de material mostrou-se impossível de analisar, levando-se em conta que são lançados centenas de discos por ano com pelo menos dez músicas cada, cada música com diversas rimas; e o critério de “relevância” era totalmente subjetivo e problemático. Para solucionar o primeiro bastava diminuir o campo de análise, seguindo o conselho que Luiz Tatit dera na primeira entrevista: “A dificuldade de todo projeto acadêmico é começar tendo „Deus e sua época‟ como tema”. Já o segundo problema se mostrou mais trabalhoso de contornar.

Minha avaliação pessoal de quais músicas deveriam ser analisadas era inútil para fins científicos; chegar-se-ia, apenas, a um conjunto de rimas relevantes para o autor do trabalho. Por mais acertadas que fossem as escolhas, diversos gêneros fora de meu interesse musical seriam negligenciados involuntariamente, tornando-se necessário um critério mais objetivo e abrangente para selecioná-las. Pois bem, se o trabalho pretendia versar sobre as rimas da música popular, o critério deveria ser baseado nas canções que foram mais bem-sucedidas em termos de popularidade num período específico de tempo – ignorando valores “artísticos” ou “culturais”, ambos bastante pantanosos, também. Mas como medir o que é uma música “popular”?

A resposta inicial, claro, é pela vendagem de discos. Artista popular é aquele que vende, que completa a cadeia criação-divulgação-consumo e movimenta a indústria musical. Nada errado com essa teoria, mas sua aplicabilidade encontra diversos empecilhos na prática. O primeiro: gravadoras brasileiras costumam ser terrivelmente desorganizadas e controversas na contabilização de seus produtos. Isso pode ser constatado pelo grande número de artistas que afirmam terem sido lesados em seus direitos sobre vendas (a batalha de Lobão pela numeração dos discos durante os anos 90 foi notória) e por episódios constrangedores como o que ocorreu com o cantor Supla em 2002, quando teve que devolver seu disco de ouro por cem mil cópias “vendidas” de Político e Pirata (o álbum, na verdade, tinha sido apenas adquirido em consignação por uma cadeia de supermercados). Em outubro de 2006, a matriz inglesa da EMI demitiu todo corpo de executivos de sua filial brasileira, que havia inflado de maneira artificial seus relatórios de lucro em pelo menos R$ 48 milhões.

Ainda no campo das vendagens de discos, o número de fusões, falências e vendas de catálogo de gravadoras antes da estabilização do mercado nas “quatro gigantes” – Sony/BMG, Warner, Universal e EMI – foi tamanho no Brasil na prática é impossível conseguir dados confiáveis sobre vendas de discos antes da década de 90.

O segundo empecilho à utilização das vendas como critério para definir uma canção “popular” é talvez mais profundo: o número de exceções a essa relação é muito grande – talvez nem se possa chamá-las de exceções. Explicando melhor: a venda de CDs no Brasil muitas vezes não está relacionada à popularidade momentânea de uma música, que é o que nos interessa nesse trabalho.

Um exemplo pode ser encontrado em 2003, quando entre os dez discos mais vendidos do ano encontravam-se três da Legião Urbana. O dado é notável, fazendo supor que a banda teve músicas muito populares naquele período, mas na verdade ela sequer consta entre as cem mais tocadas nas rádios em 2003. O último CD de inéditas da banda (Uma Outra Estação) é de 1997. O que aconteceu naquele ano, como é comum com artistas de público grande e fiel, foi o lançamento de duas coletâneas com registros de shows, que vendem por conterem sucessos antigos (o terceiro disco da Legião no top 10 era Mais do Mesmo, coletânea de estúdio lançada em 1998). Roberto Carlos é outro exemplo do fenômeno.

Mas o principal argumento contra utilizar as vendas como critério de popularidade é o simples fato de que as pessoas não estão mais comprando discos. Desde a popularização da troca de arquivos pela internet e a facilidade da “queima” de CD-Rs caseiros, no fim dos anos 90, o mercado fonográfico amarga seguidas quedas de vendas materiais. Prova melancólica disso foi quando a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) diminuiu pela metade a quantidade de CDs necessários para distribuir seus certificados de Disco de Ouro (agora cinqüenta mil cópias), Disco de Platina (125 mil) e Disco de Diamante (quinhentas mil), em 2004.

O golpe foi especialmente duro para os novos lançamentos de discos, que são os que importam quando se analisa a música de uma época específica. De acordo com dados da ABPD, de 1997 até 2002 a venda de CDs em geral caiu em 56%. Mas quando se compara apenas a vendagem dos lançamentos em 2002 com os de 1997, a queda foi de 68%. Ou seja: um disco lançado em 2002 não vende sequer um terço do que vendia cinco anos antes.

O consumo de música, é claro, não diminuiu. A cada ano a tecnologia desenvolve novos formatos e produtos relacionados a música, sejam DVDs, dualdiscs com mixagens tridimensionais de áudio, aparelhos de MP3 portáteis, ringtones de diversas qualidades, venda de videoclipes, sites comunitários gratuitos como Last.fm e MySpace etc. Com tudo isso em mente, conclui-se que a melhor forma de análise do que é uma música popular seria uma somatória de todos estes novos formatos, simultâneos e constantemente mutáveis.

Resumindo, uma tarefa inviável. O consumo digital, livre de plataformas físicas como o CD e o vinil, é sem dúvida alguma o futuro da indústria da música, mas suas formas controladas (e, portanto, contabilizáveis) ainda são muito incipientes no Brasil. Uma pesquisa encomendada pela ABPD estima que em 2005 tenha-se trocado no país uma quantidade de MP3 equivalente a R$ 2 bilhões, o triplo do que a venda de CDs e DVDs arrecadou no período (R$ 615 milhões). A mesma pesquisa apontou que naquele ano gravaram-se 52 milhões de CD-Rs, 13% a mais que o número de CDs vendidos. Isso, claro, sem contar o mercado de CDs piratas, que em 2003 já ultrapassava o número de discos oficiais vendidos em sete milhões.


São números impressionantes, mas ainda pouco palpáveis: o que essas pessoas estão ouvindo? O que gravam em seus CD-Rs? O que comprariam se não tivessem essas alternativas? O catálogo ainda escasso e a falta de hábito dos brasileiros impedem que serviços de música vendida online sejam tomados como parâmetro, deixando-nos perante um mostro sem face do consumo digital no Brasil.

Antes que a escolha do método e recorte analítico se tornasse mais trabalhosa que a análise em si, ocorreu-me uma alternativa bastante vantajosa: pautar-se pelas tabelas de execuções de músicas nas rádios brasileiras. Pode parecer estranho, após toda essa elucubração tecnológica, recorrer a uma mídia que é mais antiga até que a gravação em acetato, porém vários caminhos levam a ela.

O primeiro é que, apesar de sua curva de arrecadação publicitária também se encontrar em declínio, o meio rádio ainda é onde a música se torna de fato popular no Brasil. Isso porque o rádio, dada sua natureza “acidental” (não é preciso parar para ouvi-lo, como no computador ou na loja de CDs), atinge também um público que não está disposto a gastar com música, ainda que goste de consumi-la. A televisão também tem música de graça, mas não com a mobilidade e a freqüência que o rádio oferece.

A segunda e mais atraente vantagem é que as rádios musicais vivem de procurar a canção mais popular, de medir sua aceitação com o público, de acompanhar o que “pega” ou não, analisando todo tipo de fatores possíveis – ou seja, fazendo de antemão o que seria meu trabalho. Sua preocupação, assim como a deste trabalho, não é “artística” ou “cultural” (deveria até ser, mas essa é outra discussão), e sim prática: o que as pessoas querem ouvir? O que é mais popular?

Não se ignora aqui todo histórico de práticas questionáveis da indústria fonográfica para inclinar rádios a tocarem determinadas músicas, o tão falado jabá. Mas consideramos que 1. as gravadoras não têm mais dinheiro para pagar pelo sucesso de todas as suas músicas, ainda mais a todas as rádios; 2. a “vida popular” de uma música não costuma durar mais de quatro meses; 3. O sucesso de uma música pode ser disparado artificialmente, mas não se mantém se ela não “pegar” de fato – de outro modo bastaria pagar pelas execuções e recolher os dividendos depois; 4. as eventuais distorções seriam compensadas pela soma dos resultados de um período relativamente longo.

O relatório das músicas mais executadas pelas rádios no Brasil é compilado toda semana pela empresa de consultoria americana Crowley Broadcast Analysis e repassado às próprias gravadoras, que pagam pelo serviço, bem como ao Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad), que se baseia nele para o repasse dos direitos autorais cabíveis. As tabelas utilizadas neste trabalho, que trazem as cem músicas mais tocadas por ano nas rádios de 2001 a 2005, estão disponíveis no site da revista Sucesso CD, especializada em mercado fonográfico.


COMO CONTAR RIMAS?
Ciente que minha abordagem das letras musicais era algo excêntrica, não procurei métodos prévios de contabilização das rimas: armado com o bom e velho programa Excel, montei uma planilha onde colocaria o par de palavras “rimantes”, o nome da música, seu intérprete e o ano em que esteve nas paradas de sucesso.

Logo no início da tabulação, ocorreu-me que poderia ampliar as possibilidades de análise com mais qualificadores para as músicas, razão pela qual incluí os itens gênero (nome da prateleira na qual o disco pode ser encontrado em uma loja comum, em geral referente mais à música que à letra) e tema (assunto tratado nos versos, independente do suporte musical).Cada um tinha sua tese a comprovar/desmentir: colocando a etiqueta de gênero nas músicas analisadas, poderia depois separá-las e apontar quais eram as rimas mais recorrentes em cada estilo, ou também verificar se preconceitos como “as letras de MPB são mais ricas” ou “o pagode é mais pobre” teriam algum fundamento. Considerei doze os gêneros presentes no material analisado, que serão melhor discutidos no Capítulo 5. A saber:

Axé - Ritmo frenético e sincopado baseado em danças e exaltações à alegria.

Brega - Baseado na figura do cantor/galã, sempre tratando de temas românticos, mas sonoramente apelativo a ponto de ser ignorado pela MPB.

Forró - Ritmo tradicional nordestino baseado em sanfona, triângulo e zabumba, quase sempre vinculado à dança.

Funk Carioca - Derivado do Miami Bass, uma mistura de batidas pouco produzidas, cantores amadores e letras escatológicas e/ou escrachadas.Hardcore Melódico - Variação específica de um gênero de rock pesado e rápido, com vocais cantados em tom alto e melodias de notas longas, facilmente memorizáveis.

MPB - Classificação genérica de compositores tidos pela opinião popular (e pela própria comunidade artística) como “música brasileira refinada”, geralmente baseada em violões, com harmonias mais complexas que o samba e o pop.

Pop - Música composta e executada para targets específicos de mercado jovem, em geral adaptando fórmulas de sucesso no exterior, muito apoiada no trabalho de produtores e na imagem dos intérpretes.

Pop/Rock - Engloba artistas que compõem seu próprio material, mas valendo-se de elementos semelhantes aos do pop (guitarras, teclados, tendências internacionais, imagem) e ainda direcionado ao consumo de massa.

Rap - Estilo em que o cantor desfia rimas em tom declamatório, sem melodia, sobre base geralmente sampleada e repetitiva.

Reggae - Variantes ou seguidores do gênero jamaicano.

Samba/Pagode - Engloba tanto os sambas ditos “de raiz” quanto os conjuntos surgidos nos anos 90 que se utilizam da mesma estrutura de arranjo num conceito pop.

Sertanejo - Adaptação nacional para o country americano, quase sempre cantada por uma dupla – herança do gênero tradicional do interior de São Paulo e Centro-Oeste que lhe deu nome.

A classificação de temas, por não se tratar de algo razoavelmente estabelecido como os gêneros musicais, incorre muito mais na subjetividade de interpretação. É sempre discutível afirmar qual foi o tema de um objeto artístico, e muitas vezes o objeto trata de vários temas ao mesmo tempo. O limite para um tema, também, varia com a vontade do analista: uma canção que narra uma batida de carro pode ter seu tema descrito tanto como “perigos do trânsito” quanto “perenidade da vida”, “justiça divina”, “sorte e azar”...

A preocupação, aqui, foi separar grupos que poderiam gerar alguma observação interessante ao fim do trabalho, tendo em vista o universo de assuntos que as canções analisadas abordam. Seriam as canções que falam de relacionamentos mais propensas a se valer de “muletas estilísticas” que as de protesto? Acredito ter chegado numa divisão satisfatória em sete temas relevantes para descrever o conteúdo lírico de uma canção (levando-se em conta que mais de um tema pode aparecer na mesma):

Crônica - Relata acontecimentos da rotina do eu-lírico, não necessariamente tomando partido sobre eles.

Filosofia de vida - Professa um ponto de vista do eu-lírico sobre o assunto da canção. Pode aparecer vinculado a outros temas, como Romantismo ou Crônica. Engloba também conceitos como epicurismo, rebeldia, paz e amor, escapismo, feminismo e “ismos” afins.

Humor - Tem o humor como parte significativa do conteúdo da canção.

Sentimental - Fala de uma relação amorosa entre duas partes. Quase sempre aparece em primeira pessoa, engloba o que se costuma classificar (erroneamente) de “música romântica”.

Sexual - Tem a sensualidade e o ato sexual (aludido ou explícito) como parte significativa do conteúdo da canção. Costuma aparecer vinculado a uma dança que a música sugere.
Infantil - Letras com intenção temática de agradar a crianças.

Outro qualificador que considerei oportuno incluir na tabulação foram as rimas no infinitivo. A razão é mais empírica que teórica: em minha curta experiência como compositor de letras musicais, notei de pronto a facilidade (e conseqüente tentação) de utilizar verbos no infinitivo para resolver estrofes que pedem rima. A língua portuguesa é assaz generosa nesse aspecto, oferecendo em três terminações (-ar, -er, -ir) uma quantidade inesgotável de palavras rimantes.

Com o tempo, em uma observação sem maiores critérios que a curiosidade, detectei que a relação entre a pobreza de uma letra e sua parcela de rimas no infinitivo era quase sempre diretamente proporcional, e tomei isso como critério desde então. No mesmo espírito de “provar o que se diz no bar” (rima involuntária, mas não infinitiva) que inspira este trabalho, incluí um campo para visto caso a rima analisada fosse feita com dois verbos no infinitivo, a fim de poder isolá-las e estudá-las em separado.

Antes de procedermos às tabelas em si, relaciono aqui a análise de uma letra que exemplifica os conceitos recém-expostos, além da abordagem tomada com rimas de três palavras. Dado que o mais comum são rimas do tipo ABAB ou ABCB, eventualmente o compositor pode escolher formatos como o ABCBDB ou mesmo ABABAB, como o fez Carlinhos Brown ao escrever Maimbê Dandá, razoável sucesso na voz de Daniela Mercury em 2004:

Corre Cosme chegou (A)
Doum alabá (B)
Damião Jaçanã (C)
Pra levar e deixar (B)
Alegria de Erê (D)
É ver a gente sambar (B)

Meu look laquê (A)
Mandei cachear (B)
Me alise pra ver (A)
Meu forte é beijar (B)
Vou cantar maimbê (A)
Pra você se acabar (B)

Maimbê, maimbê dandá (x8)

Zum, zum, zum, zum zum baba (x2)

Traga a avenida com você (A)
Tava esperando maimbê (A)
Zum, zum, zum, zum zum baba (x2)

Oiá Esparrei (A)
Me ensine a espiar (B)
Com os olhos de quem (A)
Me cega de amar (B)
Vou cantar maimbê (A)
Pra você se acabar (B)

De acordo com os critérios do presente trabalho, a análise dessa letra seria feita da seguinte forma:


Como se pode observar, as rimas de três palavras (alabá/deixar/sambar, laquê/ver/maimbê, cachear/beijar/acabar, Esparrei/quem/maimbê, espiar/amar/acabar) foram destrinchadas em dois pares de palavras cada, como duas rimas diferentes. Essa opção tem a desvantagem de aumentar artificialmente a quantidade de vezes que a palavra “do meio” (deixar, ver, beijar, quem e amar) é notada na pesquisa, mas mantém a rima como uma unidade binária, o que é vital para a nossa análise. Por aparecerem em muito menor número, as rimas de três elementos não configuram distorção considerável na ocorrência das palavras, que será melhor explorada no Capítulo 5.

Note-se que tanto as rimas de uma palavra só como babá x babá, que a rigor sequer rimas são, quanto as rimas repetidas na mesma música são ignoradas na contagem. Nos casos de seqüências de quatro versos com a mesma terminação (ABCBDBEB, por exemplo), encara-se a estrofe como portadora de dois pares de rimas distintos; nas seqüências de cinco, um par e um trio de rimas, e assim por diante.

Na tabela, as letras A e B não se referem à disposição de rimas das estrofes, e sim ao primeiro e segundo elementos das rimas, respectivamente. Tomei essa precaução tanto para evitar a duplicidade do mesmo par de palavras numa música (“amar x deixar” e “deixar x amar”, por exemplo) quanto para, a posteriori, poder agrupar os pares AB e BA na contagem, já que são a mesma rima, apenas em ordem inversa. A divisão torna possível, também, avaliar qual das ordens é mais recorrente.

A classificação do gênero como Axé teria grandes chances de desagradar a intérprete, que dedicada particular esforço em renovar sua imagem como uma cantora de MPB, mas ativemo-nos ao critério de onde seus discos podem ser encontrados em lojas. Os temas apontados foram Sentimental e Filosofia de Vida, pelas referências ao amor em primeira pessoa com um interlocutor específico e pelas exaltações ao carnaval e à alegria típicas do axé.

Ademais, pode-se argumentar que palavras como “Esparrei” e “quem” não se encaixam como rima, por não serem um par consoante, nem toante. O parâmetro primeiro na classificação de um par como rima ou não, na presente análise, foi a intenção da letra – algo um tanto abstrato, é verdade, mas não se pode perder de vista que nem todos os compositores de música popular são exímios teóricos da rima. Se a música em questão segue uma seqüência ortodoxa de versos rimados, o bom-senso parece indicar que um par como o supracitado (ou outros como “bermudão x chegou”, “intacta x máquina”) é mais provavelmente uma tentativa semi-bem-sucedida de rima do que um esforço deliberado em surpreender o ouvinte. De toda forma, mais uma vez, a ocorrência de situações do tipo não é suficiente para distorcer os resultados.

Ainda em Maimbê Dandá, pode-se notar que, das onze rimas que possui, cinco são formadas por pares de verbos no infinitivo. Tomando a liberdade de exercer um certo preconceito analítico, afirmo que, de 0 a 10, uma nota 5 para o esforço criativo que Carlinhos Brown dedicou à letra parece estar de bom tamanho, corroborando a utilidade do “fator infinitivo” na análise de composições. Mas, ainda que eficaz na prática, tenho consciência de que o método carece de atributos científicos.

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