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quarta-feira, 31 de julho de 2019

MÚSICA E FUTEBOL, UMA TABELINHA DE PRIMEIRA NO BRASIL

Desde 1912 essa relação vem fazendo muito sucesso nos mais diversos palcos

Por Eduardo Lamas


Quando no fim de 2015 resolvi iniciar pesquisas sobre músicas que tenham como tema o futebol, achava que encontraria o suficiente para escrever uma peça de teatro em que a História do futebol brasileiro pudesse ser contada por intermédio delas. Pensava em encontrar umas 100, o que já seria uma boa quantidade para selecionar as que entrariam no roteiro, e que começaria por “Um a Zero”, clássico de Pixinguinha (Benedito Lacerda e, posteriormente, letra de Nelson Angelo) que desde os tempos em que frequentava constantemente rodas de choro já sabia se tratar de uma homenagem à primeira grande conquista da seleção brasileira, o Campeonato Sul-Americano de 1919. E me enganei duas vezes, para a minha sorte. E destas sortes, nasceu o projeto Jogada de Música.

Primeiro fui descobrindo que a quantidade de músicas sobre futebol é incalculável, ainda mais se forem incluídas aquelas que citam apenas em um ou mais versos expressões, ídolos, clubes ou qualquer referência à paixão esportiva nacional e mundial. E, para minha surpresa ainda maior, soube que antes mesmo do surgimento da seleção brasileira, que fez seu primeiro jogo em 1914, já havia uma composição de Francisco de Oliveira Lima, chamada “Foot-ball”, uma polca, cujo áudio de 1912 obtive graças à generosidade direta de João e Luíza Carino, aqui do IMMuB, e indireta do Instituto Moreira Salles (IMS). E há outras anteriores ao choro emblemático de Pixinguinha.

Música e futebol, duas paixões brasileiras que contribuíram de maneira decisiva para a identificação do povo com o nosso país, são responsáveis por glórias das quais podemos nos orgulhar muito. Nessas duas áreas, podemos bater no peito e dizer sem medo para qualquer um que pertencemos ao Primeiro Mundo. Logicamente, em tempos de Copa do Mundo, esta tabelinha tão genial se faz mais presente. Não tanto pela profusão de composições nas últimas edições, mas pela lembrança daquelas que se tornaram trilha sonora obrigatória de nossas maiores conquistas nos gramados. Mas não só.

CAETANO VELOSO (GRANDES NOMES - OUTRAS PALAVRAS) (1981)

terça-feira, 30 de julho de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Desbunde geral

Sob uma base sonora pscodélica, Os Mutantes cantavam em 1972: "Estava passeando / Mascando chiclets / Quando eu vi na minha frente / Uma perna inesquecível / Eu vi também uns olhos / De raro esplendor / Que diziam: Venha logo, / E me beije, meu amor! / Yeah, yeah, yeah, yeah / Que beijo muito louco / Eu desbundei".
Segundo os dicionários, desbundar é perder o auto-controle, perder as estribeiras, tirar o disfarce, causar espanto e impacto. Daí a possibilidade de relacionar o desbundado e o louco, alienado e vagabundo. A imagem do hippie estadunidense servirá de modelo para a dicionarização do desbundado entre nós: cabelos longos, roupas largas, uma flor em uma das mãos e o símbolo "paz e amor" na outra mão.
Sobre esse aspecto, Caetano Veloso escreve em Verdade Tropical, que desbunde é "esse nome que a contracultura ganhou entre nós - a bunda tornada ação com o prefixo des a indicar antes soltura e desgoverno do que ausência - deixava o hip - quadril - dos hippies na condição de metáfora leve demais. Desbundar significava deixar-se levar pela bunda, tomando-se aqui como sinédoque para "corpo" a palavra afro-brasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal".
O fato é que, vivendo o sufoco do regime militar, o desbundado se via numa encruzilhada: mudar o mundo ou "curtir um barato"? Diferente da esquerda armada, os desbundados não pretendiam tomar o poder, ou impor um modelo de sistema melhor. Ao contrário, os desbundados queriam cair fora de todo e qualquer sistema.
Fazendo uso das estéticas convergentes da Tropicália, o desbundado vivia no corpo seus ideais de contracultura e de contestação dos modos de vida ocidental. A fuga pelo misticismo, orientalismo, terapias alternativas, psicologia corporal, sexualidade libertária e ecologia regiam a ética dos desbundados pós-tropicália. Fuga, nesse caso, é mais o reconhecimento do fracasso das velhas formas de viver e menos uma recusa do enfrentamento dos problemas. Se a revolução implicava em mudança nas instituições, os desbundados resistiam no e pelo devir deleuziano: algo da ordem do inapreensível, do inclassificável, do “ir indo” visceral do movimento, do deslocamento da asfixia paralisante. 
Mas, ao contrário da energia permanentemente solar imposta à imagem dos desbundados, eles pareciam agir entre aquilo que Oswald de Andrade chamou de "uma consciência participante" e "uma rítmica religiosa". Agiam "contra todos os importadores de consciência enlatada”, buscando “a existência palpável da vida", como também escreve Oswald no seu "Manifesto Antropófago". Essas expressões servem para pensarmos o desbundado, para além do lugar comum.
A consciência da falência dos modelos disponíveis levava o desbundado - sendo de esquerda - a questionar os procedimentos da própria esquerda. Ou seja, o desbundado era marginal por excelência, se podemos usar essa contraditória expressão, pois afrontava tanto a direita conservadora, quanto a esquerda militante; tanto o regime militar, quanto quem combatia o regime com a luta armada. Talvez a canção que melhor sintetize essa ideia seja “Maluco beleza”, de Raul Seixas e Cláudio Roberto: “e esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão fácil seguir por não ter onde ir / controlando a minha maluquez misturada com minha lucidez”, dizem os versos.
Coube ao desbundado sonhar com uma nova vida, mais espiritual e menos materialista. O ano de 1974 é bastante significativo dessa "realidade paralela", dessa terceira margem proposta pelos malucos-beleza da época. Por exemplo, lembremos dos Dzi Croquettes nublando as fronteiras entre feminino e masculino; dos Secos e Molhados e suas misturas de rock, psicodelia caipira, violões folk, Bob Dylan, estética glam, vivendo "entre os sacis e as fadas"; da sociedade alternativa cantada por Raul Seixas - “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”; da imunização racional de Tim Maia; das elucubrações alquímicas de Jorge Ben - “os alquimistas estão chegando”; do realismo mágico, da diáspora nordestina e do isolamento do imigrante em Ednardo: “Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / eles são muitos / mas não sabem voar”; e do submundo dos “entendidos” de Edy Star - "Chega de brincadeira / já estamos bem-entendidos / concubinados, convencidos / que para um bom entendido / meia cantada basta”.

Voltando um pouco no tempo, ainda em 1968, e voltando a citar Caetano Veloso, lembremos que é desse artista os versos "Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento", hino da contracultura desbundada, que se justapõem aos versos de "Caminhando e cantando e seguindo a canção" ("Pra não dizer que não falei das flores"), de Geraldo Vandré. Se o sujeito da canção de Vandré ainda acredita num levante coletivo - a letra está na segunda pessoa do plural -, o sujeito da canção de Caetano foca em ações individuais: "Eu vou!". Aliás, nessa mesma letra de Caetano temos os versos que parecem ser a síntese do projeto (inconsciente?) dos desbundados: "Por entre fotos e nomes / Sem livros e sem fuzil / Sem fome sem telefone / No coração do brasil".
Também em "Alegria, alegria" - essa canção do elogio à dupla alegria, à alegria duplicada, uma alegria que, de acordo com Clement Rosset não nega a tristeza - temos os versos "Ela nem sabe até pensei / Em cantar na televisão / O sol é tão bonito / Eu vou". Essa afirmação nietzschiana da vida e, principalmente, esse uso dos meios de comunicação de massa, num período em que a televisão servia de instrumento de propaganda do golpe, incomodava bastante a determinado setor da esquerda. Não esqueçamos que “desbunde” surge como um termo pejorativo, quase um xingamento, entre os jornalistas que resistiam ao golpe. Só muito mais tarde essa esquerda vai incorporar as narrativas dos desbundados.
Nesse sentido, a pop music, surgida em meados da década de 1950 na imprensa inglesa para definir o rock’n’roll e os estilos musicais que ele influenciou, incorpora os signos do desbunde. Vale lembrar que "pop era música para consumo maciço, na forma de canção, de duração curta (dois a quatro minutos, em média), escrita em forma simples de estrofe-refrão-estrofe e com repetições de partes, visando a rápida assimilação pelo ouvinte. Era, basicamente, uma canção para tocar no rádio e dirigida ao público jovem", escreve André Barcinski, no livro Pavões misteriosos.
Para Heloisa Buarque de Hollanda, em Impressões de viagem, "os que se recusam a pautar suas composições ou apresentações nesse jogo de referências ao regime, ou que preferem não adotar o papel de porta-vozes heróicos da desgraça do povo, são violentamente criticados, tidos como 'desbundados', 'alienados' e até 'traidores'". Caetano Veloso, que em “Odara” (1977) cantou "deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara / minha cara minha cuca ficar odara / deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara" e Gilberto Gil, que em "Realce" (1979) cantou "realce / quanto mais purpurina, melhor / realce / com a cor do veludo / com amor, com tudo / de real teor de beleza", serviram para reforçar esses argumentos críticos.
Passados tantos anos, não é à toa que no filme Tatuagem (2013), ao resgatar esse período de nossa história para narrar o amor entre um jovem soldado e um desbundado, o diretor Hilton Lacerda recupere essa ambiência amalgamada de ideais de fraternidade, amor à arte, sustentabilidade, anticonsumismo e pacifismo. O fictício coletivo Chão de estrelas é uma representação exata das ilhas de calor humano criadas pelos desbundados. Aliás, é ainda Caetano Veloso, em "Podres poderes" (1984), quem canta: "eu quero aproximar o meu cantar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo, indo mais fundo". E quem são esses que velam pela alegria (alegria) do mundo? O sujeito da mesma canção responde: "índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes".
Não é à toa, portanto, que um dos hinos do Chão de estrelas fílmico seja "Desbunde geral", de Johnny Hooker. Assim como os desbundados, Hooker entende bem o aforismo oswaldiano: "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval". Hooker traz para a cena os sons e os ritmos de corpo dos carnavais de Recife. "Me assumo, me jogo, me arrisco de fato", ele canta noutra canção do disco sarcasticamente intitulado Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito! (2015). Disco que mistura David Bowie a Dona Onete, Caetano Veloso a Madonna. Disco que é um híbrido entre o pop, o cafona e as narrativas cujas pautas são as liberdades individuais. E isso passa pela sensualização da linguagem no corpo.
Esse "corpo todo carnaval" cantado por Hooker, em versos como "vem, a noite inteira / descendo ladeira / no maior festival / e a gente se pega, se bole e se morde", dialoga com os caetânicos versos "a gente se embala se embora se embola / só pára na porta da igreja / a gente se olha, se beija, se molha / de chuva suor e cerveja". Esse corpo que recebe o desbunde geral é o corpo das Mutações do sensível, para usar a feliz expressão que dá título ao livro de Paulo Tarso Cabral de Medeiros.
Vale ressaltar que, diferente do hippie estadunidense, o desbundado brasileiro tinha consciência (misturando maluquez com lucidez) de que a folia de seu corpo é "filho dos rituais das bacantes / do coro das tragédias gregas / das religiões afro-negras / das procissões portuguesas católicas", entre outros signos, como canta o Orfeu criado por Caetano Veloso para o filme de Cacá Diegues. O carnaval, essa segunda vida - paralela, marginal - serve de ambiência para afirmar que "o futuro é agora e a vida não freia / tem fé, amor, creia na vida futura / o desbunde é geral", como canta Hooker.
"Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada", escreveu Oswald. "Experimentar o experimental", disse Hélio Oiticica. O lance é "botar meu bloco na rua / brincar, botar pra gemer / gingar, pra dar e vender", como cantou Sergio Sampaio. O desbunde estava intimamente relacionado à ação performativa em seu instante-já, a um jeito de corpo: de Caetano Veloso interpretando “Tenho ciúmes de tudo” a Maria Alcina interpretando “Fio Maravilha”. E, se concordamos com Judith Buther, para quem uma performance que funciona é a que alcança o realismo a ponto de não poder ser lida, "pois ler significa rebaixar alguém, expondo o que não funciona no nível da aparência, insultando-o ou ridicularizando-o", pensar o desbunde, longe temporalmente de sua "era de ouro", já é algo fadado ao fracasso e ao erro.
Mas os gestos de desbunde, de dessacralização, de transformação do exótico em óbvio, do tabu em totem; essa mistura entre a lírica e a participação, o engajamento e a polifonia, a consciência de “subdesenvolvimento” e a antropofagia podem ser percebidos em outros artistas contemporâneos. Da “bicha, preta e pobre” Liniker ao "rapper gay" Rico Dasalam; da imagem do índio tecnizado em Jaloo ao empoderamento - "do gueto ao luxo / do luxo ao gueto" - de Karol Conká.
No Brasil, desbundar é resistir, é engendrar gestos antiprovincianos e ser contra a mentalidade conservadora e domesticadora dos corpos. É ainda a recusa dos discursos populistas, é criticar os projetos de tomada de poder, diante da certeza da falência do sistema. O desbundado faz do desbunde a crítica como resistência, a resistência como desvio, o desvio como enfrentamento. Afinal, como Raul Seixas e Os Mutantes cantaram: “Enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal e fazer tudo igual / eu juro que é melhor / não ser o normal / se eu posso pensar que deus sou eu”.


***

Desbunde Geral
(Johnny Hooker)

Quando chegar fevereiro
Eu quero ser carnaval
Meu corpo no seu
No Desbunde Geral
Geral, Geral!

Vem,
A noite inteira
Descendo ladeira
No maior festival
E a gente se pega, se bole, se morde
Num chão de estrelas
Do meu corpo receba
O desbunde geral

Vem, Vem
Que meu corpo agora é todo carnaval
Vem, Vem
Quem não bole se sacode no Desbunde Geral

Vem balançando a bandeira
Levantando poeira
No maior festival
O futuro é agora e a vida não freia
Tenha fé, amor, creia
Na vida futura
O desbunde a geral





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

OS METADADOS ESTÃO MUDANDO A MÚSICA?


Por  Elisa Eisenlohr

Não é novidade que o consumo de música online teve um papel fundamental na recuperação financeira da indústria fonográfica na última década. Mas o que pouco se fala é na maneira como os serviços de streaming têm afetado a criação musical em si.

Além do crescimento econômico, outro grande ativo que a música digital nos trouxe são as informações detalhadas sobre como ela é ouvida. Este é o novo ouro da indústria. Hoje é possível saber onde, quando e como sua música é consumida. Quais são os artistas que aquele fã também ouve, de quais ele ou ela não gostam. É possível saber até que tipo de produção musical mais agrada seu público. A informação está toda lá. Só é preciso interpretá-la.

Essas informações acabam influenciando compositores, artistas e produtores na hora de criar. À partir do skip rate, por exemplo, que é a frequência com que o usuário passa para a próxima música nas plataformas de streaming, é possível saber se o início da música agrada ou não e corrigir na próxima faixa lançada. Alguns artistas, na hora de fazer uma nova produção, escolhem ir para o refrão mais rapidamente para captar mais rápido a atenção do ouvinte.

Conversei recentemente com a cantora, compositora e produtora Mahmundi sobre produção musical para uma série de entrevistas em vídeo que a UBC está produzindo e ela me disse que costumava seguir uma linha cool waveeletrônica nas suas produções, mas percebeu que suas músicas mais ouvidas são as acústicas. E saber disso acaba influenciando as escolhas dela para a produção da próxima faixa, porque o que o artista quer, no final, é se comunicar com seu público.

Para esta mesma série de vídeos, quando perguntei se os novos tempos mudaram a forma de produzir música, o produtor Liminha respondeu que, na verdade, o que mudou foi o nível de paciência das pessoas com tudo. Não é um fenômeno restrito à música. E isso obviamente influencia na hora de produzir uma faixa simplesmente porque influencia em tudo. 

Mas, se sua música tem um skip rate alto, não se preocupe. Na verdade, ninguém consegue se livrar desse famigerado dedo nervoso dos ouvintes. Pular a música é quase um cacoete. Quase metade dos ouvintes do Spotify, por exemplo (48,6%) passam para a próxima música antes de a anterior acabar. Parece que estamos vivendo a era do déficit de atenção coletivo. 

Brincadeiras à parte, é claro que as plataformas de streaming mais populares são moldadas especificamente para o pop e a relação que os ouvintes têm com a música é influenciada pelo aparelho onde a música é ouvida, o momento e, talvez, até o gênero musical. Os metadados são importantes, mas é sempre mais importante ter qualidade. Usar este mar de informação de forma inteligente só ajuda a melhorar o que já é bom em sua essência. 

Para quem ficou curioso e quer saber mais sobre as entrevistas com os produtores musicais, vale conferir o canal de YouTube da UBC (clique aqui). Já foram lançados os vídeos com Kassin, Gorky e Dudu Borges, mas ainda tem mais por vir. Inscreva-se no canal!

segunda-feira, 29 de julho de 2019

A DP DA DP (DJALMA NÃO ENTENDE DE POLÍTICA)



Direção, fotografia e montagem: Gabriel Martins Figurino: Rimenna Procópio Assistente de fotografia: André Novais Oliveira Roteiro Coletivo A DP da DP Se você quer tentar algo mais safadinho Se você já cansou de fazer bonitinho Diga para o moço que você já se ligou E quer fazer a tal DP Mas cuidado ao pedir, explica direitinho Pra evitar confusão não errar o caminho É porque fazer uma DP não pode ser A mesma coisa que parar na DP Dupla penetração, delícia tropical Delegacia de polícia, gambé vai dá geral Dupla penetração, orgulho nacional Delegacia de polícia Antilibidinal Inoperacional Gambé né general Se parar na DP, tá ferrada na certa Tem que desconfiar, tem que ficar esperta Porque na DP não tem conversa O couro come sem prazer pra você A DP pode ser um sexo danadinho Mas na DP, o cacete desce sem carinho É porque fazer uma DP não pode ser A mesma coisa que parar na DP Dupla penetração, delícia tropical Delegacia de polícia, gambé vai dá geral Dupla penetração, orgulho nacional Delegacia de polícia Antilibidinal Inoperacional Gambé né general Composição: Carlos Bolívia André Albernaz: teclado Carlos Bolívia: guitarra Carol Abreu: percussão Drica Mitre: voz Marcus Alberto: bateria Terêncio de Oliveira: baixo

PAUTA MUSICAL: OCTÁVIO DUTRA - ESPIA SÓ

Por Laura Macedo



O documentário musical - “Espia Só” - narra a trajetória e apresenta o conjunto da obra musical do compositor de sólida formação erudita, letrista, professor, teatrólogo, líder de banda, carnavalesco e um virtuose em todas os instrumentos de cordas dedilhadas, Octávio Dutra(1884-1937), que viveu em Porto Alegre no início do século XX.

Compôs perto de 500 músicas e criou o conjunto musical mais conhecido do início do século XX, "O Terror dos Facões".

Um dos momentos mais significativos da história de Octávio Dutra foi quando, em 1927,Pixinguinha fez questão de visitá-lo para conhecer sua obra. Ouviu, gostou e adquiriu sete músicas do maestro. Além disso, foi protagonista de uma ousadia para a época: apresentar, em pleno Theatro São Pedro, uma adaptação sua do Guarany de Carlos Gomes para orquestra de violões, bandolins e cavaquinhos.

“Espia Só” é um belo resgate que vale a pena conferir. Vejam o trailer e ouçam algumas das composições de Octávio Dutra: “Celina” / “Como há de ser” / “Esmagadora” e “O maxixe”.

domingo, 28 de julho de 2019

SR. BRASIL

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior


Velha Guarda da Portela - Tudo Azul (1999)



Alguém falou ultimamente que a musica popular brasileira morreu e o que nos resta é a saudade de um tempo em que ela com todo seu vigor se mostrava como um dos mais poderosos veículos de entretenimento e também um dos segmentos mais representativos de nossa cultura. Considero esses extremos de posicionamento muito perigosos, remetem-se a um radicalismo fundamentalista, pois como pode a musica brasileira morrer se ela mostra-se a cada dia mais renovada? É claro que nesta renovação a maior parte esta irremedialvelmente medíocre e nunca em tempo algum verificamos uma tal decadência musical e o que é pior, sendo patrocinada por rádios e televisões. 

Mas se a situação é grave ainda não é tempo de enterrarmos o defunto, ate porque ele mostra sinais de revigoramento e não se deixa abalar tão facilmente mesmo tendo parte de seu corpo necrosado, ou seja, existe partes saudáveis que resistem e em médio prazo ele estará totalmente curado, e o remédio para essa cura mesmo sendo ministrado em doses homeopáticas demonstra que é possível dar-lhe uma sobrevida com qualidade suficiente para que possa aos poucos retomar todo seu vigor anterior continuando assim uma jornada de glorias e respeitabilidade, portanto, dizemos que a musica brasileira esta na UTI mas em breve irá para o quarto e depois quando menos esperarmos terá alta e poderá extirpar todos os males que foram causados nos últimos anos, mas é uma recuperação lenta, contudo já da sinais muito positivos de regeneração, então tenhamos paciência, que no final seremos felizes novamente, mas enquanto a cura não retorna de maneira definitiva vamos nos deixar envolver pelos seus sintomas de recuperação que nesta agonia têem sido fundamentais para a preservação da real capacidade de renovar-se, dando-nos mostras de que por pior que seja o momento, o luto esta ainda muito longe de acontecer e no ritmo que vai ele não ocorrera jamais.

Apesar de ter usado de metáforas para definir o processo deletério da musica popular brasileira nos últimos anos, o que em sua grande maioria não é novidade para ninguém, o fato é que temos de olhar o lado positivo desse processo, pois se ficarmos nos angustiando simplesmente pelo aspecto negativo teremos dificuldade para visualizar o que de bom tem sido feito para a manutenção de seu estado de graça, e um dos exemplos dessa retomada são os diversos projetos de revitalização que se realizam por todo o país, e um deles foi idealizado em 1999 sob a produção de Marisa Monte e chama-se Tudo azul, Velha Guarda da Portela.

A idéia da retomada de um projeto iniciado por Paulinho da Viola em 1970 foi fundamental para revigorar o nosso samba de raiz, colocar na mídia com toda a força que ela tem hoje em dia a verdadeira essência de nossa musica popular, resgatando artistas que já estavam resignados com a pouca ou nenhuma visibilidade em que estavam relegados abrindo-lhes uma oportunidade de mostrarem seu trabalho e dividindo o mercado com as mediocridades que se instalaram no corpo de nossa musica. Essa injeção de animo resultou não so na retomada da Velha Guarda da Portela como também uma demostração que a canção popular estava viva, porém, faltava-lhe o remédio necessário para reanimá-la e acelerar seu franco processo de recuperação. 

Alguns dos integrantes do antológico álbum lançado em 1970 já haviam deixado a Terra, outros foram se integrando obedecendo ao critério de antiguidade, qualidade musical e serviços prestados a escola de samba.

Nesse belíssimo CD estão presentes Monarco, Casquinha, Argemiro, Jair do Cavaquinho, Paulão, Casemiro da Cuíca e o coro feminino formado por Tia Eunice, Tia Doca, Áurea Maria e Surica. O Repertório é um desfile de maravilhas, muitas delas conhecidas apenas pela comunidade portelense, portanto, so por esse resgate o disco ja se coloca como um marco da retomada do samba de raiz. Essas pérolas são formadas for Portela desde que eu nasci, composta em 1963 por Monarco; O mundo é assim, de Alvaiade, de 1968; Nascer e florescer, de Manacea, de 1955; Vai saudade, de David do Pandeiro e Candeia, de 1966; Sabiá cantador, de Alvarenga, 1950; A noite que tudo esconde, de Chico Santana e Alvaiade, 1952 com participação especial de Paulinho da Viola; Eu te quero, de Jair do Cavaquinho, 1960; Volta meu amor, um pontos máximos do disco, de Manacea e Áurea Maria, composta em 1972 e interpretada por Marisa Monte; Falsas juras, de Casquinha e Candeia, de 1954; Tentação, de Casemiro da Cuíca e Ramon Russo, de 1976; Você me abandonou, de Alberto Lonato, 1945; Vem amor, de Casquinha, 1956; Benjamim, de Josias, 1955; Tudo azul, de Ventura, 1950; Minha vontade, de Chatim, 1955, interpretada por Cristina Buarque; Sempre teu amor, de Manacea, de 1948; Corri pra ver, de Chico Santana, Monarco e Casquinha, de 1955 e Lenço, de Chico Santana e Monarco, de 1953, interpretada por Zeca Pagodinho. 

Além dos interpretes citados o disco ainda conta com a participação de Mauro Diniz no cavaquinho acompanhado por um time de bambas da mais alta hierarquia do samba e da musica popular de um modo geral.

Aí esta um disco que merece sim, lugar de destaque na galeria dos grandes projetos de nossa canção, demonstrando que ainda corre sangue muito bom nas veias da musica brasileira e o que lhe faltava era um medico competente que lhe desse o medicamento certo para sua plena recuperação. 

É isso ai! Paulinho da Viola abriu alas, Marisa Monte seguiu renovando a tradição e a Velha Guarda se consolidou como um marco da canção brasileira, com os simpáticos velhinhos dando um recado que muito jovem não consegue atingir nem um milímetro de seu talento. É ouvir, vibrar, se emocionar e chorar!


Músicas: 
01) Portela desde que eu nasci (Monarco)
02) O mundo é assim (Alvaiade)
03) Nascer e florescer (Manacéa)
04) Vai saudade (David do Pandeiro/Candeia)
05) Sabiá cantador (Alvarenga)
06) A noite tudo esconde (Chico Santana/Alvaiade)
07) Eu te quero (Jair do Cavaquinho/Colombo)
08) Volta meu amor (Manacéa/Áurea Maria)
09) Falsas juras (Casquinha/Candeia)
10) Tentação (Casemiro da Cuíca/Ramon Russo)
11) Você me abandonou (Alberto Lonato)
12) Vem amor (Casquinha)
13) Benjamim (Josias)
14) Tudo azul (Ventura)
15) Minha vontade (Chatim)
16) Sempre teu amor (Manacéa)
17) Corri pra ver (Chico Santana/Monarco/Casquinha)
18) Lenço (Chico Santana/Monarco)

sábado, 27 de julho de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


Um episódio me parece muito significativo. Numa das noitadas de conversa e cerveja do 2002, Waly, Luis Tenório (um amigo de Dedé desde Salvador que, mais tarde, se tornaria um renomado psicanalista) e eu ficamos acordados até o dia nascer e continuamos falando sem parar até quando o sol já ia bem alto. De repente, percebemos um alarido vindo da rua. Olhando do nosso vigésimo andar, vimos tratar- se de uma passeata de protesto estudantil contra a ditadura. Decidi descer para ver de perto. Waly e Tenório me acompanharam. O cortejo seguia pela avenida Ipiranga e, ao alcançar a praça da República, foi interceptado por destacamentos policiais em imensos carros blindados - os chamados "brucutus" - e dispersou-se numa correria. Muitos estudantes eram alcançados por policiais, que os espancavam. Meus dois amigos seguiam a meu lado calados e tensos. Eu estava usando um casaco militar europeu antigo (um "casaco de general") sobre o torso nu, jeans, sandálias e um colar índio feito de dentes grandes de animal. Meu cabelo estava enorme e emaranhado, indo alto acima da cabeça e quase chegando aos ombros. Minha figura era surpreendente para a hora e o local (os homens de cabelos muito longos ainda eram raros) e se mostrava mesmo assustadora para a maioria das pessoas de quem me aproximava. Eu interpelava os passantes, protestando contra sua indiferença medrosa (e, quem sabe?, seu apoio íntimo) em face da brutalidade policial. Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes, dos soldados e de mim. Eu estava seguro de que, naquela situação, ninguém me tocaria um dedo. Sentia-me possuído por uma ira santa. Na verdade, as pessoas não saberiam como situar essa estranha aparição em meio à instabilidade produzida pelo confronto entre estudantes e militares. Ninguém me enfrentaria absolutamente naquela circunstância: todos me ouviam com o ar assustado de quem está disposto a engolir qualquer desaforo para safar-se. E desaforos era o que ouviam. Por outro lado, os soldados dificilmente focariam sua atenção em mim: eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos, na verdade tangenciando o olho do furacão, e minha aparência não seria computada como sendo a de um dos manifestantes. Eu falava alto e exaltadamente, mas nenhum soldado se aproximaria de mim o suficiente para me ouvir. Voltei para casa ainda ralhando com os passantes, enquanto os grupos em confronto se dispersavam - não sem que o brucutu levasse alguns presos. Eu estava consciente de estar encenando um happening. Era uma performance extravagante e séria que se dava à luz do sol. Sempre que leio comentários a respeito do narcisismo dos manifestantes do Maio francês, do caráter mais teatral do que político daquelas manifestações, penso em como tinha sido afinal de contas coerente que eu tivesse aceito a sugestão de Guilherme de fazer de "É proibido proibir" uma canção. Mas nessa estranha descida à rua, eu me sabia um artista realizando uma peça improvisada de teatro político. De, com licença da palavra, poesia. Eu era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava nesse momento necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos.
Nesse clima de ânimos exaltados e ruas conflagradas é que o auasca – assim é que se chamava a bebida que Carlos Marques trouxera da Amazônia - fez sua aparição. Gil, depois dessa experiência solitária no vôo Rio-São Paulo, propôs que fizéssemos todos uma "viagem" em conjunto. Ele veio para o meu apartamento com a garrafa e serviu a cada um a quantidade que Marques ("Marx") tinha recomendado: pouco mais de meio copo.
Minha primeira experiência com uma droga que não fosse álcool ou tabaco tinha sido uma catástrofe. Aos catorze anos, no primeiro Carnaval que passei em Santo Amaro depois de voltar do meu ano no Rio, Luis César, um companheiro do ginásio que já fora meu colega no curso primário, propôs que tomássemos um porre de lança-perfume juntos. O lança-perfume era um sinônimo de felicidade para mim. Vendido em garrafinhas de metal dourado ou de vidro com um dispositivo para fazer, com uma pressão do polegar, esguichar um jato fino de perfume que gelava a pele que tocasse, esvanecendo-se em segundos, ele era
um elemento que ampliava a magia do Carnaval, porque trazia antevivências de paixões amorosas (em princípio, ele existia para ser apontado por nós para meninas que se sentiriam fugazmente geladas, perfumadas e lisonjeadas - ou assim esperávamos) e uma sugestão olfativa de sonho. Meu pai comprava uma garrafinha para cada um de nós (que respeito ele tinha pelo Carnaval!), mas diversas vezes o ouvi recriminar o uso que se fazia do seu conteúdo como entorpecente e frisar que podia causar uma parada cardíaca. Sem embargo, eu ouvia de alguns conhecidos mais velhos (inclusive meus irmãos) elogios à maravilhosa sensação do "porre". Assim, quando Luis César me propôs a experiência, embora eu resistisse por muito tempo, chegou um ponto em que a curiosidade foi maior que o medo. Aspirei o lenço embebido no líquido e, em um segundo, era a pessoa mais infeliz sobre a face da terra. Toda a praça iluminada mergulhou numa escuridão que se originava em mim, e um zumbido em meus ouvidos, de intensidade regularmente oscilante mas também regularmente crescente, me levava a sentir-me perdendo o mundo - e perdendo-me para o mundo. O mais feroz pavor infantil de aniquilamento tomou conta de mim nesses segundos que pareceram durar uma eternidade, pois, à medida que eu afundava mais e mais na escuridão e na zoeira, eu era como que gradualmente desfeito de tudo, menos da lucidez para observar, dilacerado, o horror que estava me acontecendo. Luís César foi e voltou de seu mergulho sem demonstrar grande gozo ou grande sofrimento. Suas primeiras palavras denotavam um mero aumento da curiosidade a respeito do que se podia extrair de interessante do lança-perfume como droga. A imensurável alegria que ia se apossando de mim, à medida que eu percebia que estava voltando à vida, não foi bastante para impedir que, imediatamente depois de refeito, eu entrasse numa espécie de depressão que estragou meu Carnaval de 57 - e, em certa medida, todos os meus dias dali em diante. Eu visitara um inferno onde o absurdo insuportável de uma alma sem corpo - e de uma consciência sem objeto - se me apresentara como uma evidência terrível: odiei para sempre a idéia de que possamos seguir sendo nós mesmos depois da morte.
Ainda hoje, cada vez que ouço alguém falar de espíritos de parentes ou conhecidos mortos que tentam se comunicar com os vivos, me angustio só de imaginar a situação. Sinto pena dos mortos e raiva dos vivos que aventam com leviandade uma possibilidade tão horrorosa.
Gil, Dedé, Sandra, Péricles Cavalcanti, Rosa Maria Dias, então mulher de Péricles, Waly, Duda e eu, cada um tinha sua dose de auasca. Todos tomaram.
Menos eu, que, anos depois dessa experiência com o lança-perfume - e pouco mais de um ano antes dessa noite -, tivera um sofrimento igualmente infernal por causa de maconha.
Tinha sido uma negra americana que vivia em Salvador - ou ali tinha um apartamento alugado aonde vinha de Nova York para passar semanas -, uma mulher muito interessante cujas atividades na cidade nunca conseguimos precisar, quem nos iniciara, a mim e a um grupo de amigos baianos, na marijuana. Ela tinha grandes quantidades de erva de primeiríssima qualidade - "cabeça de negro" – e deu um cigarro a cada um. Sem saber que isso era muito, fumei o cigarro inteiro puxando com força e segurando a fumaça no pulmão, como ela ensinava. Como eu nada sentisse, procurei seguir suas instruções à risca. Depois de findo o cigarro, ainda dizendo que não sentia nada, levantei-me para ir até a janela. De vez, a luz caiu (era dia), meu coração disparou, minha boca secou e meu corpo ficou dormente - sobretudo as pernas. O susto foi muito grande e cheguei à janela esperando que aquilo passasse logo. Vi as pedras do calçamento como que coladas ao parapeito do terceiro (ou quarto) andar em que estávamos. Percebi que aquilo estava apenas começando. Nenhum dos meus amigos igualmente iniciantes teve reação parecida. Imediatamente demonstrei meu desespero e eles, a partir daí, passaram a se concentrar em cuidar de mim.
Eu me sentia longe e tinha uma saudade enorme das mesmíssimas pessoas que estavam ali comigo. Sentia uma saudade desesperada, da Bahia, de mim mesmo, de Dedé, da vida. Me deram doce, leite, laranjada. Nada me fazia melhorar. Por umas cinco horas sofri como louco. Quando comecei a perceber que voltava, um amor (não há outra palavra) muito intenso tomou conta de mim, tendo como objeto as pessoas que estavam ali - todas e cada uma -, as paredes, os móveis, o chão da casa, depois, o bairro da Barra, o mundo. Não era apenas a felicidade de recuperar em mim essas coisas: eu sabia que o sentimento também era sublinhado pelo tipo de embriaguez produzido pela droga. Mas as horas intermináveis de angústia - e a modificada sensação do tempo fez com que elas parecessem milênios - me deixaram traumatizado e eu me prometi que nunca mais fumaria aquilo outra vez. Essa sessão de maconha me trouxera à memória com vivacidade o horror vivido com o lança-perfume. Agora eu estava ali, diante do único copo de auasca que não fora esvaziado.
Tinha ouvido a argumentação de Gil para me convencer: diferentemente da maconha, o auasca não produzia queda de percepção da luz, dormências, embriaguez ou taquicardia. A gente ficava lúcido e aos poucos começava a perceber as coisas com mais intensidade, as cores, as texturas, as relações entre as formas, e às vezes víamos coisas que sabíamos não serem "reais", embora as víssemos com nitidez. Por um desejo de libertar-me do medo, por curiosidade, por necessidade de compartilhar, peguei o copo e engoli todo o conteúdo que me era destinado. A beberagem espessa e amarelada tinha gosto de vômito, mas não me causou náuseas. Fiquei tranqüilo esperando. De fato, nada aconteceu de comparável ao tapa da maconha. Apenas comecei a achar cômica a música do Pink Floy d que Gil pusera no toca-discos. Ela me soava superficial e gaiata e eu ria entendendo muito bem por que ela me soava assim. Logo o carpete de náilon do quarto do som apresentou seu modo peculiar de ser: cada tom de cor neutra - palha, areia, gelo, cinza e mil sub-brancos - dizia de si muitas coisas, fosse sobre a velocidade das vibrações que produziam sua aparência, fosse sobre a tolice dos homens que buscavam fingir beleza, fosse sobre a unicidade do momento em que estávamos nos encarando. Eu me demorava observando os objetos e me maravilhava de quão fundo os podia entender. Sabia tudo sobre aquele pedaço de madeira que aparecia sob o tapete. Captava o sentido das variações de densidade, entendia a história de cada pedaço de matéria. Comovia-me com o drama de cada ser inanimado que se me apresentava: não era como se eles tivessem consciência, antes era como se eu fosse uma consciência que tudo atravessa, sendo inclusive consciência profunda dos entes sem consciência. As vezes me parecia possível perceber como é que as moléculas se juntavam para resultar nessa ou naquela manifestação perceptível: pano, plástico, papel. Eu acompanhava o trabalho dos átomos, do acaso e das convenções na criação dos seres reconhecíveis. E não me sentia mal. Pelo contrário. Consciente de que já estava sob a ação da droga, eu simplesmente observava com uma curiosidade quase alegre as mudanças que minha gradativa mudança impunha ao mundo. As outras pessoas começaram a se mover de modo a me chamar a atenção. Por algum motivo, eu me isolara inicialmente e não tivera vontade de nada dizer nem perguntar a ninguém. Sandra entrava e saia do quarto do som com os olhos duros e o rosto sério. Ela estava assustada. Eu a achava parecida com um índio. Gil estava com lágrimas nos olhos e falava alguma coisa sobre morrer, ter morrido, não sei. Dedé circulava pela sala dizendo que se via a si mesma em outro lugar. Eu fiquei muito feliz de observar que as pessoas eram tão nitidamente elas mesmas. Fechei os olhos. Uns pontos de luz coloridos surgiram no espaço ilimitado da escuridão.
Eles se organizavam em formas agradáveis. Eu disse a Gil: "É tão bonitinho! É tudo simétrico!". E eu mesmo achava graça nas palavras escolhidas. E mais ainda: entendia que esse "é tudo" se referia àquilo que de fato é. Eu não estava dizendo "o que eu vejo é bonitinho e é simétrico", mas "o que é é bonitinho e simétrico". Eu tinha toda a calma do mundo para interpretar nesses termos o que eu mesmo dizia. Voltava então a fechar os olhos. Os pontos estavam mais e mais ricamente organizados. Eram luzes concentradas de cores gostosamente definidas. O modo como eles se organizavam parecia ao mesmo tempo
inevitável e livremente decidido por mim. 
Eu queria o que acontecia: eu desejava tal ou qual movimento e isso era imediatamente fatal. Formas circulares eram compostas por lindos pontos luminosos dançantes. Aos poucos eu sabia quem era cada um desses pontos. E em breve eles de fato se mostravam como seres humanos. Eram muitos, de ambos os sexos, todos estavam nus e tinham aspecto de indianos. Essas pessoas dançavam em círculos de desenhos complicados, mas eu não só podia entender todas as sutilezas dessa complicação como tinha tranquila capacidade de concentração para saber sobre cada uma das pessoas tanto quanto eu sei de mim mesmo ou de meus próximos mais amados.
Dizer que essas figuras dançavam em círculos é tentar traduzir para uma linguagem ordinária a sensação de completude absoluta que as formas por elas descritas produziam. Eu alternava com abrir e fechar os olhos - observação do mundo exterior e vivência desse mundo de imagens que se tornava cada vez mais denso. De fato, aos poucos eu reconhecia que os seres vistos com os olhos fechados eram indubitavelmente mais reais do que meus amigos presentes no quarto do som ou as paredes desse quarto e os tapetes. A própria concepção de espaço - o quarto no apartamento, na cidade, no mundo; as distâncias entre as pessoas, a dimensão dos móveis - se mantinha ao preço de um reconhecimento irônico de sua precária convencionalidade. O tempo era igualmente criticado por essa instância mais alta em minha consciência lúcida: com benevolência e sem nenhuma angústia, eu sabia que o fato de estar ali vivendo aquele momento era irrelevante diante da evidência de que eu já tinha - ou teria - nascido, vivido e morrido - e também jamais existido -, embora a percepção do meu eu naquela situação fosse uma ilusão inevitável.










* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

JOSÉ RICARDO, 20 ANOS DE SAUDADES

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O nome de José Ricardoera José Alves Tobias. Ele nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 6 de março de 1939. E faleceu em 11 de março de 1999. Ele foi cantor e compositor. Integrou o movimento da “ Jovem Guarda”.

José Ricardo nasceu no bairro da Tijuca. Aos 10 anos, mudou-se com os pais para o IAPI-Penha, onde o pai ganhou, por sorteio, um apartamento financiado

José Ricardo começou a cantar em rádio ainda pequeno, apresentando-se no programa: “ Rítmos da Polícia Militar”, na Rádio Guanabara. Sua avó materna era italiana e o incentivava a cantar. Depois o menino foi cantar no programa de Isaac Zaltman, na Rádio Mauá.

Ai ocorreu sua primeira gravação. Ele foi fazer um teste na “ RCA-Victor”, onde cantou o sucesso de Altemar Dutra: “ Tudo de Mim”, em 1963. Foi tão bem , que recebeu o “ Prêmio Revelação do Ano”, da “ Revista do Rádio”. E foi contratado pela RCA. Gravou um compacto simples: “ Eu Que Amo Somente Ti”, uma versão da música italiana de Sérgio Endrigo. A gravação foi hit em vários programas. Foi tocada até no programa de César de Alencar: “Grande Parada”

Em 1965, foi lançado o LP: “ Eu Que Amo Somente a Ti”. José Ricardo, a seguir, participou do LP: “ Rio de Janeiro- 400 anos”, interpretando: “Rio de Janeiro” e “ Terra Carioca”. Foi chamado pra atuar em diversos programas importantes de rádio e TV do Rio.

Ainda na década de 60, cantou no programa de José Messias, na Rádio Guanabara, que se chamava: “ Encontro Com os Brotos”. Nessa mesma época, São Paulo também estava ligando-se á música jovem. José Ricardo cantou: “ Festa de Arromba” e sua carreira estourou. Fez centenas de gravações, mais de 60 compactos simples e duplos, fez LPs e CDs

.Cantou no programa” Jovem Guarda”, de Roberto Carlos. Mas como tinha voz possante, não se limitou a isso. Cantou também músicas de carnaval. E fez várias temporadas no exterior. Sua voz possante marcou demais. Gravou discos em espanhol. Foi homenageado em Portugal e na Espanha

Em 1991, ele lutou para organizar bailes populares na Cinelãndia, centro do Rio. E se tornou uma pessoa ligada ao bem do próximo. Não houve um cantor em situação de miserabilidade, que não obtivesse dele uma ajuda.

Como exemplo, junto a sua própria família, assumiu as irmãs Linda e Dircinha Batista, que estavam em estado de necessidade. E assim fez com muitos outros.

Mas veio uma doença grave, que o levou cedo. Ele estava com apenas 60 nos, quando faleceu de câncer. Foi velado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e quando o carro do Corpo de Bombeiros levava seu corpo, inúmeros fãs e amigos o saudavam e choravam. Uma multidão o aplaudia.

Em 2000, por sua arte e sua história de vida pois ajudou a inúmeros colegas, seu nome foi dado á FUNJOR- Fundação Sócio- Cultural José Ricardo.


Fonte: Museu da TV

sexta-feira, 26 de julho de 2019

CANÇÕES DE XICO



O ARADO E O ARADOR

O terreno, devastado, está à espera de quem tenha competência para cultivá-lo, tornando-o fértil e útil para quem nele vive, para quem dele depende. A nós, pobres mortais, mas ainda com poder de decisão, compete escolher o arador certo, como bem disse um Poeta amigo meu. Ter a liberdade de escolher o arado já é um grande privilégio, impensável em outros tempos. Melhor, porém, é saber escolher quem vai pilotar esse arado. Se mal escolhido, a amplidão dos sonhos, de que fala as pessoas sábias, pode transformar-se numa estreiteza em que não passe a menor das pedras que desejamos filtrar, um terreno tão árido que não aceite e impeça a floração da boa semente, que impossibilite a colheita de flores. Não quero canhões, nem porões, nem ladrões. É preciso ter cuidado. Caminhar, cantar e seguir a canção é muito bom, mas isto só, não basta. O mundo é bem mais vasto.

TRINTA ANOS DEPOIS... E PARECE QUE FOI ONTEM!



Aos 21 anos, a bordo do álbum "MM - Ao Vivo" (de 1989), Marisa Monte chegava para ficar. Misturando Titãs com Carmem Miranda e Roberto Carlos com Candeia, a carioca apresentava uma receita diferente, que arrebatou o público de imediato.



Parece que foi ontem, mas o álbum completa, nesse ano, 30 anos. 


E basta ouvir a balada "Bem Que Se Quis" para perceber que o frescor se mantém. A faixa, um dos maiores hits daquele ano, tem versão do midas Nelson Motta, também produtor do disco e padrinho artístico da cantora - para uma música do italiano Pino Danielle que invadiu as rádios e mantém até hoje seu frescor. 

Marisa fazia sucesso nos palcos do eixo Rio-São Paulo quando transformou o roteiro do show em seu álbum de estreia. A compositora ainda estava escondida. Mas o cuidado com o repertório já marcava presença. 


"Comida", dos Titãs, abria os trabalhos com uma forte pegada de maracatu. Já "O Xote das Meninas", de Luiz Gonzaga, virava um reggae. "Chocolate", de Tim Maia, e "Ando Meio Desligado", dos Mutantes, mantinham a temperatura em alta. E o gosto pelo samba se anunciava em duas recriações: a do clássico "Preciso Me Encontrar", de Candeia, e a do samba-enredo "Lenda das Sereias". 

Hoje histórico, "MM - Ao Vivo" foi o cartão de visitas de uma voz que, em pouco tempo, já ocupava a linha de frente da MPB. Três décadas depois, o disco continua sobretudo irresistí­vel. Ouça em seu serviço de música favorito!


quinta-feira, 25 de julho de 2019

GRAMOPHONE DO HORTÊNCIO

Por Luciano Hortêncio*






Canção: Infeliz amor

Composição: Cândido das Neves (Índio)

Intérprete - Jaime Vogeler

Ano - 1931

Álbum - Parlophon 13.261-B



* Luciano Hortêncio é titular de um canal homônimo ao seu nome no Youtube onde estão mais de 10.000 pessoas inscritas. O mesmo é alimentado constantemente por vídeos musicais de excelente qualidade sem fins lucrativos).

MORADORES DA RUA RAMALHETE, ETERNIZADA POR TAVITO E AZAMBUJA, RELEMBRAM HISTÓRIAS

Endereço preserva pouco do que inspirou os compositores. Moradores destacam a história da rua, localizada entre os bairros Anchieta e Serra, e relembram casos sobre Tavito, que morreu no último mês de fevereiro, aos 71 anos


Por Elian Guimarães



Sobraram três ou quatro casas da década de 1950 e uma placa, afixada em 2005
(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)


Da antiga rua de terra, cercada de casas que abrigavam muitas crianças brincando de bola, bicicleta, roda e queimada, entre ramalhetes, restou a saudade gravada nas letras da música de autoria de Tavito e Azambuja e imortalizada pelo Clube da Esquina. Sobraram três ou quatro residências com moradores de gerações mais recentes. Os prédios tomaram conta de todos os espaços e substituíram os velhos casarões. Em um deles, na esquina da Ramalhete com Caracol, uma placa fixada em 2005 reproduz os versos carinhosos dedicados aos compositores, um presente de antigos companheiros.

Com um sorriso largo e um provérbio chinês (se puder sentar, nunca fique de pé. Se puder deitar, nunca fique sentado) atestando sua hospitalidade, Edelweiss Paiva Santos, de 86 anos, jornalista, professora de inglês e português, geógrafa, historiadora e assistente social, abre sua casa para contar sobre as “molecagens” promovidas pela “turminha” da qual faziam parte seus seis filhos e muitas outras crianças da vizinhança, inclusive Tavito. “Eles faziam todas as estripulias da época de criança, a rua não tinha calçamento e todos brincavam sem qualquer resguardo. Não passava carro e eles jogavam pedrinhas nas vidraças para chamar a atenção dos adultos”, recorda.


Edelweiss Santos relembra as 'molecagens' dos filhos e de Tavito(foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)

Em tempos de festas, como Natal e ano-novo, a rua era uma só família se revezando nos diversos imóveis, conta Edelweiss, que faz questão de frisar a origem de seu nome, flor dos alpes, “que combina com a rua Ramalhete, somos todos flores”, brinca.


"Sem querer fui me lembrar De uma rua e seus ramalhetes, O amor anotado em bilhetes, Daquelas tardes" (Trecho da música 'Rua Ramalhete', de Tavito)


Bem no início da rua está a Casa Ramalhete, uma iniciativa do arquiteto Carlos Noronha, que manteve as características arquitetônicas da década de 1950, quando foi construída, e abriga hoje espaço de arte compartilhada. A design Suka Braga, que ocupa espaços da casa, disse que não conheceu Tavito, mas sabe de sua história e gosta muito da música que tornou a rua tão conhecida. O imóvel abriga ateliê de design, estúdio de beleza feminina e coleções de obras de arte e antiguidades. Suka conta que soube que a rua já abrigou gente com “certa influência nas artes e na política”, como o ex-prefeito de Belo Horizonte Rui Lage.


MUITAS HISTÓRIAS

A professora aposentada Cristiane Penna conta que se mudou para a rua há 37 anos, quando se casou com Marcus Penna, já falecido. Seu marido participava da turma que se reunia todo fim de tarde para as brincadeiras da época. “Sou dos tempos do Clube da Esquina, mas não conheci o Tavito, que era amigo de meu marido. Ele contava muitas histórias, inclusive de uma garota que tinha como apelido “Musa”. Não sei se foi quem inspirou a música”, revela.

Como Cristiane, o porteiro do Edifício Ramalhente, Raul Calixto, se lembra de “umas filmagens que fizeram aqui com o Tavito há mais de 10 anos. Acho que foi na votação do símbolo de Belo Horizonte. Ele foi trazido com vários colegas de sua época e filmaram em vários pontos da rua”, conta Calixto. Porteiro há 21 anos, ele diz que o prédio abriga alguns dos antigos moradores dos casarões.

Enquanto o fotógrafo Gladyston Rodrigues procurava o melhor ângulo para o registro fotográfico na Rua Ramalhete com Caracol, uma senhora passou de carro e gritou: “O Tavito está eternizado em nossos corações!”.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

A DOENÇA DE ALZHEIMER NÃO PODE COM A MÚSICA

A área do cérebro que abriga as memórias musicais é menos danificada pela doença


Por Miguel Angel Criado


O gráfico mostra (em vermelho, acima) o giro cingulado anterior,
onde as memórias musicais são armazenadas.
Mais abaixo, visão bilateral de três biomarcadores
da doença de Alzheimer; em vermelho, as áreas mais afetadas.
MPI F. HUMAN COGNITIVE AND BRAIN SCIENCES


Sem saber bem por que, a música é uma das poucas armas que os terapeutas têm para fazer frente à progressão da doença de Alzheimer. Apesar da devastação provocada por essa doença no cérebro e, especialmente, na memória, uma grande parte dos doentes conserva suas memórias musicais, mesmo nas fases mais tardias. Agora um estudo mostra as possíveis causas desse fenômeno: a música é armazenada em áreas do cérebro diferentes daquelas do resto das memórias.

O lobo temporal, porção do cérebro que vai da têmpora à parte de trás da orelha é, entre outras coisas, a discoteca dos humanos. Ali é gerida nossa memória auditiva, inclusive as canções. Estudos com portadores de lesão cerebral respaldam a ideia de que guardamos a música em uma rede centrada nessa área. No entanto, o lobo temporal também é a primeira parte do cérebro a sofrer os estragos do mal de Alzheimer. Como se explica então que muitos doentes não saibam o próprio nome ou como voltar para casa, mas reconhecem aquela canção que os emocionou décadas atrás? Como alguns doentes são incapazes de pronunciar uma palavra, mas, entretanto, conseguem cantarolar melodias que fizeram sucesso quando ainda podiam se lembrar?

Para tentar responder a essas perguntas, pesquisadores de vários países europeus liderados por neurocientistas do Instituto Max Planck de Neurociência e Cognição Humana de Leipzig (Alemanha) realizaram um experimento duplo. Por um lado, procuraram as áreas do cérebro que são ativadas quando ouvimos música. Por outro lado, uma vez localizadas essas áreas, analisaram se, em pacientes de Alzheimer, tais áreas do cérebro apresentavam algum sinal de atrofia ou, ao contrário, resistiam melhor à doença.

Para localizar onde o cérebro guarda a música, os pesquisadores fizeram trinta indivíduos saudáveis ouvirem 40 trios de canções. Cada trio consistia em um tema muito conhecido tirado das paradas de sucessos desde 1977, canções de ninar e música tradicional alemã. As outras duas canções eram, pelo estilo, tom, ritmo ou estado de ânimo, semelhantes à primeira, mas foram selecionadas do grupo dos fracassos musicais para que não fossem conhecidas.

"Ao menos os aspectos-chave da memória musical são processados em áreas do cérebro que não são normalmente associadas com a memória episódica, semântica ou autobiográfica", diz Jörn-Henrik Jacobsen, neurocientista do Max Planck e coautor do estudo. "Mas temos de ser muito cautelosos quando dizemos algo tão absoluto como isso", acrescenta com prudência. As áreas que apresentaram maior ativação ao rememorar as canções foram o giro cingulado anterior, localizado na região média do cérebro, e a área motora pré-suplementar, localizada no lobo frontal.Tal como explicado na revista Brain, o desenho do experimento foi baseado na hipótese de que a experiência de ouvir música é, para o cérebro, diferente daquela de lembrá-la e nos dois processos atuam diferentes redes cerebrais. Durante as sessões, a atividade cerebral dos voluntários foi registrada mediante a técnica da ressonância magnética funcional (fMRI). Eles descobriram que a música está alojada em áreas do cérebro diferentes das áreas onde outras memórias são armazenadas.

Parte dessa prudência pode vir da metodologia adotada para a segunda parte da pesquisa. O ideal teria sido poder estudar a localização das memórias musicais diretamente em pacientes com Alzheimer e não em pessoas saudáveis. Mas, como salienta Jacobsen, não é fácil conseguir que um número significativo de pacientes participe de um trabalho como esse. Além disso, existe também o problema de que muitos dos afetados conseguiam se lembrar da canção, mas não conseguiam verbalizar essa recordação. Por isso, foi realizarado um segundo experimento para ver se as áreas onde a música é armazenada são igualmente ou menos afetadas pela doença do esquecimento.

As medições mostraram que os níveis de deposição de beta-amiloide não apresentaram diferenças significativas. Nas áreas musicais dos doentes o metabolismo da glicose estava em níveis normais e a atrofia cortical era até 50 vezes menor do que em outras áreas do cérebro. Para Jacobsen, "mostrar um hipometabolismo inferior e uma atrofia cortical em comparação com as outras áreas do cérebro significa que não são tão afetadas no curso da doença". E acrescenta. "Mas isso só pode ser observado, acredito que ninguém possa explicar por que isso é assim. No entanto, o giro cingulado anterior mostra uma conectividade aumentada nos pacientes de Alzheimer, o que poderia significar até mesmo que funciona como uma região que compensa a perda de funcionalidade das outras".Para isso, foram estudados 20 pacientes com a doença de Alzheimer e seus resultados foram comparados com os de outros trinta indivíduos saudáveis, ambos os grupos com média de idade de 68 anos. O objetivo era saber em que estado se encontravam as áreas musicais em relação ao resto do cérebro. No diagnóstico e no acompanhamento da doença são utilizados principalmente três biomarcadores, um deles é o grau de deposição do peptídeo β-amiloide, uma molécula que tende a se acumular formando placas nas fases iniciais da doença. Outra pista é a alteração do metabolismo da glucose no cérebro. E, finalmente, a atrofia cortical, um processo natural à medida que se envelhece, mas que na doença de Alzheimer é mais pronunciado.

Em seu trabalho diário, Pérez-Robledo atua muitas vezes como DJ. Se o paciente está em um estágio inicial, ele mesmo sugere as canções que o marcaram. "Procuramos em sua história musical as canções de sua infância, da adolescência, para evocar memórias. Os pacientes as escutam, dançam ou cantam", diz a terapeuta. Quando o paciente já não pode dizer de que canções gostava, ela experimenta as músicas mais ouvidas quando era criança ou, como em muitos casos, é o cônjuge quem escolhe aquela canção que ouviam quando se conheceram."As recordações mais duradouras são aquelas ligadas a uma experiência emocional intensa e a música tem uma relação estreita com as emoções; a emoção é uma porta de entrada para lembrar", diz a musicoterapeuta da Fundação Alzheimer Espanha, Fátima Pérez-Robledo. Os resultados do estudo confirmam isso. "Muitos doentes não lembram o nome de algum parente, mas lembram da letra de uma canção", diz ela.

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