Carregar um dos maiores sobrenomes da MPB é tanto um privilégio como uma responsabilidade. “É parte do meu legado. A música estava lá, e eu nasci. Eu que cheguei naquela sala e tive o privilégio de ver de perto aqueles encontros e, por mais que eu não entendesse, eu sentia e bebia daquilo”. Parte do que absorveu se revela no seu processo de composição, que ela descreve como intuitivo. “Àsvezes parte só de uma palavra, uma ideia, um clima…”, diz ela, que passa a quarentena em uma casa no interior do Rio. Com a turnê do álbum adiada pela pandemia, ela dá palhinhas nas redes sociais — inclusive nas lives de Teresa Cristina — e não para de compor. “Tenho feito muita música à distância, com parceiros. Acho que vou sair da quarentena com um disco novo”, ri.
Assim como para Maria Luiza, crescer em uma casa musical também foi decisivo para que Tim Bernardes, de 29 anos, seguisse sua vocação e se tornasse um dos nomes considerados pelos críticos “a renovação da MPB”. Filho do cantor e compositor Maurício Pereira, que marcou a música dos anos 1980 no Brasil com a banda Os mulheres negras, a primeira palavra dita por Tim foi “música” —como comprova um vídeo caseiro familiar—. Com seis anos, já tocava alguns instrumentos. Aos 17, começou a compor. Depois disso, fez faculdade de Música (“Sou um nerd”, diz) e aperfeiçoou seu talento natural, arrancando elogios de Caetano Veloso: “uma maravilha de afinação, controle da dinâmica, refinamento, execução instrumental e liberdade na elegância do uso do palco e da luz”.
Vocalista da banda O Terno, Tim também lançou, em 2017, o álbum solo Recomeçar, aclamado por cantar a dor em forma de belas canções. Nesse disco, ele toca todos os instrumentos, fez todos os arranjos e também a produção. Seu estilo já foi descrito como “indie-hippie-retrô brasileiro”, uma brincadeira que ele mesmo fez em uma das letras, como um retrato irônico de sua própria geração. “O tropicalismo misturou a cultura brasileira com o que estava rolando no mundo, como o Sgt. Peppers dos Beatles. Bebode Caetano, Gil, Clube da Esquina, mas também de Tame Impala, Mac DeMarco... Não vejo exatamente como uma renovação da MPB, mas uma continuação, uma experimentação”, explica. Nada mais diferente do estilo do pai, que Tim resume como “algo muito próprio, o mauriciopererismo”, apesar de ambos terem trabalhado juntos: Maurício compôs cinco das faixas do álbum de estreia d’O Terno. “Nunca pareceu que eu estava continuando algo dele, cuja sonoridade é muito mais dos anos 1980 e 1990. As coisas que eu ouvia já eram diferentes das coisas que ele ouvia. Talvez por isso fosse tão gostoso trabalhar com ele”, diz Tim.
“Não vejo exatamente como uma renovação da MPB, mas uma continuação, uma experimentação”
Tim Bernardes
O exemplo de carreira do pai também trouxe, no entanto, algumas inseguranças. A maior delas era o medo de não conseguir viver de música. Quando Tim ainda era pequeno, nos anos 1990, Maurício desfez o contrato d’Os mulheres negras para experimentar e inovar sem amarras. “Era muito difícil fazer música independente naquela época e eu percebia como o dinheiro era, de fato, uma questão em casa”. Por isso, quando sentiu a vocação para estudar música, pensou em cursar outra coisa e deixar a arte como plano B. Mas os pais o incentivaram. Pouco mais de 10 anos depois de o pai ter feito sacrifícios para viver como músico independente, Tim Bernardes e seus companheiros d’O Terno conseguem, graças à revolução digital, fazer arranjos e gravações em casa, com facilidade. “Tenho essa coisa de imaginar e visualizar o produto final, seja um vídeo, foto, clipe, música, a melodia, o timbre... É o produto completo que me agrada, por isso gosto de imaginar o resultado final e, a partir disso, pesquisar e entender como consigo chegar nele”, diz o “nerd da música”.
Rumos diferentes
Crescer em uma família musical influenciou os passos de todos esses herdeiros da música brasileira, mas os caminhos tomados pela pianista e cantora Maíra Freitas se mostraram mais sinuosos. Apesar de crescer no Rio de Janeiro entre sambistas, desde muito cedo decidiu tomar rumos diferentes de seu pai, Martinho da Vila e sua irmã, Mart’nália. Aos sete anos pediu para fazer aula de piano. Começou tocando Mozart e Chopin e pretendia “até os 20 e poucos anos ser pianista clássica”. Sua família demorou a acreditar em sua vocação. “Outros até fizeram aula, mas ninguém levava a sério. Eu ficava enchendo o saco para que me dessem um piano e só fui ganhar aos 11 anos”.
Como o samba sempre esteve presente em sua vida, além de tantos outros estilos, passou a mesclar sua formação clássica com música popular. Hoje seu piano se mistura com o batuque do surdo e do pandeiro. “Para mim era um monstro essa coisa do improviso, eu ficava querendo ler partitura...", conta. “Mas minha formação teórica me deu uma grande base técnica. Quando vou fazer meus discos, tem a veia forte da música carioca, mas tem também eletrônica, tem pop, tem muito jazz, tem um pouco de piano erudito... Acho que sou essa grande mistura louca de coisas”, acrescenta. Maíra já lançou dois discos, o último deles em 2015, e possui uma rotina de shows e turnês, inclusive ao lado da irmã e do pai. Ela diz que Martinho da Vila a influencia mais espiritualmente, “guiando a gente”, do que diretamente. “E aprendo muito acompanhando ele como músico, vendo as maneiras geniais de lidar com o público e de conduzir o show. Apesar de não ter formação teórica, ele tem muita experiência e sabe o que quer”, conta.
A pianista e cantora Maíra Freitas ao lado do pai, Martinho da Vila.ARQUIVO PESSOAL
Mas Maíra não vive só de shows e discos. Em casa, ela faz produções, compõe trilhas para séries e filmes e dá aulas de piano. “A internet deu à minha geração acesso a tudo. Posso aprender uma música do Oeste da África e juntar com outros gêneros e essa base da MPB que é tão rica. Você tem Milton [Nascimento], Caetano, meu pai, Gil, Djavan.... Essa coisa maravilhosa que a música brasileira é, de diversa e forte e eclética e rítmica e harmônica. E essa nova geração vem disso e agora pode fazer o que quiser, sem obrigação de fazer isso ou aquilo”.
Esse afã artístico e criativo é sincronizado com os cuidados de suas filhas, uma de dois anos e a outra de quatro meses. Maíra chegou a fazer shows grávida, alguns ao lado do pai, e em muitas ocasiões precisa trabalhar em casa com suas meninas no colo. Ela lembra como algumas pessoas duvidaram ou questionaram sua capacidade de manter uma agenda de shows e seguir trabalhando após virar mãe. Mas os preconceitos não são novidade. “Aos 10 anos ouvi que eu deveria estar tocando tambor, e não piano. Quem toca piano geralmente são filhas de dondocas vestidas de rosa e meia calça, e eu sempre fui espalhafatosa, fora do padrão, com roupa colorida, trança...”, recorda ela, que se orgulha de poder mostrar que uma mulher negra pode, sim, estudar música e fazer algo mais rebuscado. "Hoje sou a representatividade de algumas pessoas. Recebo mensagens de mulheres negras que me acompanham, veem que podem fazer e começam a estudar piano... Fico muito feliz com isso”, explica. Suas responsabilidades vão além da música, acredita ela. “Meu pai cantava quem tiver mulher bonita / que traga presa na corrente. Deixa ele lá tocando isso, mas eu tenho outras responsabilidades. E não quero fazer bobagem”.
Filho da melodia, neto da poesia
Na loteria genética da música brasileira, alguns têm o privilégio de pertencer a duas linhagens de peso. É o caso do cantor e compositor Chico Brown, que herdou do avô, Chico Buarque, o primeiro nome e a poesia do amor e do desamor nas letras. Do pai, Carlinhos Brown, traz a melodia, o ritmo e a timbalada da música da Bahia. Aos 24 anos, Chico —que também é “sobrinho” de Bebel Gilberto (sua mãe, Silvia Buarque, é prima da cantora)— foi chegando devagar na indústria da música, mas começou bem. “Vou cantar agora a música do meu parceiro mais querido”. Era assim que Chico Buarque introduzia, nos shows de sua turnê mais recente (Caravanas), a música Massarandupió, uma composição instrumental do neto com letra escrita pelo avô.
A melodia veio a Chico Brown em sonho, “como um presente de alguma força sobrenatural”, diz ele, com uma mistura de sotaques baiano e carioca. A parceria com o avô é assim: o neto manda a melodia por e-mail e recebe a letra (geralmente muito tempo depois) também por e-mail. Ele começou a compor na adolescência, primeiro no piano e, depois, no violão. “A música sempre esteve presente como cura, alento, de modo que sempre formei bandas e fiz canções autorais desde a época da escola, até mesmo para apresentar trabalhos nas aulas”, conta.
Seu repertório, que ele começou a apresentar em shows pelo Brasil no ano passado, pode ser considerado uma guitarrada baiana com um jazz fusion: mistura as composições autorais, com berço na MPB, com outros ritmos latino-americanos, elementos orientais, rock e música clássica. “Sempre escuto de tudo e misturei o que já é tradicional com as coisas que me instigam musicalmente, coisas que me permitam, através da música, atravessar essas fronteiras de espaço e tempo”, diz.
Na primeira imagem, o músico Chico Brown aparece na infância, ao lado do pai, Carlinhos Brown. Na segunda foto, já adulto, em show próprio e, por último, com o avô, Chico Buarque. ARQUIVO PESSOAL
Quando compõe no violão, Chico tende a ir para a poesia, o ritmo, a ginga. No piano, vai para o clássico. “Faço mais valsa, com umas referências, assim, mais jobinianas. Na guitarra e no violão, sou mais Moraes Moreira, tropical, cancioneiro, com referências do samba e do jazz". Os trabalhos do pai e do avô não têm influência direta na sua criação, embora se inspire na postura profissional de ambos, como se portam nos palcos. Às vezes, busca a poesia de seu avô como inspiração para uma canção de protesto, ou o lado rítmico do pai na busca de uma métrica percussiva. “Já aconteceu de amigos ouvirem músicas minhas e dizerem, sem eu esperar, que parecem canções de um ou do outro”, admite.
Mas a responsabilidade de pertencer a essa linhagem musical, ele diz, vem mais da expectativa alheia. Quando cria, não pensa se sua música atenderá ao gosto do público dessa outra geração. “Até porque o trabalho deles abrange décadas, eu não posso ter a pretensão de parear com eles”, diz o jovem músico, que pretende, no entanto, surpreender aqueles que tendem a subestimar ou superestimar seu trabalho apenas pelo sobrenome que carrega. Como canta o avô e xará de Chico na música Paratodos, os rebentos vão na estrada há muitos anos – desde que nasceram — e por sorte ou por acaso, são legítimos artistas brasileiros.