Por Leonardo Davino*
De onde vem a canção
Ao que tudo indica, quando lemos um texto em voz alta estamos mais atentos ao conteúdo dele. Enquanto que quando cantamos o que importa é a expressão daquilo que é dito (cantado). Há uma vitalidade intrínseca que diferencia a palavra falada da palavra cantada. E essa vitalidade está manifesta na voz: é representada pelo sopro de ar que atravessa o corpo e se encorpa na garganta.
Obviamente os níveis de aproximação entre um ponto e outro são tenues e frágeis. Ou seja, pode haver, e muitas vezes há, conteúdo no canto, assim como pode haver expressão na leitura. Na leitura de um poema, por exemplo, o leitor, em geral, busca apresentar a trajetória do sujeito-lírico trabalhando a tessitura entoativa.
E assim caímos no campo das paixões. É calcado na paixão que o leitor e/ou o cantor imprimem mais ou menos vitalidade à palavra que seus pulmões lançam no ar depois de tocar (e ser tocada por) sua garganta, úvula e impregnar-se de saliva, na boca.
As canções, deste modo, são regidas pelo sensível, que, por sua vez, é a base da cognição. Pensar tais coisas exige a vocalização do logos. Exige reconhecer que nem só de escrita vive o Homem, mas também daquilo que é dito, cantado. Neste ponto, Freud poderia dizer que "o homem é dono do que cala e escravo do que fala. Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo".
Seja como for, há um gradiente de possibilidades entre a intenção do autor e a intenção do leitor. Para nós, é impossível falar sem fazer uso da curva melódica. Enquanto que um cantor trabalha a dicção de cada coisa que canta, faz escolhas e explora intensidades - acelerações, desacelerações.
Como mensurar a importância da leitura em voz alta à cultura e à construção de conhecimento, quando o acesso ao mundo da escrita era mais restrito? E até que ponto o leitor (sua voz: escolhas entoativas) interferiu na transmissão? O quão fundamentais são as histórias lidas às crianças? Isso sem contar as decisivas canções de ninar.
Isso tudo é para dizer que na canção (na materialidade da canção) o que determina sua eficácia é o modo de dizer da voz, mais do que o que é dito (o texto). É preciso analisar significantes e significados, a textura melódica, as pausas, a respiração... a vitalidade impressa na canção para chegar a alguma significação possível. Ou seja, para saber de onde vem a canção.
Guardado no disco Chão (2011), o sujeito da canção "De onde vem a canção", de Lenine, age atravessado pela pergunta-título. Sem resposta definitiva, mas cheio de suspeitas e afetos, ele recolhe instantes - "Quando do céu despenca / quando já nasce pronta / quando o vento é quem venta / (...) / Quando se materializa / No instante que se encanta / Do nada se concretiza" - a fim de empreender sua busca. Colocar-se no meio.
Investigar de onde vem e para onde vai a canção ("Quando tudo silencia / Depois do som consumado") é investigar a condição do Humano. O sujeito sugere, já que pergunta afetado pela canção, que ela vem e vai para dentro. Afinal, é quando finda que de fato a canção começa a ser processada em nós: entra para a nossa memória sonora - definidora daquilo que somos.
Cantor, Lenine joga com a perspectiva de que a canção só é canção quando não é mais sua (do autor, leitor, cantor): "quando nasce pronta, quando se propaga, quando se irradia" é que ela é ela - faz o vento ventar, no instante que se encanta.
Por outro lado, o sujeito criado por Lenine traz à tona a intuição como fator determinante para a definição da canção como linguagem. No Brasil, pelo menos. Nem músico, nem poeta de formação escolar: cancionista - agente da intuição vitalizada, da compatibilização intuitiva entre letra e melodia.
Intuindo e cantando, o sujeito de "De onde vem a canção" questiona sua posição no mundo e averigua - trabalhando sobre uma linha melódica sem falso apogeu - os modos de proceder e ser da canção. Sem saber de onde ela vem, o sujeito a canta. Sem saber de onde veio e para onde vai, o homem vive. E canta para manter-se encantado. Afinal, como Louise Bourgeois costumava dizer: "A arte é uma garantia de sanidade".
***
De onde vem a canção
(Lenine)
De onde
De onde vem
De onde vem a canção
Quando do céu despenca
Quando já nasce pronta
Quando o vento é quem venta
De onde vem a canção
De onde
De onde vem
De onde vem a canção
Quando se materializa
No instante que se encanta
Do nada se concretiza
De onde vem a canção
Pra onde vai a canção
Quando finda a melodia
Onde a onda se propaga
Em que espectro irradia
Pr'onde ela vai
Quando tudo silencia
Depois do som consumado
Onde ela existiria
De onde
De onde vem
De onde vem a canção
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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