Por Leonardo Davino*
Em Toque dela (2011), Marcelo Camelo se apresenta como um cantor de canções. Não apenas porque suas composições demonstram maior equilíbrio entre letra e melodia - mirando para trás podemos perceber várias canções de Marcelo em que a voz que canta aparece intencionalmente em descompasso com a moldura melódica -, mas também porque podemos sentir ressonâncias de outras canções dentro das novas canções.
Desde o primeiro verso do disco - "triste é viver só de solidão", que remete o ouvinte à canção "Triste": "Triste é viver de solidão" -, passando por "Pretinha" (reminiscência sonora de "Preta, pretinha"), até os versos de "Despedida" - "eu não sou daqui também marinheiro", que restitui "eu não sou daqui, marinheiro só", de "Marinheiro só" - há um sujeito que recupera o passado das canções e canções do passado para interpretar seu atual estado (solitário) de espírito.
O recurso da metacanção é trabalhado com propriedade crítica e estética também no nível da melodia: além dos trompetes anos 1970, como não notar ecos de "Teus olhos"(Marcelo Camelo) dentro de "Acostumar" (Marcelo Camelo)? E como não destacar em "Acostumar" (Marcelo Camelo) o "ôô ôô" da canção "Ôô" (Marcelo Camelo)?
Colocando versos e harmonias para girar - juntando caquinhos de um velho/novo mundo -, Marcelo Camelo engendra um cuidadoso artifício intracancional: da canção que trata dela mesma e dentro de si: tecendo versos e motivos sonoros; justapondo vozes e desdobrando temas: como a solidão (fera devoradora).
A musa do disco é morena e está presente em várias canções. Em "Pra te acalmar", de Marcelo Camelo, o sujeito é o sabiá que consola a morena quando o mundo desaba e o medo se aconchega sob o lençol: "Passo essa canção pra te acalmar", diz.
Um sabiá que, por gozar da liberdade, investe na condição terrivelmente só do humano e exalta a soltura da morena - "esteja morena você onde estiver / achada no peito de um outro protetor ou solta" - e, por isso mesmo, torna ela escrava do canto de reconhecimento que ele entoa para ela.
O sujeito de "Pra te acalmar" sabe e canta a dor de não caber em si: das relações afetivas com seus gestos desperdiçados. Ele nina a morena indicando possibilidades de novas estações. Ele sustenta o voo da morena na voz, na canção que compõe para ela: "gente é pra voar", diz.
Como um cantor que passa uma canção antes do show, ele afirma o quanto é natural canta-la: dar-lhe vida, pois, assim como as canções só existem se tocadas, a morena existe na voz de seu cantor.
***
Pra te acalmar
(Marcelo Camelo)
Passo essa canção pra te acalmar
esteja morena você aonde for
você sabe bem onde fica toda dor, morena
a chuva e um tanto de tempo pra molhar
o vento que bate pra gente se secar
Passo essa canção pra te acalmar
esteja morena você onde estiver
achada no peito de um outro protetor ou solta
que a gente na foi feita pra voar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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