segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017
MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*
06 - Grande Otelo, o fiel companheiro
O tempo jamais apagará a saudade que sinto de um sujeito chamado Grande Otelo. Ele era o que se poderia chamar de “a sombra alegre de meu pai”. Otelo, dono de especial genialidade, cheio de problemas emocionais, tinha em meu pai o amigo, o irmão, o mentor. Bebia demais. Meu pai o definia numa frase: “Otelo era tão grande que nem se matar conseguia, por mais que tentasse”. E ele tentou durante toda a sua existência… Conta o compositor Bily Blanco que o escritor Orígenes Lessa o chamava, carinhosamente, de “sabagante valetudinário”. Otelo, numa conversa, contou a Bily que não sabia o significado da estranha expressão. Ao ser esclarecido, espantado, escutou a “tradução”: indivíduo de compleição fraca, homem pequeno. Dá para imaginar a cara de Grande Otelo diante disso? Otelo tinha preferência por loiras enormes, e várias fizeram dele “gato e sapato”. O dinheiro que gastava com elas daria para construir um cassino, diziam os amigos. Com o passar do tempo, os problemas de Otelo já não comoviam as pessoas, ninguém parava mais para ouvir suas histórias. Foi aí que comecei a receber insistentes convites dele para andarmos de bicicleta pela Urca. Eu ia sentado no quadro, ouvindo as lamúrias dele sobre a vida, os problemas com as mulheres. Eu devia ter no máximo sete anos e me tornara o confidente de Otelo. Foi ele quem me presenteou com a primeira camisa do Botafogo, num momento de angústia, tentando garantir ouvinte para o coração do botafoguense Telinho — este era outro apelido carinhoso de Otelo. Ele me acordava à noite e íamos com meu pai e minhas tias Lila e Margarida pescar nos paredões da Urca. Otelo enchia a cara. Na volta da pescaria, naquelas madrugadas, cantávamos nosso hino de pescadores: Nós somos pescadores Que viemos de pescar Cocoroca! Vez por outra, lá estávamos nós, cantando o hino com as varas de pescar nas costas. As cocorocas eram muitas vezes fritas por minha mãe para acompanhar a cervejinha. Telinho não saía de casa. Minha mãe dizia que ele era seu “filho preto”. Certa noite, uma grande tragédia atingiu sua família, na Urca, quando trabalhava com Walter Pinto, no Teatro Recreio. Otelo estava casado com Gilda e criava um filho dela, apelidado de Chuvisco, a quem curtia como seu filho. Até hoje não se sabe ao certo o que levou sua mulher a atitude tão drástica. Lembro-me bem. Acordamos de madrugada com Otelo batendo em nossa porta e gritando desesperado: com um revólver, Gilda havia matado Chuvisco e se suicidado. Se Otelo já bebia, passou a mergulhar no copo. O tempo se encarregou de minorar sua dor, e ele se reergueu. Tal capacidade seria posta à prova muitas vezes. Voltou ao palco, ao cinema. Junto com Oscarito, fez grande sucesso na fase áurea da chanchada brasileira, nos estúdios da Atlântida e da Vera Cruz. Mesmo estando sempre juntos, não era habitual a participação de Otelo nas músicas de Herivelto, mas chegaram a fazer algumas músicas em parceria. O conhecido samba “Praça Onze” envolve um episódio engraçado. Herivelto contava que Grande Otelo chegou ao camarim do show lamentando o fim da praça Onze, pois a Nova Avenida (atual avenida Presidente Vargas) estava rasgando a cidade. Trazia um monte de palavras escritas em algumas folhas de papel: “a praça iria se acabar, o sambista iria perder seu lugar de concentração, que as lágrimas já tomavam conta do sambista, e… blá-blá-blá”. Herivelto pegou aquela papelada, levou para casa e dias depois perguntou para Otelo se era isso que ele queria dizer: Vão acabar com a praça Onze Não vai haver mais escolas de samba, não vai Chora o tamborim! Chora o morro inteiro! Favela, Salgueiro! Mangueira, Estação Primeira! Guardai os vossos pandeiros, guardai Porque a escola de samba não sai Adeus, minha praça Onze, adeus Já sabemos que vai desaparecer Leva contigo a nossa recordação Mas viverás, eternamente, em nosso coração E algum dia, nova praça nós teremos E o teu passado cantaremos Otelo começou a gritar: “É isso, é isso o que eu quero dizer!”. E a parceria aconteceu. Nascia um dos maiores sambas do Brasil. Esse talento natural de escrever para o homem simples entender, e cantar, Herivelto adquiriu de suas origens humildes. A parceria não foi motivo só de alegria para Otelo; foi também de mágoa com Herivelto devido a sua conhecida “tendência” de curtir sozinho os louros do sucesso… Cresci ouvindo meu pai contar, de forma brincalhona, que a parceria na música “Praça Onze” havia acontecido só porque ele, Herivelto, soube desenvolver uma ideia de Otelo sobre o término da praça. A respeito de suas parcerias com Otelo, dizia sempre que ele apenas dera alguns “palpites”. No início foi engraçado, mas com o passar do tempo as pessoas perguntavam: “Ô, Otelo, mas, afinal, você é ou não é parceiro do Herivelto?”. A verdade era: Herivelto jamais deu um crédito real ao compositor Grande Otelo, seu parceiro em outros maravilhosos sambas, como “Bom dia, avenida” e “Fala, Claudionor”. Otelo se ressentia muito com essa atitude, mas engolia a mágoa e continuava à volta do amigo de todas as horas e… parceiro de quase nada.
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