A existência da inspiração, estro, engenho poético ou qualquer outro nome que se lhe dê, dentro do processo de criação de uma obra é motivo de muita polêmica. Os crédulos não abdicam de terem sido impregnados pela aura, enquanto os descrentes classificam de pueris tais enlevos. Uma coisa é certa: tem que haver o catalizador imprescindível que é talento. Sem ele não adianta ser inspirado ou diligente. O resultado será sempre pífio. Vamos para a gangorra.
Manuel Bandeira diz: "Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer". João Cabral de Melo Neto acha que tudo resulta de uma elaboração mental. Paul Valery afirmava: "O primeiro verso é editado pelos deuses". Carlos Drummond de Andrade - "não sou do tipo que senta e diz: vou criar uma poesia e conseguir". Stravinsky era enfático: "A inspiração vem do trabalho". Na música popular as divergências não são menores. Uns repudiam, outros decantam. Chico Buarque se analisa. "Sou um bom artesão. Trabalho bem com as palavras. Só que às vezes vem um lampejo, uma idéia luminosa - esse lance eu não domino. Por esse eu não respondo. Esses momentos mágicos me surpreendem". Edu Lobo: "O brasileiro é vidrado em negócio de inspiração, uma coisa quase religiosa, realmente mística. Acho que como proposta essa dependência da inspiração é a coisa mais atrasada e incrível. A música é o resultado de um trabalho muito duro". Caymmi se justifica - "não faço criações a não ser espontaneamente, eu não tenho fábrica de canções. Não sei fazer nada sob encomenda. Por isso sou considerado preguiçoso". Vandré ainda lúcido: "Sou um profissional de comunicação. Posso garantir que se você me pedir uma canção de amor, eu te dou amanhã, tão boa ou melhor que todas que fiz". David Nasser fala de Ary barroso: "O Ary fazia música por inspiração. Não fabricava. Tinha a febre santa. Onde ela baixasse sacava uma pauta e gravava no papel a melodia". Caetano sempre inspirado: "Inspiração quer dizer: estar cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termo de década e esquecem o minuto e o milênio". Tom Jobim é racional: "Tem aquele compositor que diz que é 5% de inspiração e 95% de transpiração. É verdade". A verdade é que a frase foi cunhada pelo gênio-monopolista americano Thomas Edison e dizia: "O gênio é 1% de inspiração e 99% de suor". Noel Rosa, segundo seus contemporâneos, era um privilegiado quanto à criação pois a sua relampejava em cima do fato. Sobre inspiração ele dizia: "Eu só faço samba quando estou inspirado. Não procuro forçar mesmo porque não adianta. Quando a bossa falta nem um homem com poderes divinos é capaz de compor". O eclético Braguinha também se manifesta: "Nunca fiz força para fazer música. Todas saíram tão naturalmente que nem senti e quem sabe é esse o segredo do sucesso". E na história da MPB realmente muitos sucessos surgiram, segundo os protagonistas, desse encantamento súbito. Noel narra como surgiu o Até. Amanhã (até amanhã/se Deus quiser/ Se não chover/ Eu volto pra te ver, ó mulher) no seu retorno de uma excursão ao sul. "Deixei uma mulher e levava saudades. Fui para o canto do navio, pedi uma bebida, acendi um cigarro e o samba nasceu espontaneamente". A Saudosa Maloca de Adoniram existiu na Rua Augusta onde passava sempre. Certo dia começaram a demoli-la e a música veio de estalo. Fio Maravilha teve suas primeiras estrofes brotadas no Maracanã após um gol inesquecível do crioulo. Tom Jobim, contrariando sua teoria de estiva, conta como surgiu a belíssima Por Causa de Você (Ai, você está vendo do jeito que eu fiquei/ E que tudo ficou). "Dolores fez a letra com um lápis de sombrancelha, o instrumento que tinha na mão para não perder o momento de inspiração. Isso aconteceu numa sala da Rádio Nacional quando eu dedilhava a melodia. Dolores fez a letra em cima da perna, em cinco minutos". A letra de Arrastão, segundo Vinícius, também nasceu em cinco minutos. "Tom dedilhava o piano e eu escrevia a letra. Tudo espontâneo", 1961. Sucesso estrondoso bossa-novista de O Barquinho (Dia de luz/Festa do sol/E o barquinho a deslizar). Ronaldo Bôscoli depõe - "já tive inspiração de letras em diversos lugares, diversas situações: tomando banho, meditando ou emocionado por um fato como foi o caso do Barquinho. Um dia Menescal e eu voltamos de uma pescaria, sentamos na varanda e escrevemos a música de ponta a ponta: ele criou a melodia, e a letra saiu inteira". Muito mais podeia ser contado. Deixo aos leitores a escolha entre a sudorese e o encantamento.
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