Em certo dia do primeiro semestre de 1999, ao tentar mostrar para um ex-empresário o repertório do que viria a ser seu primeiro disco independente, A Vida É Doce (1999), Lobão ouviu do executivo a sugestão de abortar esse repertório (considerado "de vanguarda" pelo empresário), regravar Me Chama e capitalizar o sucesso que ele havia obtido nos anos 80. Deprimido com a sentença de morte ao cancioneiro no qual depositava tanta esperança, Lobão tomou um porre, engoliu um vidro de calmantes, cortou os pulsos e tentou se atirar da varanda do apartamento. Foi salvo da morte por sua mulher e fiel escudeira, Regina Lopes, acordando numa clínica de hospital com a recomendação de que deveria permanecer com um enfermeiro ao seu lado nos próximos meses. A passagem turbulenta - a rigor, mais uma dentre tantas vivenciadas pelo artista ao longo de sua vida - é contada pelo próprio Lobão na sua recém-lançada autobiografia, 50 Anos a Mil. Escrito na primeira pessoa, com auxílio do jornalista Claudio Tognolli (responsável pela detalhista pesquisa que reconstitui o enfoque da obra e da vida de Lobão pela mídia), o livro expõe o jorro sincero e espontâneo da memória de um artista controvertido. Sem maquiar os fatos, inclusive os imbróglios familiares com a mãe superprotetora e autodestrutiva, Lobão reconta sua vida em ordem cronológica em narrativa envolvente. O tom é informal, quase como se estivesse na mesa de um bar, reavivando os momentos marcantes da trajetória de um garoto retraído que, como ele mesmo sentencia na abertura do livro, tinha tudo para se tornar um bundão. Mas Lobão virou o jogo na adolescência, tomou as rédeas da própria vida e iniciou trajetória emblemática na música brasileira. E agora conta os lances principais do jogo de sua vida em autobiografia que não se preocupa com o rigor das datas, mas com a importância dos fatos em si. Notícia que abalou Lobão, a morte de Cássia Eller (1962 - 2001), por exemplo, é situada no final de 2002 quando, na realidade, a cantora saiu de cena em dezembro do ano anterior. São erros comuns e desculpáveis quando uma narrativa é ditada pelo fluxo nem sempre lógico da memória. Mas está tudo lá em 50 Anos a Mil: a relação tensa com a mãe, os desajustes colegiais na adolescência, a descoberta do sexo, a iniciação nas drogas e o envolvimento redentor com a música. E haja história! Afinal, Lobão passou pelo Vímana - o grupo dos anos 70 que teve também Ritchie (que se tornaria um amigo fiel nas horas difíceis) e Lulu Santos em sua formação - e pela Blitz antes de se lançar em carreira solo em 1982 - o ano do estouro da Blitz - com Cena de Cinema, álbum que Lobão acredita ter sido clonado pelos Paralamas do Sucesso em seu disco de estreia, Cinema Mudo (1983). Herbert Vianna - desafeto notório de Lobão ao longo dos anos 80 - não é poupado das acusações de plágio, mas é tratado com carinho e respeito num relato que fica impressionante quando Lobão revive os tempos passados na prisão. Mesmo que estes fatos já tenham sido expostos pela mídia em entrevistas concedidas pelo próprio Lobão, a narrativa do inferno vivido na prisão ainda soa impactante. Por ser livro autobiográfico, escrito sob ótica sempre pessoal, 50 Anos a Mil não expõe as contradições de Lobão. A decisão do artista de gravar um Acústico MTV em 2006, por exemplo, é pretexto para ataques à mídia, que detectou no lançamento no disco - em abril de 2007 - o comportamento contraditório de um artista que vinhando afiando suas garras contra o formato da MTV e contra o modelo empresarial das gravadoras multinacionais (Lobão se acertou com a Sony Music para gravar o acústico). Mas isso não tira o mérito e o interesse da narrativa de 50 Anos a Mil. Lobão sempre foi um artista que se expôs com sinceridade - e com as contradições inerentes a todo ser humano - e sua autobiografia parece estar em fina sintonia com a verdade dos fatos ditados pela memória do artista. Seu livro é bom e essencial.
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