Por Leonardo Davino*
Bogotá
No encarte de Criolo e Emicida ao vivo (2013), Emicida agradece "antes de mais nada a meus orixás e antepassados que deram seu sangue para que hoje eu ocupasse este lugar". Sabemos qual é este lugar mencionado pelo rapper: o lugar de voz, de ser rapper. Em "Triunfo", por exemplo, Emicida explica este lugar: "Uns rimam por ter talento, eu rimo porque eu tenho uma missão / Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido / Os esquecidos lembram de mim porque eu lembro dos esquecidos / Tipo embaixador da rua".
Abro um parêntese para lembrar alguns versos de "Um bom lugar", de Sabotage: "Um bom lugar / Se constrói com humildade é bom lembrar / Aqui é o mano Sabotage / Vou seguir sem pilantragem, vou honrar, provar / No Brooklin to sempre ali / Pois vou seguir, com Deus enfim / (...) / Bem vindo ao inferno, aqui é raro, eu falo sério / Pecados anticristos e mortal patifaria / (...) / Do ano 2000 pra frente / Homens do passado, pensando no futuro, vivendo no presente / Há três tipos de gente / Os que imaginam o que acontece, / Os que não sabem o que acontece, / E nós que faz acontecer, / O bolo, guacê".
A expressão utilizada por Emicida "A rua é noiz" (nó, nós, noise - barulho) condensa a ação do rapper-porta-voz: indivíduo que se expande no coletivo ao guardar na voz a reivindicação da coletividade, o canto do povo de um lugar historicamente posto à margem por certa parcela (a nata) da sociedade. Tema recuperado por Caetano Veloso, posicionado noutro ponto da questão, no verso "Neguinho que eu falo é nós". E criticamente ironizado por Criolo nos versos "E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar".
"Se o rap se entregar favela vai ter o que?", pergunta Emicida, levando-nos a pensar sobre o texto "Depois daquilo tudo que passou em junho", de Marcus Vinícius Faustini, sobre as manifestações que estão afirmando o esgotamento da democracia representativa: "Muita gente disse que esse movimento não tinha líderes, o que não é verdade. Devemos aos coletivos de juventude urbana - de favelas, mobilidade, arte, direitos das mulheres, movimento negro, LGBT, anarquistas, movimento de luta por moradia - o núcleo duro das mobilizações. A vibrante cena social e cultural do país está nestes coletivos de vida e ação, com forte presença da juventude, que o poder público prefere não reconhecer como parceiros das necessárias transformações da sociedade, canalizando energia apenas para acordos com o grande capital". (Prosa & Verso, 06/07/2013).
O rapper é este catalisador da fusão entre vida/arte e ação. "Artista independente leva no peito a responsa, tiozão / E não vem dizer que não", canta Criolo agregando voz aos coletivos que, à margem das representações políticas constituídas, se mobilizam, se retroalimentam (afetando o macro) e reagem à brutalidade cotidiana. "Eu sou guerreiro do rap, sempre em alta voltagem / Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem / Vida loka, eu não tenho dom pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é legítima", diz Mano Brown.
"Minha conclusão é que muito buso ainda vai pegar fogo / Aí, todo maloqueiro tem em si / Motivação pra ser Adolf Hitler ou Gandhi / E se a maioria de nóis partisse pro arrebento? / A porra do congresso tava em chama faz tempo! / Eu nasci junto a pobreza que enriquece o enredo / Eu cresci onde os muleque vira homem mais cedo", canta Emicida. O rapper incorpora a revolta, tal como o Parangolé P15 Capa 11 (1967) de Hélio Oiticica sugeria no corpo de Nildo da Mangueira.
A radicalização das referências - Hitler e Gandhi - sugere um rascunho de resposta à questão apresentada por Nestor Garcia Canclini no final do livro Culturas híbridas. Ou seja, como ser radical sem ser fundamentalista, na crítica social e no questionamento das pretensões do neoliberalismo tecnocrático?
Criolo e Emicida mostram que, no Brasil, em sua experiência sincrética, misturado ao samba, ao reggae, ao afrobeat, à ginga das quebradas, ou seja, sem negar a memória religiosa africana, o rap é polirrítmico, não tem o ranço segregacionista que o caracteriza nos EUA. Aqui, através da reação indígena e africana à imposição católica, não foi preciso abandonar os deuses, como no caso estadunidense do protestantismo. Nem sufocar os antepassados que deram seu sangue para que hoje o rapper ocupe seu lugar como o dedo na ferida, a voz do canto do povo de um lugar, a reivindicação cidadã.
E ao não encartarem as letras do rap, eles recuperam a tradição da poesia oral/vocal, dialogam com os repentistas, com os cantadores de feira, também estes cantores das agruras e místicas do povo de um lugar, instalam a rinha dos mc's, feita para o improviso, para o desafio. O rapper problematiza as fronteiras entre criação, produção e recepção; cultura, capitalismo e consumo. Ele é autor e produtor. Mediadas pelo capital, as tendências estéticas entram em crise diante da ação/resistência política progressista do rap.
Em "Bogotá" (Criolo) a referência literária é nítida. Mas, ao invés de "Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei" (Manuel Bandeira), temos: "Vamos embora para Bogotá / (...) / Vai ser melhor do que em Pasárgada / Agradar até o rei", deslocando a ação verbal para o convite plural e intensificando a mítica do lugar de origem, pois, se para o sujeito do poema "Aqui eu não sou feliz" e "Lá a existência é uma aventura", o sujeito do rap quer levar para lá toda a beleza que há aqui. Afinal, "Desde pequeno sabe o que é isso: / No fio da navalha / Brincar no precipício". "Se você quer amor, chegue aqui / Se quer esquecer a dor, venha pra cá / Pois a ilusão é doce como o mel / E cada um sabe o preço do papel / Quem tem / E de onde vem", canta.
Na gravação ao vivo, aos versos de Criolo se conectam os versos de Emicida evocando Iemanjá e Ogum como guias dos antepassados que orientam a ação do rapper: "(...) É canto que há no azul do vestido de Iemanjá / (...) / eu quero provar sabores de lá / (...) / minha vida cabe numa mochila / tá bom só um cantinho pra cochilar / a noite Ogum vai me vigiar".
Como vemos, "o rap ainda é o dedo na ferida" do elogio cego dos civilizados embasbacados com a luxuosidade de um Maracanã restaurado a altos custos em contraposição à realidade fora do estádio feito ilha. Fora da ilha, a polícia mostra "como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados". Fora da ilha, a lenta luta diária é o regime. E "o rap é a resistência; a voz das ruas, de todas as malocas".
***
Bogotá
(Criolo)
Vamos embora para Bogotá
Muambar, Muambei
Vamos cruzar Transamazônica
Pra levar, Pra freguês
Vai ser melhor do que em Pasárgada
Agradar até o rei
Se você quer amor, chegue aqui
Se quer esquecer a dor, venha pra cá
Pois a ilusão é doce como o mel
E cada um sabe o preço do papel
Quem tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Desde pequeno sabe o que é isso:
No fio da navalha, brincar no precipício
A vida e a morte, escolha o seu troféu
Pois cada um sabe o preço do papel que tem
E de onde vem
Es qualité no exterior
Emicida:
Ei, areia, espuma, sereia, escuna, mareia na bruma e a brisa, ah
pé no chão, de canto com a solidão e seu acalanto é o manto de
é canto que há no azul do vestido de Iemanjá
que quanto que ah faz toda vez, encontra paz na minha pequenez
eu quero provar sabores de lá
amores, olhares, lugares de ah
porque eu tô que não me aguento
é pouco tudo eu não condeno
é louco, tio
minha vida cabe numa mochila
tá bom só um cantinho pra cochilar
a noite Ogum vai me vigiar e eu vigiar
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
0 comentários:
Postar um comentário