segunda-feira, 26 de agosto de 2013

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 09


CAPÍTULO 9 


Poucos dias depois, fiz a mala, peguei o trem para Paris, alojei-me no quarto de empregados dos de Forceville, 64 rue François 1#, e procurei um trabalho como confeiteiro. Encontrei uma vaga em Passy, reduto da alta burguesia, numa loja importante, com mais de trinta empregados. O horário era puxado: das 5h às 19h; e aos domingos, das 4h às 14h, com folga na segunda feira. Aproveitava as tardes de domingo para ir à Cave du Vieux Colombier para ouvir o grupo New Orleans, do Claude Luter, que freqüentemente acompanhava o genial Sydney Bechet , ou ia, com Jean Louis e seu pai, a uma partida de rugby. À noite, jantava na casa deles ou na dos de Forceville. 

Minhas segundas-feiras eram dias de descanso, tristes e solitários, porque meus amigos tinham aula. Eu levantava, ouvia música ou estudava bateria, almoçava no quarto umas peras com pasta de anchovas, ou ia comer um bife com fritas. À tarde ia ao cinema e, à noite, ia cedo para a cama, para recomeçar na terça-feira, às cinco da manhã... 

Demonstrei tanto talento e vocação que fui mandado para uma escola profissional em Basel, na Suíça, para um estágio de aperfeiçoamento de dois meses. Lá aprendi coisas maravilhosas, como trabalhar o açúcar como se fosse vidro, soprando as bolas de açúcar derretido para transformá-las em vasos ou frutas, ou utilizando outra técnica para imitar pétalas de flores, em arranjos certamente muito cafonas, mas de grande efeito. 

À noite, entretanto, eu me sentia solitário. Tive a brilhante idéia de visitar o “Hot Club” de jazz local, dizendo, para dar mais importância à minha pessoa, que era amigo do músico americano Mezz Mezzrow, à época um dos papas do estilo New Orleans. Ele tinha fixado residência na França para fugir da justiça americana, por envolvimento com o tráfico de drogas. Era judeu sefardita, de tez tão escura que se fazia passar por negro. Os negros, dizia, eram menos segregados que os judeus, naqueles dias. Era baixinho e gordinho, e escreveu, em parceria com Bernard Wolfe, um livro famoso — um tipo de bíblia para a minha geração —, La Rage de vivre engraçado, sobre a situação racial nos Estados Unidos e a discriminação contra os músicos de jazz. O efeito da mentira foi fulgurante! O clube passou a ser minha família em Basel. Uma noite, porém, com grande alarde, o pessoal me avisou que o tal Mezz Mezzrow ia se apresentar na cidade no mês seguinte. E agora? Escrevi uma carta para Mezz Mezzrow, aos cuidados do Hot Club de France em Paris, na qual explicava os motivos da enorme mentira. Coloquei minha vida em suas mãos: ou ele compactuava comigo e eu estava salvo, ou... 

O dia do concerto chegou. O pessoal do clube tinha reservado uma frisa no teatro, e estávamos todos apinhados — eu na primeira fila, no lugar de honra, o coração palpitando. Mezz e os músicos entraram e o concerto começou. Lá pelas tantas, vejo o Mezz tocando o clarinete e apontando da esquerda para a direita, de baixo para cima, como que procurando alguém ou alguma coisa. Quando o clarinete apontou em nossa direção, acenei, e ele e seu clarinete fizeram o sinal de que estava tudo bem — ele iria salvar minha vida! 

Ao final do concerto, nós nos precipitamos para felicitar os músicos, apresentei Mezz a meus 
companheiros — que ele recebeu, se me lembro bem, de braços abertos — e fomos todos jantar por conta do clube de jazz... O baterista Zutty Singleton era meu ídolo; eu costumava aprender a tocar bateria em cima das suas gravações. Eu o olhava comendo ovos fritos como se nunca tivesse visto aquilo. E creio ter comido ovos fritos, dali em diante, ao “estilo Zutty ”. Prometi a mim mesmo nunca mais mentir, promessa que levei ainda anos para cumprir, mesmo que em parte. 

Voltei para Paris e recomecei a trabalhar. Uma terça-feira de madrugada, pouco antes do Natal, como em muitas madrugadas, eu esvaziava um saco de cinqüenta quilos de açúcar num gavetão quando as forças me faltaram e caí, o saco por cima de mim. Levantei, sentei sobre o saco, olhei ao redor, olhei para todo aquele movimento de trabalho intenso, para toda aquela gente, com a qual eu não tinha relação alguma, e constatei, com tristeza, que estava condenado àquela vida para sempre. 

Parecia que o mundo dos meus sonhos — o da música ou o do disco — estava muito distante da minha existência naquele momento e que, aos vinte anos, já era tarde para mudar seu curso. Eu me via como um náufrago que não consegue subir até a superfície do mar. 

Passou o inverno, chegou a primavera, e com ela uma segunda-feira, dia da minha folga melancólica e solitária. Chovia uma chuva cinza, que caía das nuvens cinza, sobre uma Paris mais cinzenta ainda. Era de tarde, eu vinha da Rive Gauche pela rue Bonaparte, atravessando o rio Sena, passando pelo Louvre e subindo até a Place de l’Opéra pela avenida do mesmo nome, quando vi um cartaz que cobria de dois a três andares do prédio do cinema; anunciava o filme principal e o documentário que abria a sessão. Não tenho mais a mínima lembrança do filme, mas o título do documentário, Jammin’ the Blues, esteve, está e sempre estará gravado na minha memória. Era manifestamente uma filmagem sobre o jazz, fato inédito na época. 

Como não existia televisão,VHS ou DVD, só podíamos nos familiarizar com nossos ídolos musicais por fotografias em preto-e-branco na única re-vista mensal especializada da França, a Jazz Hot, ou quando aconteciam os poucos concertos durante os festivais de verão. 

Por todos esses motivos e pela magia do título do documentário, comprei minha entrada, sentei, esperei terminar a apresentação das notícias da semana e dos anúncios publicitários. Quando enfim as luzes se apagaram, a tela ficou completamente escura durante longos instantes. Em silêncio, a fumaça de um cigarro começou a cortar a tela verticalmente, o som de um contrabaixo em andamento lento tornou o ambiente mais dramático, a escuridão na tela se fez um pouco mais leve, aparecendo, pouco a pouco, um círculo ligeiramente claro, do tamanho da tela inteira. A fumaça, que só podia ser de um cigarro, subia e dividia o círculo agora verticalmente; a bateria se juntou ao baixo, o saxofone deu a primeira nota, ao mesmo tempo em que se descobria que o círculo era o topo do chapéu do Lester Young . Ele, naquele instante, levantava a cabeça para tocar essa primeira nota, segurando o sax, como sempre, enviesado quase horizontalmente para o lado direito. O cigarro, sempre entre os dedos, projetava a fumaça que cobria a tela por inteiro... 

A jam session começava com o grupo agora completo. Puro blues! A qualidade artística dos planos e da filmagem era emocionante! Os claros e os escuros super sofisticados recordavam, na maior pureza, o estilo da escola Bauhaus. O curta-metragem durou cerca de dez minutos e eu ali, grudado na poltrona, totalmente enfeitiçado...Voltei na semana seguinte, fiquei para mais algumas sessões e ainda mais emocionado ao penetrar cada vez mais profundamente na alma do documentário; chorava, chorava... Ao sair do cinema minha decisão estava tomada: a minha trajetória na confeitaria tinha que acabar o quanto antes, e de qualquer maneira.

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