sábado, 3 de outubro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Martinho da Vila

“Canta, canta, minha gente
deixa a tristeza pra lá
canta forte, canta alto
que a vida vai melhorar!”
MARTINHO DA VILA, “Canta, canta, minha gente”


Martinho da Vila é talvez o primeiro grande compositor de samba a ser um fenômeno de venda de discos. Referência da linguagem contemporânea do gênero, através de sua obra é possível mostrar como um ritmo quase secular, mesmo que pareça estar em um tempo diferente do das massas, pode-se impor no mercado por sua qualidade e suas características diferenciais.
Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, outro fenômeno que estourou pouco depois, são casos emblemáticos das ambivalências da indústria do entretenimento, que, apesar de trabalhar objetivando o lucro, deixa sempre brechas para que compositores musicalmente ricos se destaquem (falaremos mais um pouco disso ao fim do livro). Vejamos então a importância do menino de Duas Barras para a história do samba.
Delimitar o papel de Martinho da Vila no samba não é fácil. Pra começo de conversa, diga-se que ele popularizou o partido-alto (a partir da composição “Menina moça”, apresentada no Festival de MPB da TV Record, em 1967), renovou o samba-enredo e fez sambas antológicos, como “Você não passa de uma mulher”.
A música de Martinho é rica em melodia, ritmo e letra. Com voz malemolente, de características peculiares, ele canta letras que representam muito da ascensão mestiça na sociedade, mostrando mulheres intelectualizadas, indivíduos que ingressam na faculdade, relações afetivas entre pessoas de classes e etnias diferentes. Martinho compôs em clima de “milagre econômico”, momento em que as camadas medianas eram apresentadas ao consumismo.
Se Noel Rosa, nascido e criado em Vila Isabel, consolidou o samba urbano, Martinho foi o responsável pelos melhores sambas-enredos e partidos-altos compostos nesse mesmo bairro. Lá pelos idos de 1960, Martinho começou a reformatar o samba-enredo, com versos mais concisos e compasso mais acelerado, apresentando uma série de composições que o põem no patamar do imperiano Silas de Oliveira: “Quatro séculos de modas e costumes”, “Iaiá do cais dourado”, “Glórias gaúchas”, “Onde o Brasil aprendeu a liberdade”, “Pra tudo se acabar na quarta-feira”, “Raízes” (em que inovou, apresentando um samba sem rimas) e “Gbalá, viagem ao templo da criação” (samba que lhe rendeu o Estandarte de Ouro, prêmio conferido pelo jornal O Globo aos melhores do carnaval). Martinho criou ainda o enredo “Kizomba, a festa da raça”, que ganhou o título do carnaval carioca com brilhante apresentação da Vila Isabel em 1988.


“Milagre econômico”

O período em que o Brasil ficou sob o domínio dos militares, de 1964 a 1986, foi de um vertiginoso crescimento econômico. O chamado “milagre econômico” ocorreu nos primeiros anos da década de 1970. Sem espaço para o debate de idéias na sociedade, os militares controlaram o país com a anuência de nossas elites e implementaram mudanças que, se por um lado favoreciam alguns aspectos econômicos, por outro sedimentavam o gueto social já claramente existente. Liderada pelo ministro Delfim Neto, sob o comando do presidente Médici, a economia brasileira crescia a galopes.
Entretanto, a riqueza produzida ficava cada vez mais concentrada em mãos privilegiadas. O aumento da renda per capita não foi acompanhado pela melhoria das condições de vida da população, que ganhava pouco, era analfabeta e não tinha a infra-estrutura necessária para ter uma vida decente. Os militares e grande parte da elite nacional perderam a oportunidade de utilizar seus poderes discricionários para investir na melhoria de vida do povo brasileiro. Dinheiro havia. Era só uma questão de levar a cínica frase do ministro Delfim Neto ao pé da letra: “Temos que esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços.” O bolo cresceu e o povo ficou a ver navios...


Seus sambas, calangos e partidos-altos não são menos importantes. É ele o responsável pela abertura comercial para apreciação coletiva desses gêneros, aparentemente renegados ao passado. Compôs “Canta, canta, minha gente”, “Casa de bamba”, “O pequeno burguês”, “Quem é do mar não enjoa”, “Disritmia”, “Ex-amor”, “Minha e tua”, entre tantos outros sucessos. Sua compreensão da riqueza de nossas tradições musicais o levou a gravar discos folclóricos e de cultura afro-portuguesa. Ouvir Martinho é seguir a cadência de sua fala e melodia, cantando de forma alegre e rica a nossa gente e os nossos ancestrais culturais: “Tá delícia, tá gostoso/ Tá, tá, tá/ Tá delícia, tá gostoso...”


Maria Bethânia

A baiana Maria Bethânia passou a ser conhecida pelo grande público quando substituiu a cantora Nara Leão no show Opinião, cantando “Carcará”, de João do Vale: “Carcará/ pega, mata e come/ Carcará/ num vai morrer de fome/ Carcará/ mais coragem do que homem/ Carcará/ pega, mata e come...” Em 1965, ano em que chegou ao Rio de Janeiro, Bethânia gravou seu primeiro disco, Maria Bethânia, com músicas de Noel Rosa, Benedito Lacerda e de seu irmão, Caetano Veloso. No ano seguinte, gravou um disco só com músicas de Noel. O LP Álibi, lançado em 1978, foi o primeiro trabalho de uma cantora a vender mais de um milhão de cópias. E lá estavam Gonzaguinha (“Explode coração”), Paulo Vanzolini (“Ronda”), Délcio Carvalho e Ivone Lara (“Sonho meu”), entre outros. Na realidade, Maria Bethânia é uma intérprete privilegiada do samba, pois conhece intimamente sua história e seus compositores.













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