segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




03 - Dalva e Herivelto


Para o universo de Herivelto, a Europa soava muito distante. Para quem nasceu numa cidadezinha do interior do Rio de Janeiro, chamada Paulo de Frontin, ele já estava no “primeiro mundo”: estava na Capital Federal. Ainda moleque, foi com a família para Barra do Piraí, paixão que o acompanhou até a morte. Herivelto fazia questão de dizer que era de Barra do Piraí. Que tinha nascido lá. Meus avós paternos, Carlota e Félix Bueno Martins, eram pessoas humildes e rígidas. Forjaram a personalidade de meu pai de um jeito muito duro. Na rua, com os amigos, meu pai era um sujeito maravilhoso, engraçado, vivia cercado de gente. Dentro de casa, com a família, era durão, intransigente, até cruel. Desde cedo, a música esteve dentro dele e, mesmo aprendendo a cortar cabelo para trabalhar na barbearia do pai, sentia que a música o chamava. A família havia se transferido para São Paulo quando o sonho falou mais alto: pegou o trem e saltou no Rio. Passando por um circo, procurou algo para fazer. O dono perguntou se já havia trabalhado como palhaço. É claro que ele disse “sim”. Nascia o palhaço Zé Catimba, sem nunca ter pisado num picadeiro. A carreira de palhaço não durou muito, mas deu para segurar, artridurante algum tempo, a fome e o sustento. A música continuava seduzindo-o e, ao conhecer Francisco Sena, um negro muito musical, Herivelto, que era muito claro, teve a ideia de formar a Dupla Preto e Branco. Trabalharam juntos de 1933 a 1935, quando morreu Sena, o bom crioulo, como Herivelto o chamava. Depois de algum tempo, foi substituído por um negro boa-pinta, Nilo Chagas. Um pouco distante daí, outra história começava e ia se juntar lá na frente à história de Herivelto. Uma menininha nascia em Rio Claro, interior de São Paulo. Sua mãe, Alice, era pessoa simples, filha de portugueses. O pai, o marceneiro Mário, tocava clarinete e era boêmio até a alma. Tão boêmio que sonhava com a chegada de um primogênito, filho homem, a quem daria o nome Vicente, para acompanhá-lo na farra. Mas nasceu uma menina, chamada Vicentina. Quando cresceu um pouco, o pai a transformou em sua grande companhia. Chamava-a de Vicente e a levava aos bares de Rio Claro. O marceneiro Mário era meu avô, e sua filha Vicentina, minha mãe: ela foi o filho homem que vovô queria ter. Minha mãe contava que, ainda menina, aprendeu a tomar cachaça com ele. Para o resto de sua vida, ela não iria esquecer esses ensinamentos. Lamentavelmente. Vicentina teve três irmãs: Lila, Margarida e Nair. Todas extremamente musicais, mas não seguiram a carreira. Lila cantou alguns anos com Djalma Ferreira na Boate Drink, em Copacabana, e desistiu. Margarida tinha voz linda, fez coro em algumas gravações e chegou a trabalhar com Herivelto, como cabrocha de sua Escola de Samba. De Rio Claro, a família foi para Belo Horizonte. Depois de algum tempo, transferiu-se para São Paulo, onde as chances seriam maiores para Vicentina, que impressionava a todos com sua bela voz e sonhava com a carreira artística. Em São Paulo, ela começou a ter aulas de canto com o professor Gambardella, que aprimorou seu canto, treinando-a em cançonetas de óperas conhecidas, como a Viúva alegre. Como é natural para qualquer principiante, ela não tinha repertório definido, cantava nos programas de calouros os sucessos da época, criações muitas vezes inadequadas a sua voz. Mas o Rio de Janeiro era a metrópole que atraía os talentos de todo o país para seus palcos e, naturalmente, a projeção nacional. Era o grande sonho. Muito magrinha, bastante tímida, foi audaciosa e se inscreveu no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso. Um tremendo desafio. Já havia adotado o nome artístico Dalva de Oliveira — detestava o Vicentina. Chamada ao palco, tremia muito. Fez o melhor que sabia. Ao terminar, assustada, ouviu do temido Ary Barroso: “Minha senhora, quer um conselho? Volte imediatamente pro tanque, de onde nunca deveria ter saído. Vá lavar roupa, a senhora jamais deveria abrir a boca pra cantar!”. Minha mãe chorou muito. Mas, graças a Deus, e para sorte da música popular brasileira, não permitiu que o “conselho” abalasse seu sonho. Continuou estudando, tentando a sorte. Anos depois, já reconhecida como grande cantora, recebeu um pedido de desculpas de Ary Barroso, acompanhado da música “Folha morta”, transformada por Dalva em grande sucesso. Além de capital do país, o Rio de Janeiro era nosso grande centro cultural, a meta a ser conquistada por Dalva. Trabalhando num teatro mambembe em São Cristóvão, o Teatro Pátria, ao ser abordada em 1936 por um sujeito magrinho, de olhos azuis, meio Sinatra, meio matuto, Dalva mal podia imaginar o que o destino lhe reservava a partir desse encontro. Herivelto apresentava um número de palhaço no teatro, o do “Zé Catimba”, para ganhar um dinheirinho extra, além dos cachês dos shows da Dupla Preto e Branco, realizados em espaços invariavelmente mambembes. Dalva começou a assistir aos ensaios da dupla, à tarde, no teatro. Herivelto passou a prestar atenção nos números de Dalva: a voz linda, a extensão vocal o impressionavam. Às vezes, jantavam juntos após as apresentações no teatro, e ele a levava até a pensão onde ela morava. De brincadeira, numa daquelas tardes, quando Dalva ensaiava um de seus números, Herivelto começou a fazer uns contracantos. Príncipe Pretinho, sempre por perto de Herivelto, assistia. Impressionado com o resultado, aplaudia entusiasmado. Eureca!, pensou Herivelto, já sentindo o “encaixe” da tessitura e vislumbrando a descoberta de um novo caminho para ele poder evoluir artisticamente. Aliás, para os dois. Era uma complicada descoberta, como sabem os entendidos: é muito difícil trabalhar com vozes feminina e masculina juntas. Primeiro, Herivelto começou a testar os arranjos da dupla com Dalva, depois “abriu as vozes”, separando a parte de Dalva das vozes masculinas, costurando os uníssonos e contracantos. O resultado ficou maravilhoso. Passaram a trabalhar juntos. Ficavam ensaiando até tarde, nos bancos do campo de São Cristóvão, depois do teatro. Da música se fez paixão. Da paixão se fez música: uma espécie de “religião” entre eles, o grande elo. Cada vez ficavam mais tempo juntos, o namoro ia rolando, ficando a cada dia mais firme. Herivelto, vendo em Dalva um diamante bruto a ser lapidado, começou a desempenhar seu papel de “Pigmalião”. Pesquisou um repertório adequado à extensão vocal de Dalva, trabalhou sua postura no palco, escolheu os primeiros figurinos, ensaiou exaustivamente a performance dos três: Dalva e a Dupla Preto e Branco. Levados à Rca Victor pelo amigo e ardoroso fã do novo trabalho, Príncipe Pretinho, gravaram o primeiro disco em 78 rotações, com duas composições de Príncipe: “Ceci e Peri” e “Itaquari”. Corria o ano de 1937. Foi o início de uma grande escalada. Começaram a gravar, a se apresentar em shows, em rádios: “Dupla Preto e Branco e Dalva de Oliveira, um trio de ouro!”, anunciava o comunicador César Ladeira, na então famosa Rádio May rink Veiga. Ficava assim batizado: o Trio de Ouro. 



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