CARMEN MIRANDA
Mais de cem anos após seu nascimento, em 1909, essa falsa baiana continua viva no imaginário popular. Em algum lugar do mundo, exatamente agora, deve haver uma bicha velha ou um little monster imitando Carmen Miranda em frente ao espelho. Ícone da cultura pop, sua persona abriu caminho para Elvis Presley, Michael Jackson, Madonna e, obviamente, Lady Gaga. Todos são suas crias. Primeira referência musical brasileira a rodar o planeta, Carmen foi também um ícone fashion. Praticamente inventou o salto plataforma, e além de popularizar o uso dos turbantes e da maquiagem pesada entre as recatadas it girls norte-americanas. Tornou-se um meme muito antes de o termo existir. Quase uma drag queen, o visual que ela mesma criou, e muitas vezes costurou, a transformou em um valioso produto de exportação. Mas essa figura caricata e ao mesmo tempo genuína sempre dividiu os brasileiros, que até hoje vivem uma relação de amor e ódio com sua maior estrela. Carmen pode ser encarada tanto como um símbolo de afirmação e liberação da mulher quanto de submissão. Apesar de jamais ter esboçado qualquer opinião política, foi usada como instrumento de propaganda pelo Estado Novo e pela Política da Boa Vizinhança. Assim como Elvis e Michael, a pop star passou os últimos anos de vida dependente das anfetaminas para manter o pique, e dos soníferos para conseguir apagar. Morreu intoxicada. Todos os dias, sete dias por semana, Carmen trabalhava e também se drogava. Com supervisão médica, foi vítima da emergente indústria farmacêutica. Pouco a pouco, a criatura sufoca a criadora. A fantasia brejeira e sacana de baiana estilizada se torna uma prisão estética. Filme após filme, show após show, repete ad nauseam as mesmas piadas. Apesar de perfeitamente inserida na sociedade norte-americana, diante das câmeras persiste a personagem da imigrante recém-chegada, deslumbrada com o mundo novo, mas incapaz de falar inglês. Os anos avançam, e ela insiste no mesmo. Figurinos, gestual, maquiagem. Nada muda. Ainda assim, ou talvez por isso, o mito sobrevive. * * * Portuguesa de nascença, Maria do Carmo Miranda da Cunha chega ao Rio de Janeiro com apenas um ano, em 1910. A mãe, abandonada pelo marido que partiu para a América em busca de uma vida melhor, pega as duas filhas pequenas, Carmen e Olinda, e embarca rumo ao Brasil. Disposta a reunir a família, retoma o casamento e dá luz a nada menos do que seis crianças. O pai, seu José Maria, precisa se virar trabalhando como barbeiro. Dona Maria Emília, constantemente grávida, lava roupas para a vizinhança da Lapa. Em 1925, no centro do Rio, o enorme casarão onde a família mora se transforma durante o dia em um restaurante que serve refeições para os trabalhadores da região. Carmen tem 16 anos, atende as mesas e ajuda na cozinha. Quer fazer sucesso, mas ainda não sabe como. Logo cedo, seguindo os passos da irmã mais velha, começa a trabalhar em um ateliê de costura e toma contato com o maravilhoso mundo das linhas, tecidos e bordados. É um universo do qual jamais se afastará, desenhando e, muitas vezes, costurando os próprios figurinos. Depois, troca o ateliê pelo emprego de balconista na luxuosa loja A Principal, voltada ao comércio de artigos finos para cavalheiros endinheirados. Nessa época, a Fox do Brasil anuncia um concurso para eleger uma atriz e um ator brasileiros que ganharão contrato com Hollywood. Carmen, aos 18 anos, se inscreve, mas é desclassificada logo na primeira eliminatória. Seu rosto não tem o perfil roliço procurado pelos produtores. Também tenta uma vaga no filme Barro humano, dos cineastas Adhemar Gonzaga e Paulo Benedetti, novamente sem sucesso. Relatos da época contam sobre uma moça habituada às grossas camadas de maquiagem para esconder as espinhas. A jovem e obstinada Carmen Miranda consegue um teste com o respeitado compositor Josué de Barros. Munida de audácia, canta para o próprio autor a música “Chora violão”, e Josué fica deslumbrado com a pequena. O sambista conquista o pai de Carmen e obtém o aval para ser seu tutor artístico. A partir de então, quase todas as manhãs, no porão do restaurante, Carmen e Josué ensaiarão exaustivamente. Depois, se sentarão à mesa com o patriarca, com quem almoçarão e discutirão os planos artísticos. A parceria dá samba. Carmen logo fecha contrato com a recémchegada gravadora alemã Brunswick, pela qual grava duas canções de Josué, “Não vá simbora” e “Se o samba é moda”. O disco de 78 rotações acaba não saindo, e o tutor bate à porta da RCA Victor. Com ajuda de Pixinguinha, funcionário da gravadora, Carmen Miranda emplaca um novo contrato, assinado pelo pai, já que ela ainda não completou 21 anos. Na divulgação, omitem sua nacionalidade portuguesa para evitar comparações com as cantoras de fado. Em janeiro de 1930, a RCA lança seu primeiro disco e, ainda naquele mês, Carmen retorna aos estúdios, gravando duas canções para o Carnaval. Entre elas, seu primeiro grande sucesso popular, “Taí”, de Joubert de Carvalho. Nas ruas do Rio, todos cantam a marchinha, que toca à exaustão nas rádios do Brasil. Pelo feito, a pequena recebe a enorme quantia de catorze contos de réis. O ano de 1930 será fechado com chave de ouro. Com mais de 28 músicas gravadas na RCA em apenas um ano de carreira, já recebe, ao lado do consagrado cantor Francisco Alves, o maior cachê do país. Carmen Miranda é um fenômeno. Não consegue dar conta dos pedidos de apresentações, fotos, reportagens e eventos. Quando perguntada sobre sua origem, decide não manter a mentira inventada pela gravadora e revela ser portuguesa. A declaração em nada abala a reputação da personalidade mais amada do Brasil. Em 1931, um baque. A morte de Olinda, a irmã mais velha e seu modelo de conduta. A estrela desce ao inferno, cogita abandonar a carreira, mas é salva pela vontade de brilhar. Após três meses de luto, a Pequena estreia fora do Brasil, numa temporada em Buenos Aires. Sua vivacidade fora do comum remetia à cocaína, um tônico vendido nas farmácias até pouco tempo atrás e muito usado pelos artistas da época. Diferentemente de hoje, em que o pó vem acompanhado de todo um estigma, nos anos 1930 ele não era visto com tanto pudor. Mas, não, Carmen não cheirava, não fumava nem bebia. Ainda não tomava remédios. Estava limpa. Sua energia vinha unicamente da obstinada vontade de fazer sucesso. Carmen era baixinha. Media 1,52. Em terra de mulatas, quase desaparecia. Mas o palco que ela deseja é ocupado pelos que sabem ser grandes. Em 1934, aos 25 anos, a pequena vai ao sapateiro levando consigo o esboço de um sapato que, inspirado nos aparelhos ortopédicos, teria o poder de torná-la mais alta, sem o desequilíbrio e o incômodo provocados pelo salto agulha. Ela se apresenta em cima daquele estranho instrumento, antecipando o que Marily n Manson faria seis décadas depois, ao glamorizar as vestes cirúrgicas. Graças à ousadia de Carmen, o salto plataforma se torna um clássico. Encantada, continua a reinvenção do próprio visual, e enrola um pano em volta da cabeça, escondendo os cabelos castanhos claros. A pequena se torna longilínea. Notável. A primeira aparição desse novo visual é registrada no palco do Teatro Broadway , em Buenos Aires. Longe de casa, distante de seus conhecidos, ousa sem medo. É nessa mesma viagem que estreia ao lado do Bando da Lua. Justamente esses três elementos – Bando da Lua, uso de turbante e de sapatos plataforma – serão sua marca registrada. É importante ressaltar que, nessa fase inicial, sua cabeça ainda não carrega todos os balangandãs que farão dela um ícone pop. A profusão de frutas e enfeites de plástico, coloridos e brilhantes, ainda espera para explodir. Jovem, inteligente, linda e milionária, a moça é assediada de todos os lados. Carmen tem uma qualidade de estrela até então inédita no Brasil da primeira metade do século passado. A artista é um conjunto, não apenas uma cantora. Atua, canta, dança e inventa moda. No campo amoroso, envolve-se com alguns play boys, mas nenhum romance avança. Não tem tempo para isso.
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