A rejuvenescida diversidade sonora do país seduz o mercado internacional. São Paulo se transformou em um dos eixos da atual vanguarda musical. No Brasil a música é produto de exportação, e, diferentemente do resto do continente, as gravações se sucedem sem fim.
Por Bernardo Gutiérrez
Premissa quase inviável: sete garotos com idade média de 20 anos gravam um álbum na América Latina profunda. Misturam rock, música surfe, eletrônica, bossa nova. Em poucos meses conquistam seu país. E rapidamente tocam na Europa e recebem críticas excelentes. Como se chama a banda-premissa inédita? Mombojó. Lugar de procedência? Recife, Pernambuco, Brasil. O que em outros países seria um sonho, no Brasil é um fato. A música é um produto de exportação. E uma caixa de surpresas mestiça onde se enredam todas as sonoridades: bossa nova com dub, samba com eletrônica, hip-hop com maracatu. Vale tudo. E tudo toca (e bem) no décimo mercado fonográfico do mundo (237 milhões de euros em 2005).
Raiz com beats
Mas por que o Brasil tem semelhante exuberância musical? Primeiro segredo: no Brasil, o futuro e o passado andam de mãos dadas. A raiz se enreda naturalmente com o contemporâneo. Os dinossauros (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Jorge Ben Jor, Chico Buarque, Toquinho) continuam vivos e se mexendo/atuando. Com outros veteranos não tão famosos, idem: turnês internacionais todos os anos. Elza Soares (a diva maldita), Tom Zé (tropicalista recicladíssimo), Mutantes (uma das estrelas do último FIB). Algumas estrelas apagadas brilham de novo promovidas por selos britânicos como Far Out e Mr. Bongo. É o caso de Marcos Valle (peso-pesado da bossa nova), Trio Mocotó ou Os Ipanemas. E há mais: a geração que conquistou o mundo nos anos 90 continua na crista da onda: os Tribalistas (Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Marisa Monte), Chico César, Adriana Calcanhotto, Lenine, Seu Jorge...
Som de Pernambuco
Segundo segredo: descentralização criativa. Recife, capital de Pernambuco, é um dos pólos sonoros mais ativos do país. A culpa/responsabilidade recai no já falecido Chico Science, que em meados dos anos 90 misturou hip-hop, eletrônico, maracatu e rock. Não sabia que estava criando um gênero, o mangue beat. E que nascia uma época inovadora que propiciaria o sucesso mundial de bandas como Nação Zumbi (arrasaram em 2006 no Barbarican Center de Londres), os personalíssimos Mundo Livre ou Mestre Ambrosio. Também de artistas como Lula Queiroga ou Otto, que com seu Samba pra Burro deu uma volta no parafuso da eletrônica brasileira. A inovação sonora de Recife parece não ter fim. A última compilação do selo nova-iorquino Luaka Bop, What's Happening in Pernambuco, inclui canções de Cabruera (típico forró em chave futurista), Eddie (rock psicotropical), Faces do Subúrbio (rap) ou Cidadão Instigado, entre outros. Cordel do Fogo Encantado é sem dúvida uma das bandas mais interessantes (percussão de raiz com suingue roqueiro).
Ampliando ligeiramente o espectro pernambucano ao norte e nordeste, encontramos artistas já assíduos na cena européia: Helder Aragão (DJ Dolores, um clássico da eletrônica+maracatu), Silvério Pessoa (forró futurista), Lampirônicos (psicodelia baiana), Ramiro Musotto (argentino radicado na Bahia, guru da percussão e eletrônica) ou o peculiar Totonho e os Cabra (paraibano que cozinha carimbó com eletrônica).
Funk favela
Nos últimos dois anos, o funk carioca exportou um punhado de artistas. Comandados por DJ Marlboro (guru das ondas do Rio), o pelotão do funk (uma mistura eclética de Miami bass, rap e sons brasileiros) chegou à Europa e aos EUA: Tati Quebra Barraco, Mr. Catra (o mais pessoal e polêmico nome do funk) ou Deize Tigrona. A aclamadíssima M.I.A. sampleou músicas de Deize. E o célebre Diplo (DJ estabelecido em Miami) inclui funk carioca em seus novos trabalhos.
É que o Rio de Janeiro continua sendo um dos berços sonoros do país. Do chorinho ao funk de favela, passando pela bossa nova ou o samba, o Rio transpira música. Embora tenha cedido muita importância vanguardista a São Paulo e Recife, do Rio partem bandas como Kassin+2, Pedro Luiz e a Parede (mistura de rock, samba e batucada), Los Hermanos (rock experimental), Funk'n'Lata (samba-soul, batucada) ou o DJ Marcelinho da Lua (drum'n'bossa). O hip-hop, por outro lado, é um dos filões de exportação do Rio de Janeiro. Marcelo D2, guru do samba-rap, arrasou depois de seu terceiro álbum solo (Meu Samba É Assim). Por sua vez, Bnegão se transformou em habitual na cena barcelonesa com sua mistura de hip-hop, rock e funk carioca.
São Paulo, som antropofágico
Em São Paulo quase todos os caminhos de vanguarda levam a um coletivo, Instituto (que passou pelo Sonar 2004). Esse quarteto descabeçado aglutina o máximo de experimentação: Mamelo Sound System (dub e hip-hop), Z'Africa Brasil, Flu (eletrônica) ou Bonsucesso Samba Club (pernambucanos, reggae+dub). O Instituto também produziu o mítico rapeiro Sabotage (assassinado em 2004). Lançaram duas impressionantes coletâneas gravadas em seu estúdio, Coleção Nacional (2004) e Coleta Seletiva (2006). Mas o forte de São Paulo é a eletrônica. House, techno, drum'n'bass. E seus novos filhos bastardos: drum'n'bossa, samba-house... Paradoxalmente, o pai da eletrônica paulista foi Suba, um sérvio morto em 1999. Suba é o autor do aclamado São Paulo Confessions e produziu a estréia de Bebel Gilberto, Tanto Tempo. Abriu caminho para artistas de vanguarda como Cibelle ou Katia B.
Suba revolucionou o som brasileiro. Ele serviu de inspiração para produtores que agora lançaram CDs solos, Bid (Sambas e Biritas) e Apollo 9 (Res Inesplicata Volans), muito recomendáveis os dois. A obra de Suba propiciou que alguém como Bruno E (um guru do nu jazz) fundasse a Sambaloco, referência da eletrônica brasileira.
Trama sound
A Trama (mais um selo independente) é outro responsável direto pela vanguarda paulista. Com um conceito urbaníssimo, periférico e contra-corrente, a Trama se transformou em um ícone. A ponto de ter organizado turnês européias para seus principais artistas: Max de Castro (figura indispensável), Wilson Simoninha (samba-soul contemporâneo), Jairzinho Oliveira (samba+eletrônica) ou Patricia Marx (nu soul). Da família Trama surgem nomes como Rapin Hood (samba-rap), Beat Choro (chorinho misturado com hip-hop) e o último bolaço brasileiro, Cansei de Ser Sexy, um conjunto quase adolescente que passou pelo FIB. É que São Paulo, a urbe canibal de Itamar Assumpção (artista de culto para as vanguardas, morto em 2003), sintetiza como nenhuma a mistura, o elogio ao bastardo, a fusão total. Triunfa o diverso, o diferente, como o rap periférico de Férrez ou Racionais MCs. (La Vanguardia)
0 comentários:
Postar um comentário