Há 40 anos atrás Nelson Cavaquinho registrava em sua voz algumas da canções do seu repertório que entraria, nas décadas seguintes, para o hall dos clássicos de nossa música popular brasileira.
Por Bruno Negromonte
Nelson Cavaquinho - Série Documento - RCA Victor 103.0047 (1972)
“Por favor, não ouçam esse disco como se ele fosse de um cantor comum. Não cometam a injustiça de comparar Nelson Cavaquinho como se este cara fosse um desses cantores que estão sempre nas paradas de sucesso. Se isso acontecer, você poderá até não gostar da voz dele. É uma voz ao mesmo tempo rouca e fanhosa, não convencional. Detenha-se, portanto, no que há dentro desta voz, dentro deste camarada que você está ouvindo, nas entranhas deste genial poeta. Saiba que Nelson Antonio da Silva, ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro que jamais marchou com o passo certo, é um boêmio que nada encontrou na vida capaz de modificá-lo. Se ele tiver que continuar dando parceria ao quitandeiro que lhe vendeu fiado o alface e a banana, continuará. Nem o prêmio da loteria esportiva - ele, o único ganhador - o tiraria dos botequins infectos da Lapa e da praça Tiradentes. Nem o acontecimento mais terrível lhe impedirá de cantar seus sambas pros amigos.
Nelson Cavaquinho é, na minha opinião, um dos raros gênios da música popular brasileira. Ninguém como ele pega o lirismo popular, o ponto de vista popular, a visão popular, a poesia popular, o sentimento popular e expressa-os com tanto talento e força criativa. Ninguém como ele se confessa (naquele sentido que Manoel Bandeira dizia que Lima Barreto, o escritor, se confessava) de uma maneira tão bonita, tão emocionante. Oque eu quero dizer é o seguinte: poucos artistas mostram a sua alma e seu coração com tanta beleza quanto Nelson Cavaquinho mostra a sua nos seus sambas.
Nelson Cavaquinho faz música há uns 35 anos. Fez até alguns sucessos, como o samba "Rugas" (gravado por Ciro Monteiro, aqui mesmo na RCA), "Palhaço", "Degraus da vida", "Aflor e o espinho" e outros. Apesar disso, ele nunca foi um cara de andar atrás de cantores para gravar suas músicas. Quem quisesse que fosse ouvi-lo nos botequins - o seu mundo. Nem mesmo a sua Estação Primeira de Mangueira - para a qual compôs vários sambas - tirou-o da mesa do bar para desfilar. Nelson Cavaquinho é, rigorosamente, um puro. Preste atenção à sua letra. Verifique você mesmo que poeta extraordinário é esse camarada que jamais leu um livro de poesia na vida. (Perguntei-lhe, uma vez, qual era o seu poeta preferido e ele me disse que só tinha um livro em casa: um dicionário que ainda não tinha folheado). Sempre tive um certo desprezo por um tipo de contestação que foi moda na música popular brasileira, por uma filosofia "underground" que predominou durante algum tempo, exatamente por causa de pessoas como Nelson Cavaquinho, que já estava nessa há muito tempo e os observadores não sabiam. Nelson Cavaquinho já fazia contracultura há mais de 30 anos e os nossos contestadores musicais procuravam o modelo internacional para fazer a sua, desrespeitando inclusive os princípios daqueles que os levaram a adotar a posição que tomaram. Nelson, sim, jamais se enquadrou nos padrões da moda, jamais criou visando o consumo, jamais se rendeu aos padrões impostos por quem dita o gosto de quem se guia pelo apresentador-de-dia-da-televisão.
Portanto, ouça-o como se estivesse penetrando no âmago de um criador fabuloso. E você entenderá melhor os seus versos e suas intenções. E gostará muito da sua voz cheia de cachaça, de sofrimento e de boemia. E amará como nós - os nelsoncavaquinhistas - o amamos”.
Sérgio Cabral (texto presente na contracapa do LP)
Faixas:
01 - Quando eu me chamar saudade (Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
02 - Tatuagem (Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
03 - Eu e as flores (Jair do Cavaquinho - Nelson Cavaquinho)
04 - Palhaço (Oswaldo Martins - Washington - Nelson Cavaquinho)
05 - Sempre Mangueira (Geraldo Queiroz - Nelson Cavaquinho)
06 - Deus não me esqueceu (Armando Bispo - Ananias Silva - Nelson Cavaquinho)
07 - A flor e o espinho (Alcides Caminha - Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
08 - Degraus da vida (César Brasil - Antônio Braga - Nelson Cavaquinho)
09 - Notícia (Alcides Caminha - Norival Bahia - Nelson Cavaquinho)
10 - Lágrima sem júri (Fernando Mauro - Nelson Cavaquinho)
11 - Luto (Sebastião Nunes - Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
12 - Luz negra (Amâncio Cardoso - Nelson Cavaquinho)
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