Por Joyce Moreno
No Dia Internacional da Mulher o site MPB.com me pediu um texto sobre os 30 anos de lançamento do meu disco 'Feminina', seus desdobramentos e reflexos no nosso cancioneiro. Passado já um mês da publicação pelo site, peço licença aos leitores para reproduzir este texto aqui no blog.
Em 1980 minha vida estava mudando. Depois de um período de parada quase total das atividades musicais, por conta do nascimento de minhas filhas, voltei a compor direto, vi minhas músicas serem gravadas pelas mais importantes vozes do Brasil e finalmente fui convidada a gravar um disco meu pela EMI-Odeon. Este disco se chamaria "Feminina", e seria um marco em meu trabalho e em minha vida.
Para começar, porque pela primeira vez, eu tinha o controle absoluto do meu próprio trabalho. Tudo ali era pensado e criado por mim: as músicas, os arranjos básicos, os violões, os vocais, a maioria das letras, as idéias, o conceito. Pois era um disco autoral e conceitual, e refletia exatamente tudo o que eu queria dizer naquele momento, a partir do discurso no feminino singular, que no comecinho de minha carreira fora quase que apedrejado em praça pública. Enfim, era uma mulher assumindo o controle.
Quase todos os meus maiores sucessos de carreira estavam contidos naquele LP. Muitas daquelas canções já haviam sido gravadas por Elis, Milton, Nana, Bethania, Boca Livre e outras vozes. Mas ainda havia coisas inéditas, e com uma destas, "Clareana", fui classificada no Festival MPB-80 e explodi nacionalmente, no mesmo palco onde fora vaiada 13 anos antes ao cantar "já me disseram/ que meu homem não me ama". A menina de 19 anos que dizia "meu homem" em 1967 era chocante demais para o Brasil daquele momento. Mas a mãe que em 1980 cantava o amor por suas meninas estava livre para ser amada pelo povo brasileiro, àquela altura já cascudo por declarações de cama, mesa e banho, feitas por 10 entre 10 novas cantoras que chegavam na MPB aos borbotões.
Essa dicotomia santa/devassa sempre me incomodara na música brasileira, e eu não queria estar em nenhuma das duas posições. Por isso mesmo tinha feito, com minha parceira Ana Terra, músicas como 'Essa Mulher' e 'Da Cor Brasileira'. E propunha uma reflexão mais abrangente do assunto em 'Feminina', um samba-jazz-quase mandala, de mãe pra filha e de filha pra mãe, questionando se 'o cabelo, o dengo, o olhar' teriam mesmo tanta importância assim na construção da nossa identidade.
Hoje ninguém mais se assusta com mais nada, graças a Deus, e nós mulheres podemos inclusive pegar o bonde de volta pra casa e parir, criar, trabalhar, amar, fazer ou não fazer tudo isso ou nada disso, conforme nossa escolha. Tenho certeza de que a música brasileira foi importante nesse movimento. E cada vez que vejo no YouTube uma criança cantando 'Clara, Ana e quem mais chegar', ou um coral de meninas cantando "ô mãe, me explica, me ensina"', ou Maria Rita revivendo 'Essa Mulher' com lágrimas nos olhos, ou Maria Bethania cantando 'é o homem da cor brasileira, a loucura, a besteira que dorme comigo" - quando vejo tudo isso, sei que ter gravado o "Feminina" há 30 anos atrás teve alguma participação na construção do nosso imaginário feminino.
JOYCE - FEMININA (1980)
Faixas:
01 - Feminina (Joyce)
02 - Mistérios (Joyce / Maurício Maestro)
03 - Clareana (Joyce)
04 - Banana (Joyce)
05 - Revendo Amigos (Joyce)
06 - Essa Mulher (Joyce / Ana Terra)
07 - Coração de Criança (Joyce / Fernando Leporace)
08 - Da Cor Brasileira (Joyce / Ana Terra)
09 - Aldeia de Ogum (Joyce)
10 - Compor (Joyce)
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