Por Abílio Neto
Foi num mês de março do já distante 1956 que a cantora Marinês desembarcou no Rio de Janeiro ao lado do seu marido, o sanfoneiro Abdias.
Primeiro, uma lição do mestre Câmara Cascudo sobre a música de raiz e, em seguida, a crítica de alguém que entende muito do riscado, sobre a cantora Marinês:
“Marinês merece – e sempre mereceu – todas as homenagens que nossos ouvidos, às vezes por demais urbanizados, se negam a prestar ao nordeste e a seu povo. Ainda sobre essa coisa abominável, que é o preconceito contra o simples, o puro, o visceral, a raiz, assaltou-me inda agorinha uma conversa lapidar com o sábio Luiz da Câmara Cascudo. Dele ouvi, numa das últimas visitas que lhe fiz em Natal, mais ou menos o seguinte:
“ – Mas, mestre, e esses críticos que ridicularizam a música de raiz, dizendo que raiz é mandioca crua, que só dá dor de barriga, se comida?”
“ – Não se avexe, não, meu filho. Esses pobres diabos não sabem nada de nada, ao propor frases idiotas para maus propósitos. E de mais a mais, comer macaxeira só faz bem e dá sustança, tanto quanto a música de raiz. Não esqueça que é ela que sustenta e molda o caráter nacional. Negá-la é negarem-se os pilotis do Brasil, para ficar só com o forro. Muitas vezes de material tão ruim que qualquer ventinho mais afoito leva lá pros cafundós.”
"Na semana seguinte, já no Rio, visitei outro brasileiro monumental, Luiz Gonzaga. Contei-lhe da conversa com Cascudo, que de imediato o comoveu. E enquanto Gonzaga desembaçava os óculos suados pela emoção incontida, fez-me um pedido surpreendente:
– Pois o senhor saiba que eu preciso de seu apoio para uma macaxeira de lei, pura raiz, que se chama Marinês, a quem estou convidando para uma turnê comigo pelo país todo.
Os olhos, ou melhor, um dos olhos sadios do grande artista, o outro era quase cego, brilhou com intensidade enquanto discorria sobre Marinês. Pedi para ouvir alguns de seus LPs e lá fiquei todo um belo final de tarde na Ilha do Governador – Gonzaga morava num casarão perto da praia – apenas a ouvir Marinês e a testemunhar o encantamento do Rei do Baião pela futura Rainha do Forró.
Comecei a amar Marinês. Uma voz encorpada e cálida, uma presença exuberante e um repertório que só inclui as vísceras do nordeste, sempre fizeram dela uma figura muito especial e vigorosa dentro da MPB.
Marinês, na verdade, andou sumida um tempão pela falta de respeito aos valores permanentes, que prefere incensar bobagens passageiras como as garotas que cantam (cantam?) essa “pornô-music”, a “bunda-music” chinfrim e desqualificada.
Por isso tudo, saúdo daqui esses anos todos de permanência, respaldados em dignidade e correção. Marinês, além do que, é também rara porque quase solitária no seu matriarcado como cantora. O que quer dizer isso? Quer dizer duas coisas: primeiro, que Marinês, mesmo esquecida pelo volúvel eixo Rio - São Paulo, jamais deixou de fazer sucesso no nordeste inteiro, como única mulher envergando as ferramentas de gigantes do porte de Gonzaga e Jackson do Pandeiro.
E, finalmente, porque Marinês nunca cantou outra música que não fosse o forró, o xote, o baião, o coco. Ou seja, toda a visceralidade da força do nordeste. Sem concessão”. (Ricardo Cravo Albin)
Pronto, agora é a minha vez de dizer algumas leseiras depois desses mestres. Pela discrição do local da residência de Luiz Gonzaga, o encontro dele com Ricardo Cravo Albin se deu por volta de 1962 ou um pouquinho antes.
Marinês e Abdias ao chegarem ao Rio de Janeiro em 1956, se hospedaram no palacete que seu Luiz Gonzaga tinha no Méier e formaram imediatamente o novo grupo musical que o acompanharia. Luiz trabalhava alternando Wilson Caxangá no triângulo e Aloísio (irmão caçula dele) na zabumba, com Zito Borborema e Miudinho.
A conhecida “tropa de choque de Luiz Gonzaga”, um grupo de imitadores que sempre chegava antes nos lugares aonde ele iria se apresentar, era formada por Marinês, vocalista e triangueira, Abdias, o marido, na sanfona, e Chiquinho, o cunhado, na zabumba.
Pedro Chaves, então prefeito de Propriá/SE, em 1955, foi o encarregado de fazer a apresentação da tropa de choque a Luiz Gonzaga num almoço. A boa impressão de Luiz Gonzaga por Marinês teve um acontecimento inesperado: depois do almoço ele chamou o trio para tocar no hotel onde estava hospedado e começou a ensinar Marinês dançar xaxado, coisa que ela ainda não sabia. Daí foi que saiu o convite pra ir ao Rio de janeiro e serem seus hóspedes.
Chegando eles ao Rio, em março de 1956, Luiz Gonzaga adotou logo outro nome artístico para suas apresentações: “Luiz Gonzaga e Seus Cabras da Peste”. Os cabras da peste eram Marinês, Abdias, Zito Borborema e Miudinho. Aloísio, irmão de Gonzaga, não teve saúde para continuar e Luiz deu-lhe um posto de gasolina em Miguel Pereira/RJ. Mas o conjunto teve vida curta: foi desfeito em dezembro de 1956 em função do ciúme de Helena Gonzaga por Luiz junto com Marinês. Muito antes disso, Luiz Gonzaga com Zé Dantas fizeram um baião especialmente para que Marinês, a futura Rainha do Xaxado, fizesse sua estreia em gravação. Foi num disco de 78 rotações de Gonzaga na música “Mané e Zabé” no lado A e que tem “Lenda de São João” no lado B, produto que chegou ao mercado de discos em maio de 1956.
Marinês estreou em disco próprio em 1957 pela gravadora Sinter e lá ficou até 1959. Em 1960 se transferiu para a RCA onde permaneceu até 1966. Em 1967 foi fazer companhia ao marido na CBS.
Certa vez, Marinês deu essa declaração: “Eu era louca, apaixonada por Gonzaga, mas ele era o padrinho do meu filho (Marcos Farias, sanfoneiro) e no Nordeste dizem que se compadre e comadre transam, viram bicho. Então, eu jamais teria um caso com ele”.
Nada apaziguou Helena Gonzaga e assim sendo Abdias formou outro conjunto composto por ele, Marinês e Cacau, antigo zabumbeiro de Gonzaga. Esse conjunto foi aquele mesmo batizado por Chacrinha como “Marinês e Sua Gente”. Abdias, que era muito bom na sanfona de 120 baixos e um monstro na de 8, teve o reconhecimento de seu Luiz como grande músico, tanto que foi ele quem o incentivou a seguir carreira solo independente daquela outra que pretendia continuar com sua esposa.
Quando Marinês e Abdias se apresentavam com seu Luiz, Abdias só tocava sanfona quando Gonzaga ia dançar. Fora disso, era no conjunto um simples percussionista. Mas isso lhe proporcionou um aprendizado arretado, tanto que também se tornou craque naquilo que Luiz Gonzaga chamava de introduções para as músicas, na realidade, nada mais nada menos do que os arranjos.
Arretado com o desfazimento do “Luiz Gonzaga e Seus Cabras da Peste”, Luiz também despediu Zito Borborema e Miudinho, mas generoso, permitiu que continuassem morando na sua casa. Foi quando entrou dona Helena na história e preocupada com o desemprego dos dois, chamou o sanfoneiro Neném (Dominguinhos) e aí surgiu o primeiro Trio Nordestino.
Marinês e Sua Gente faziam carreira na RCA, mas eis que no fim de 1962, Abdias foi contratado pela CBS, tanto para gravar como instrumentista de oito baixos quanto para ser o responsável pelos arranjos dos discos dos talentos nordestinos que pertenciam ao quadro da gravadora.
E tão bem se deu Abdias nessa função que em pouco tempo foi alçado à condição de diretor artístico da gravadora. Foi por esse período que ele deu início à celebre coletânea de forró chamada Pau de Sebo que durou duas décadas.
Abdias poderia (mesmo pertencendo a outra gravadora) acompanhar Marinês nas gravações dos seus LPs, mas naquele fim de 1962, em função das suas novas atribuições de gravar com os nordestinos da CBS, os quais tinham que lançar seus discos três meses antes do São João, pediu a Luiz Gonzaga (que era da RCA) que acompanhasse com seus músicos a cantora Marinês na gravação de algumas músicas do disco que ela iria lançar em 1963.
Sendo assim feito, no disco lançado em fins de março de 1963 – Coisas do Norte – houve a fundamental participação de Luiz Gonzaga, na sanfona, em algumas faixas do disco e, em especial, na faixa 11, uma gostosa composição de João do Vale e Ary Monteiro, dois grandes compositores de forró.
Quando se juntam quatro pessoas desse nível artístico, o resultado é uma festa aos nossos ouvidos de amantes do legítimo forró pé-de-serra. Você encontra dentro da música nordestina, inúmeras páginas carregadas de autenticidade e beleza, mas não mais do que essa!
O arranjo de sanfona de seu Luiz é aquele seu conhecido feijão com farinha e rapadura, coisa que seus imitadores se danam e não conseguem fazer igual. E Marinês cantando dispensa qualquer adjetivação.
A música – Quatro Fia Feme – é uma das minhas favoritas entre todo esse vasto repertório da música nordestina. Ouço-a pelo menos umas quatro vezes por mês como se fosse uma oferenda que Deus deu ao meu ouvido bom, já que o outro é surdo.
Escutem as duas músicas - Mané e Zabé - e depois - Quatro Fia Feme - mas lembrem-se de que nessa segunda música Luiz Gonzaga não canta, só puxa a sanfona para Marinês soltar a voz.
É outro encontro monumental da música brasileira em dose dupla. Acho que é a apoteose do forró!
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