domingo, 15 de março de 2009

O PERFIL DA MULHER NA MPB NO PERÍODO DE 1930 A 1945 LÉXICO E DISCURSO – PARTE 01

Por Manoel Pinto Ribeiro (UERJ)

“Mulheres são seres de cabelos longos e idéias curtas”

A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESAQUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Análise de discurso – Contexto histórico e epistemológico

A Análise de Discurso surgiu na França, na década de 60, como resposta aos sintomas de crise (mudança no estatuto atribuído à análise do texto): crise na Lingüística; crise nas Ciências Humanas (História, Sociologia, Antropologia). Segundo Mariani (1997: 125),
A escola francesa de análise do discurso (de agora em diante AD) se apresenta como sendo uma teoria crítica da linguagem, constituindo uma disciplina que, por se situar no entremeio das ciências sociais humanas, encontra-se sempre reinvestigando os fundamentos de seu campo de conhecimento: as relações entre a linguagem, a história, a sociedade e a ideologia, a produção de sentidos e a noção de sujeito.
Os estudos no campo da língua deixam de se concentrar na palavra ou na sentença (limitando-se à frase), para ter como interesse o texto (Lingüística Textual, Semiótica e Análise de Discurso). Possibilita-se, assim, a instauração de novos objetos de análise: o texto e o discurso. Para este novo tratamento da língua, o texto não é uma simples soma de frases, mas um todo interligado, que significa.
A Análise de Discurso de linha francesa, foco deste trabalho, apresenta-se em duas correntes:
1. Análise de Discurso que concebe um sujeito onipresente com intenções e controle sobre o que diz (Charaudeau);
2. a que concebe um sujeito afetado pelo inconsciente e pela ideologia, constituído pela linguagem (M. Pêcheux).
Para a análise de discurso ora adotada, o discurso é um conjunto de textos disperso no espaço e no tempo: um discurso não se encontra todo reunido no mesmo texto. Ele está disperso por muitos textos, originários de diferentes “autores”, escritos em distintos espaços e em épocas diversas (Indursky, 1998: 10). Através do exame da materialidade do texto e da articulação do discurso com a história, pode-se atingir a discursividade. Assim, o texto, aqui, é considerado uma unidade aberta e pragmática, que se relaciona com a exterioridade, sendo marcado fortemente pela incompletude. Nessa perspectiva, o texto é o nosso objeto teórico, sendo lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade.
Além disso, o texto é afetado pela ideologia, posto que é na língua que ela se materializa, nas palavras dos sujeitos. Nesse sentido, o discurso pode ser considerado também como o lugar do trabalho da língua e da ideologia.
A análise nessa linha teórica permitirá que percebamos como um texto/dizer funciona, como produz sentidos como um objeto lingüístico-histórico.
O sentido, aqui, se dá no encontro da estrutura com o acontecimento (Pêcheux, 2003), por isso se pode falar em exterioridade de sentido, em pré-construído, interdiscurso. É nesse lugar de exterioridade que trabalharemos. É onde se encontram a ordem da língua e a ordem da história (Orlandi, 2004).
Outra categoria teórica que utilizaremos neste trabalho é a memória, que é a “re-atualização de acontecimentos e práticas passadas em um momento presente, sob diferentes modos de textualização, na história de uma formação ou grupo social” (Mariani, 1990: 38). Relendo as construções discursivas em torno da mulher no cancioneiro no período de 1930-1945, re-significaremos o lugar da figura feminina na memória sócio-histórica.

Paráfrase e polissemia: repetição e deslocamento do significado
A relação entre a paráfrase e a polissemia é contraditória, posto que ambas ocupam um lugar de tensão discursiva, um eixo que estrutura o funcionamento da linguagem (Orlandi, 1998). Um processo não existe sem o outro, o que conduz a uma diferença necessária e constitutiva. A paráfrase, em termos discursivos, é a reiteração, o uso do mesmo. Na polissemia, temos a produção da diferença.Tem-se uma relação entre o mesmo e o diferente, a produtividade e a criatividade na linguagem. O que funciona nesse jogo entre o mesmo e o diferente na constituição dos sentidos é o imaginário, é a historicidade na formação da memória.
Assim: 1) há um retorno ao mesmo espaço dizível (paráfrase), mesmo com variedade da situação e dos locutores: o MESMO; 2) há um deslocamento, um deslizamento de sentidos (polissemia), nas mesmas condições de produção imediata: o DIFERENTE.
Assim, na materialidade das letras do cancioneiro da MPB de 1930 a 1945, pretendemos perceber a identidade do jogo de sentidos entre paráfrase e polissemia, que configuram o confronto entre o simbólico e o político, ali em funcionamento.

O DISCURSO RELIGIOSO
A primeira notícia que se tem da ação da mulher é a da figura bíblica, que se encontra no Gênesis: 3, 6-7:
Viu, pois, a mulher que o fruto da árvore era bom para comer, e formoso aos olhos, e de aspecto agradável; e tirou do fruto dela, e comeu; e deu a seu marido, que também comeu. E os olhos de ambos se abriram; e tendo conhecido que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram para si cinturas.
O episódio bíblico é conhecido como a queda – ou perda da graça – de Adão e Eva e está inextricavelmente ligado à serpente que, em forma feminina, tentou a primeira mulher a provar do fruto proibido. A serpente é vista, por isso, como símbolo do logro e do mal causada pela língua solta, encarnando a tentação e o pecado (Bruce-Mitford. 2001: 59).
Eis o chamado pecado original, transmitido a todos os descendentes de Eva, que nascem em estado de culpa. Este pecado só pode ser regenerado, segundo a igreja cristã, pelo batismo. No texto bíblico nota-se o primeiro movimento discursivo cujos efeitos de sentidos relacionam à mulher a fraqueza diante do mundo, visto que foi Eva — ser de sexo fraco oposto, construído de uma ‘parte’ dispensável, diga-se de passagem, do corpo do forte homem — quem sucumbiu aos mandamentos divinos, “comendo o fruto proibido” e levando Adão ao infortúnio de ser desvirtuado e expulso por Deus do paraíso. Esse episódio bíblico parece marcar uma trajetória que irá, durante séculos, macular o papel da mulher no convívio social, devido aos reiterados processos parafrásticos a que será submetido.
Em textos medievais, encontramos a reprodução de discursos religiosos em que se inscrevem, por exemplo, efeitos de sentidos diabolizantes, que caracterizam a mulher como figura do “pecado”.
O imaginário daquela época tinha como discurso hegemônico que
Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é um animal imperfeito, sempre decepciona a mente (Araújo, 46).

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