terça-feira, 26 de janeiro de 2016

ESTUDANDO A MPB: REFLEXÕES SOBRE A MPB, NOVA MPB E O QUE O PÚBLICO ENTENDE POR ISSO - PARTE 04

Por Rafael Machado Saldanha 


RESUMO: Este trabalho pretende discutir a evolução do uso da sigla MPB (Música Popular Brasileira), desde sua popularização, nos anos 60, até os dias de hoje, dando ênfase para sua ramificação recente conhecida como “Nova MPB”. Também se buscou compreender como se dá a recepção por parte do público brasileiro, procurando contrastar as informações obtidas nas pesquisas bibliográficas com a opinião de ouvintes de MPB reunidos através de um fórum da Internet. Palavras-Chave: Música Brasileira – Estudos da Recepção – MPB – Nova MPB 



2. A PÓS-MODERNIDADE E A MPB


Como pudemos observar nos capítulos anteriores, o conceito de MPB não é algo estanque e facilmente definível. Desde o seu surgimento, nos anos 60 do século XX, a sigla já foi utilizada para expressar idéias diferentes, algumas vezes quase antagônicas. No entanto, pode se notar a partir do final dos anos 80 a tentativa de conformação da MPB em um gênero musical, o que implicaria em “regras econômicas (direcionamento e apropriações culturais), regras semióticas (estratégias de produção de sentido inscritas nos produtos musicais) e regras técnicas e formais (que envolvem a produção e a recepção musical em sentido estrito).”(Janotti Jr., 2004). É dentro dessa lógica, fortemente atrelada ao mercado, que a expressão “Nova MPB” vai surgir. Ao contrário da sigla original, que se fez generalista, o surgimento dessa nova denominação vem justamente com o objetivo de restringir, de encerrar um sentido, à medida que uma “Nova” MPB só seria possível em contraposição à uma “velha” MPB.

E quais seriam as características dessa nova MPB? O website “Nova MPB”, a define da seguinte maneira:

A Nova MPB nada mais é que nova formatação num processo natural da música:
a mistura entre o “novo” e o “velho”, característica que parece imperar em todas as esferas
da sociedade brasileira. Depois dos grandes artistas renomados da famosa música
popular brasileira, eis que surgem no cenário musical nomes nunca ouvidos antes.
Na nova MPB o som não se restringe mais a apenas um toque do violão. Hoje os novos
artistas usam influências do samba, pop, eletrônico e outros ritmos malucos,
traçando uma combinação caleidoscópica de ritmos e conceitos. O tema ainda
é pouco discutido na grande imprensa. E, quando é, surge sob o vocábulo
de ‘MPB Pós-Moderna’. Tudo isso porque o processo de composição ora adotado
incorpora novas informações de forma rápida, ágil, numa mistura
de veículos, tendências, cores e sons.

A definição do Website, embora não seja definitiva, abre pistas para a compreensão do que seria essa “Nova MPB”. O uso da expressão “MPB Pós-Moderna” indica um caminho para pensarmos analíticamente essa “cisma” que parece emergir no campo simbólico da MPB.


2.1. O Pós-Moderno

O termo “Pós-Moderno” está longe de ser um consenso entre os estudiosos. Alguns autores preferem chamar a época em que vivemos de “Modernidade Líquida”, “Modernidade Tardia” ou “Ultra-modernos”. Porém, não ignorando as diferenças que cada um desses conceitos tem, o diagnóstico de nossos tempos é muito semelhante para todos esses autores.

Para Santos, “Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (1900-1950)” (2006:7-8). Portanto, sob essa conceituação, podemos entender que a MPB está, desde seu surgimento, inserida num contexto pós-moderno. Porém, entendese que estas convenções são criadas por estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus e norte-americanos, e estão sujeitos à atrasos em países em desenvolvimento como é o Brasil. É preciso então observar mais proximamente a MPB para se ter uma conclusão sobre seu caráter pós-moderno ou a ausência deste.

Na mesma obra, Santos dá indicações sobre como se comportaria a arte nesse cenário do pós-modernismo. Um fator que é apontado como importante quando pensamos na arte pósmoderna é a tecnologia, que amplia as possibilidades de produção e, principalmente, expande o alcance da obra, gerando àquela que seria chamada de Cultura de Massas. É o que Morin chama de “uma terceira cultura, oriunda da imprensa, do cinema, do rádio, da televisão, que surge, desenvolve-se, projeta-se, ao lado das culturas clássicas – religiosas ou humanistas – e nacionais.” (Morin, 1997a:14). A definição do autor francês sobre o que seria essa terceira cultura não deixa restar dúvidas:

Cultura de massa, isto é, produzida segundo as normas maciças
da fabricação industrial; propagada pelas tecnologias de difusão maciça
(que um estranho neologismo anglo-latino chama de mass media);
destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos
compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade
(classes, família, etc.) (Morin, 1997a:14)

A definição de Morin da Cultura de Massas é bastante semelhante à descrição do processo artístico pós-moderno feito por Santos:

Foi contra o subjetivismo e o hermetismo modernos que surgiu a arte Pop, a primeira bomba pós-moderna. Convertida em antiarte, a arte abandona os museus, as galerias, os teatros. É lançada nas ruas com outra linguagem, assimilável pelo público: os signos e objetos de massa. Dando valor artístico à banalidade cotidiana – anúncios, heróis de gibi, rótulos, sabonetes, fotos, stars de cinema, hamburgueres –, a pintura/escultura Pop buscou a fusão da arte com a vida, aterrando o fosso aberto pelos modernistas. A antiarte pósmoderna não quer representar (realismo), nem interpretar (modernismo), mas apresentar a vida diretamente em seus objetos. (Santos, 2006: 36-37).

Essa descrição dota ainda mais de características pós-modernas a obra dos artistas dos primórdios da MPB, sobretudo os tropicalistas. “Alegria Alegria”, de Caetano Veloso, “Volks Volkswagem Blue”, de Gilberto Gil e “Cotidiano”, de Chico Buarque são exemplos dessa valorização da “banalidade cotidiana” mencionada por Santos.

Em outro ponto, Santos afirma que “Os modernistas (veja Picasso) complicaram a arte por levá-la demasiadamente à sério. Os pós-modernistas querem rir levianamente de tudo”. (Santos, 2006: 10). É isso que está fazendo Chico Buarque em 1974, ao compor (sob o pseudônimo Julinho de Adelaide) e gravar “Jorge Maravilha”, paródia ao rock feito na época que supostamente teria sido gravado em provocação à declaração da filha do então presidente da república, General Ernesto Geisel, que disse ser fã do cantor, ou ainda a um policial que havia pedido para o cantor autografar um disco para a filha enquanto o prendia (Chico Buarque não confirma nenhuma das duas versões).20 Tom Zé parodia a atitude “modernista” dos compositores brasileiros em “Complexo de Épico”, de 1973:

Todo compositor brasileiro
é um complexado.
Por que então esta mania danada,
esta preocupação
de falar tão sério,
de parecer tão sério
de ser tão sério
e sorrir tão sério
de chorar tão sério
de brincar tão sério
de amar tão sério?
Ai, meu Deus do céu,
vai ser sério assim no inferno!
(...)

No entanto, este pensamento é radicalmente oposto à visão da estética pós-moderna apresentada pelo norte-americano Fredric Jameson. Para ele, o pós-modernismo artístico não se caracterizaria pelo riso parodístico. Ele seria substituído por uma manifestação mais ingênua, menos desafiadora: o pastiche.


2.2. O Pastiche

 Alguns pesquisadores (Naves, 1988; Jameson, 1985) parecem concordar que o Pastiche é uma manifestação artística – ou antiartística (Santos, 2004) – típica da pósmodernidade, em contraposição à paródia, que seria típico da modernidade. Porém, o próprio conceito de pastiche não está livre de disputas. Em dissertação Naves, baseando-se em Moriconi, apresenta o pastiche como “uma retomada lúdica do texto do passado”(Naves, 1988: 84), em contraponto à paródia, onde “a relação com o texto da tradição é negadora, transgressiva, desviante”(Naves, 1988: 84).

 Já Jameson tem uma idéia um pouco diferente do que é o pastiche. Para ele:

O pastiche é, como a paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo,
a utilização de uma máscara estilística, uma fala em língua morta: mas a sua prática
desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso
satírico, sem a graça, sem aquele sentimento ainda latente de que existe uma norma,
em comparação com a qual aquilo está sendo imitado é, sobretudo, cômico.
O pastiche é a paródia lacunar, paródia que perdeu seu senso
de humor (...)(Jameson, 1985: 18)

 Assim, o pastiche não seria uma manifestação “lúdica”, já que exclui-se o caráter de diversão dessa expressão, que para Jameson está presente na paródia:

(...)a paródia se aproveita da singularidade destes estilos para incorporar
suas idiossincrásia e singularidades e criar uma imitação que simula o original.
(...)Todavia, o efeito geral da paródia é - quer simpática quer maledicente -
ridiculariza a natureza privada destes maneirismos estilísticos
bem como seu exagero e sua excentricidade em relação ao modo como
as pessoas normalmente falam e escrevem. (Jameson, 1985:18)

 O autor norte-americano, em sua afirmação, abre a possibilidade de uma paródia “simpática”, que não seria necessariamente “negadora” da tradição. No entanto, para se compreender como esses conceitos se aplicam à música brasileira, é preciso observar algumas particuliaridades do modernismo em nosso país.

 A maioria dos movimentos modernistas ao redor do mundo foram marcados por uma forte preocupação com o futuro em detrimento do passado. A própria palavra “moderno” passou a ser utilizada como antônimo de “ultrapassado” ou “antigo”. No entanto, o movimento no Brasil não teve em sua essência essa rejeição à tradição.

(O modernismo brasileiro) apesar de rejeitar a cultura acadêmica
institucionalizada da época, fortemente influenciada pelos padrões franceses,
acaba voltando os olhos para o passado e incorporando parte do repertório cultural.
Silviano Santiago trata desse assunto, tentando mostrar como representantes desta
tendência, no Brasil, atuaram no sentido de ler a tradição
como novidade21. (Naves, 1988:85).

Isso pode ser percebido desde o marco inicial do movimento brasileiro, na Semana de Arte Moderna de 1922, onde se rejeitava, com humor e ironia, as definições nacionais e estéticas típicas do parnasianismo (“Em ronco que aterra, / Berra o sapo-boi:/ '- Meu pai foi à Guerra/ - Não foi! - Foi! - Não foi!' O sapo-tanoeiro/ Parnasiano aguado/ Diz: - 'Meu cancioneiro/ É bem martelado.”) e romantismo. Esse resgate da tradição não acontece por acaso. Ele ocorre como uma reação anti-colonialista, que será importante fonte de inspiração para manifestações futuras de mesmo cunho. Em seu Manifesto Pau-Brasil, Oswald de Andrade expressa essa dualidade entre o novo e a tradição e uso moderno da “tradição como novidade”:

O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império
da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro
em sua época. O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode
ser uma atitude do espírito. O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a
adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa
tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. (Andrade, 1972: 10).

Assim, fica óbvio que o curso do modernismo brasileiro se deu de forma bastante diversa do que ocorreu no resto do mundo. Não era então absurdo imaginar que a ruptura deste, que marcaria o pós-modernismo, também se desse de forma diversa àquela que é descrita por autores estrangeiros. Considerando também o atraso já referido que estes movimentos costumam ter em países afastados do eixo EUA-Europa, podemos afirmar que o período de surgimento da MPB (visto no capítulo anterior), se encontra na encruzilhada entre o fim do moderno e o advento do pós-moderno.

Até mesmo o contexto sócio-político brasileiro da época contribui nesse aspecto. Num momento em que mensagens diretas de desagrado ao regime eram duramente rechaçadas pelos órgãos de repressão, um grupo de compositores da MPB começa a se utilizar do humor agressivo da paródia para tentar escapar dessa perseguição. Porém, ao fazer essa opção, se reduziu também o alcance e poder de comoção dessas mensagens. Como disse Chico Buarque, em entrevista à Ana Maria Bahiana, em 1974:

(...) vira circuito fechado. Você grava um disco para ser curtido pelas
pessoas que já sabem o que é. Você não está gravando um disco, está dando um
abraço nas pessoas. O que é muito bacana, mas não
adianta nada. (Bahiana, 2006: 57).

Porém, com o recrudescimento do regime, mesmo estes artifícios começam a ser detectados pelos censores, que passam a visar aqueles que se utilizaram deste e de outros recursos para tentar burlar a vigilância estatal. Na mesma entrevista, Chico Buarque – passando então por um longo período de inatividade como compositor, comenta:

(...) é preciso saber até que ponto eu pego no violão e não tenho vontade
de compor porque acho que não vale a pena, que não vai passar. Não é auto-censura,
é um cansaço de se empolgar com um troço bonito e perdê-lo, então você antes disso,
já não vai fazer pra não ter desgosto. (...) Porque é muito chato, isso de as pessoas
te pararem na rua e te perguntarem pela censura, e não pelo meu trabalho.
Como artista, eu quero ser julgado pelo meu trabalho. (Bahiana, 2006: 58-59)

 Assim, também por causa da repressão, a paródia modernista foi perdendo seu espaço, à medida que a MPB amadurecia.

 Um compositor que notadamente fazia uso do pastiche em suas obras foi Caetano Veloso. Porém, o pastiche de Caetano pouco tem a ver com a expressão inócua e insípida descrita por Jameson, estando mais próximo do procedimento “lúdico” descrito por Naves. A própria autora encontra a origem desse humor incorporado pelo compositor baiano no Camp.

 O Camp é um conceito estético descrito nos anos 60 pela crítica literária norteamericana Susan Sontag. A obra de Sontag foi fundamental para dar as bases para a recepção da Pop Art de Andy Warhol. No ensaio “Notes on ‘Camp’”, ela lista 58 teses do que comporia o Camp. Como produto da pós-modernidade, alguns dos elementos que figuram nas 58 teses de Sontag coincidem com os que já foram ditos aqui. (Estetização da vida e do viver, etc...). Porém, o traço marcante que nos interessa está descrito nas teses 41, 43 e 44:

41. O ponto central do camp deve ser destronar o sério. O camp é divertido, anti-sério.
Mais precisamente, o camp envolve uma relação nova, mais complexa com
"o sério." É possível ser sério sobre o frívolo, frívolo sobre o sério. (...)
43. Os meios tradicionais para ir além da seriedade - ironia, sátira - parecem
hoje fracas, inadequadas ao meio culturalmente ultra-saturado em que
a sensibilidade contemporânea é educada. O camp introduz um padrão
novo: artificial como um ideal, teatralidade.
44. O camp propõe uma visão cômica do mundo. Mas não uma comédia amarga
ou polêmica. Se a tragédia for uma experiência do hiper-envolvimento, a comédia é
uma experiência do sub-envolvimento, do destacamento.(Sontag: 1964).

 Outro aspecto do camp que não pode ser desprezado é sua ingenuidade inerente. A tese número 18 diz: “Deve se fazer uma distinção entre o naïve e o camp. O camp puro é sempre naïve. Camp que se reconhece enquanto camp (‘camping’) é quase sempre satisfatório.”25 (Sontag: 1964). Nesse ponto, vemos que a fusão entre o pastiche e o camp – mesmo que não um camp puro, naïve – , usada por Naves para definir a obra de Caetano Veloso, cumpre essa função de forma satisfatória.

Essa passagem pode ser observada se analisarmos a obra do compositor baiano. No início de carreira, Caetano se aventurava em campos parodísticos, como no disco coletivo Tropicália, de 1968, onde podemos obervar isso em sua interpretação de “Coração Materno”, de Vicente Celestino, e em seu primeiro disco sólo, Caetano Veloso, do mesmo ano, na música “Onde andarás”, com arranjos dele e letra de Ferreira Gullar, definida por Calado como “quase cafona,(...) canção tipo dor-de-cotovelo em que Caetano chegava a imitar a pronúncia e a voz empostada de Nélson Golçalves (...)” (Calado, 1997: 160).

Em um segundo momento de sua carreira, já depois do movimento Tropicalista, podemos notar – após um período mais introspectivo durante o exílio – uma guinada para o pastiche. Como diz Naves, “os componentes críticos e sarcásticos da paródia não teriam muito a ver, na verdade, com o dengo baiano cada vez mais incorporado à imagem de Caetano a partir de 72” (Naves, 1988: 86). Em vários momentos de sua dissertação, ela aponta para momentos em que Caetano se entregou para o pastiche, seja em seu aspecto mais camp:

“Muito Romântico” (LP Muito, 1978), é um exemplo de puro pastiche,
ao mesmo tempo que mostra um humor especial, fazendo uma imitação
carinhosa de Roberto Carlos, a quem Caetano dedica à composição, bem dentro
do espírito camp. Os recursos ingênuos e melódicos das canções de Roberto
Carlos são inseridos na letra, convivendo com o estilo mais cerebral
de Caetano. (Naves, 1988: 87)

 Ou em seu lado menos camp, menos ingênuo e despretensioso:

Caso semelhante se dá em “Sampa”, do mesmo LP (...). Caetano apropria-se
de “Ronda”, canção do compositor paulista Paulo Vanzolini, e toma-a
como base, trabalhando-a a partir da estrutura musical. (...) Ao contrário de
“Muito Romântico”, porém, “Sampa” não é camp, faltando-lhe, neste sentido,
a ingenuidade como ingrediente fundamental. Citar Roberto Carlos como
Caetano o fez é uma atitude próxima do camp, demonstrando apreço por um gênero
musical considerado piegas e esteticamente inferior. Citar Vanzolini
é diferente. “Ronda”, composição que originou “Sampa”, já representa uma experiência
mais sofisticada em termos de composição popular, embora o músico
paulista ambiente a sua canção no universo “brega” da boemia
e das mesas de bilhar. (Naves, 1988: 88-89)

 Assim, se Caetano Veloso foi um dos primeiros a utilizar o pastiche sistematicamente em sua obra, já no final dos anos 60, outros compositores já incorporavam o recurso a seu repertório. Ao narra o processo de criação de “Domingo no Parque”, Calado conta que “quando ele (Gilberto Gil) pegou o violão e uma folha de papel, decidido a fazer uma canção no estilo de (Dorival) Caymmi (...)”(Calado, 1997: 122). Tom Zé, em “Augusta, Angélica e Consolação” (do disco Todos os olhos, de 1973) faz uma letra que emula uma canção de desilusão amorosa, onde o narrador fala das mulheres que teriam o decepcionado:

Augusta, graças a deus,
Graças a deus,
Entre você e a Angélica
Eu encontrei a Consolação
Que veio olhar por mim
E me deu a mão.
Augusta, que saudade,
Você era vaidosa,
Que saudade,
E gastava o meu dinheiro,
Que saudade,
Com roupas importadas
E outras bobagens.
Angélica, que maldade,
Você sempre me deu bolo,
Que maldade,
E até andava com a roupa,
Que maldade,
Cheirando a consultório médico,
Angélica.
(...)

 Porém, ao contrário do que pode parecer à uma primeira leitura, a letra se refere não à mulheres, mas ruas da cidade de São Paulo. Não por acaso, a música está no mesmo disco da já citada paródia “Complexo de Édipo”, o que deixa ainda mais claro o período de transição.


2.3. A Nova MPB

 Como pudemos observar, a Música Popular Brasileira já flerta com o pós-moderno desde o final dos anos 60, e não seria exagero dizer que, à moda brasileira, já se faz “MPB Pós-Moderna” pelo menos desde a década de 70 do século passado. Esteticamente, é difícil enxergar alguma modificação estilística que justifique este rótulo na música produzida atualmente em detrimento da anterior. Porém, quando se observa atentamente, alguns fatos podem ser úteis para a distinção.

 Tomaremos para este trabalho a definição de MPB vigente na mídia: seriam artistas novos, surgidos principalmente a partir do final dos anos 90, que começam a ocupar a cena no final dessa década e no princípio do século XXI. Esteticamente, a grande modificação se daria na incorporação da música eletrônica e dos rítmos pop contemporâneos aos gêneros tradicionais – o que não se configura propriamente em novidade quando pensamos na trajetória da Tropicália, por exemplo.

Esse gênero seria dominado pelas mulheres: a revista Veja de 11 de abril de 2007 fez um mapeamento e descobriu que em 2006, mais de uma centena de discos de intérpretes femininas foram lançados no Brasil, enquanto somente 34 álbuns com cantores haviam sido colocados no mercado neste mesmo período. A revista aponta três razões para este predomínio:

Primeiro, o apuro técnico das cantoras vem aumentando. Elas querem que sua
voz seja um instrumento versátil, e não apenas afinado. Algumas, inspirando-se
num exemplo consagrado como o de Marisa Monte, até mesmo vão buscar apoio
no estudo lírico. Em segundo lugar, as mulheres dedicam-se com maior afinco
à tarefa de interpretar. Houve uma era em que cantores importantes
faziam apenas isso: dar vida às canções de outros. Foi o tempo de Orlando Silva
e Mário Reis. A partir dos anos 70, a MPB viu despontar o "cantautor"
(como o batizaram alguns críticos): um compositor que também usa
o microfone. A ascensão desse personagem reduziu o espaço dos
intérpretes puros – mas apenas os do sexo masculino. A terceira razão
da proeminência feminina é o intenso diálogo que, em geral,
elas mantêm com suas precursoras. Não é difícil traçar uma linha conectando
a paulistana Ana Cañas às cantoras do rádio dos anos 40.
Realizar essa mesma operação unindo um cantor novo e, digamos,
o venerável Francisco Alves é quase impossível. Existe uma tradição
viva de canto na música popular brasileira? Sim, existe.
E ela pertence às mulheres. (Revista VEJA, 11/04/2007).

Esse diálogo intenso com as precursoras acaba por resultar o pastiche. O pastiche atual pouco tem de camp, e dificilmente poderia ser confundido com a paródia simpática como o de Caetano Veloso nos final dos anos 60 e início dos 70. Tem mais a ver com a definição dada por Jameson, aquele “mimetismo neutro” das tradições, do que com aquela “manifestação lúdica” usada por Naves para explicar Caetano Veloso. Porém, um outro fato chama a atenção: enquanto os compositores do início do que chamamos de MPB buscavam dialogar com uma tradição de base mais popular, algumas vezes até folclórica, essa “Nova MPB” usa como referencial tradicional a obra daqueles mesmos compositores que estavam no início da MPB. É o que Tom Zé chamou, no encarte de seu disco Com defeito de fabricação, de “estética do plágio”: “A canção popular tem um problema de linguagem, que é estar sempre repetindo os avós. E essa repetição é permitida pela própria crítica, sem uma cobrança maior do que já houve.” (Tom Zé, 1998). Esse pensamento corrobora ainda com a afirmação de Jameson: “Estes estilos, que no passado foram agressivos e subversivos (...), que escandalizaram e chocaram nossos avós, são agora (...) precisamente o sistema e o inimigo” (Jameson, 1985: 17).

A reportagem da revista Veja acaba por indicar quem seriam as principais matrizes para essas cantoras da chamada “Nova MPB”:

As jovens cantoras de hoje podem ser agrupadas em vertentes. Dito de outra maneira:
há certos nomes mencionados com freqüência como parâmetro ou influência.
A lista contém surpresas. Dela não constam, por exemplo, Gal Costa e Maria Bethânia,
duas das artistas mais representativas da música brasileira nas décadas de 70 e 80.
Bethânia é lembrada com veneração por umas poucas, como Vanessa Da Mata, mas Gal
parece despertar um certo enfado. É possível especular, também, sobre a formação,
em breve, de um grupo de cantoras que terão Sandra de Sá como referência do passado.
São cantoras como Negra Li, 38 ligadas ao movimento hip hop, hoje forte em favelas e periferias.
Aos olhos delas, Sandra de Sá representa uma ponte entre o soul e o hip hop, de matriz
americana, e os ritmos brasileiros. No momento, contudo, as escolas dominantes são quatro.
Aquela que tem mais discípulas é a de Elis Regina, caracterizada pelo estilo teatral, de emoção
derramada em cada nota. "Quando decidi virar cantora, a primeira coisa que fiz foi mergulhar
na discografia de Elis", diz a paulista Daniela Procopio, que abandonou uma carreira de
designer industrial para dedicar-se à música e concluiu recentemente o seu primeiro CD,
ainda inédito. Ao lado de Bruna Caram ou Giana Viscardi, ela mostra aquela capacidade
que Elis tinha de ir do sussurro ao canto aberto numa mesma canção – de maneira
coerente e memorável. A segunda escola, curiosamente, tem um homem como referência.
É a escola de João Gilberto (muito embora Nara Leão também seja citada por novatas
de inclinação semelhante). "Parece estranho à primeira vista. Mas não deixa de ser
natural que muitas mulheres se sintam próximas de um cantor de voz tão suave quanto
a dele", diz a professora de canto Regina Machado. Essa vertente atrai dois tipos de
artista: aquelas interessadas na precisão técnica do canto e aquelas de voz miúda, que se inspiram na interpretação contida do papa da bossa nova. Luciana Alves, cantora do grupo do
violonista Chico Pinheiro, pertence ao primeiro time. Os vocais límpidos e a graça com
que se apresenta lhe rendem elogios constantes. "Fiquei impressionado com sua técnica",
 diz o pianista americano Brad Mehldau. Seu primeiro disco-solo sairá neste ano,
com canções inéditas de Joyce e Chico Pinheiro. Érika Machado é uma expoente
da segunda linha. De voz miúda, quase juvenil, ela convocou o produtor e
guitarrista John Ulhoa (do Pato Fu) para criar No Cimento, um destaque do mercado
no ano passado. São doze canções de apelo pop que poderiam muito bem figurar nos
discos de um artista como o americano Beck. A redescoberta recente do samba tradicional
em redutos como a Lapa, no Rio de Janeiro, e também em casas de shows
de São Paulo e Belo Horizonte fez com que Clara Nunes, depois de duas décadas
de semi-ostracismo, se tornasse uma figura importante para diversas cantoras jovens.
Clara, que morreu em 1983, exercitou sua voz possante entoando boleros no
início da carreira, mas descobriu seu ambiente natural na peculiar mistura de alegria
e tristeza que caracteriza o samba de raiz. A paulistana Mariana Aydar e a carioca
Mariana Baltar são duas artistas que fazem questão de ressaltar a admiração por ela.
O primeiro disco de Mariana Aydar, Kavita, foi um dos melhores lançamentos
de MPB de 2006. Mariana Baltar era dançarina antes de se lançar como intérprete,
há cerca de cinco anos. Ela foi uma das articuladoras da revitalização pela qual
passou o bairro da Lapa nos últimos tempos. Seu CD de estréia, Uma Dama Também
Quer Se Divertir, é uma bemcuidada seleção de sambas raros, como Deixa Comigo,
de Assis Valente, e Ralador, parceira de Roque Ferreira e Paulo César Pinheiro.
A última grande vertente é a de Marisa Monte. Embora não tenha mais que vinte anos
de carreira, ela é hoje uma figura dominante na música brasileira. "Não tenho dúvida
de que Marisa inaugurou uma escola. A obsessão com a técnica e a maneira de
compor o repertório são suas duas lições básicas", diz o produtor Marco Mazzola.
As intérpretes atuais que melhor assimilaram essa proposta são Roberta Sá, Anna Luisa
e Luísa Maita. As três estudaram canto antes de partir para a música popular. "O treinamento lírico
me ajudou muito. Mas é preciso ter personalidade própria para cantar MPB", diz Roberta,
uma cantora que está próxima do estrelato. Braseiro (2005), seu disco de estréia,
mistura sambas tradicionais com criações de compositores contemporâneos
como Pedro Luís e Marcelo Camelo. Uma das faixas, A Vizinha do Lado, de
Dorival Caymmi, foi escolhida para fazer parte da trilha sonora da novela
Celebridade, da Rede Globo.
Seu novo disco é aguardado para a segunda metade de 2007.
(Revista VEJA, 11/04/2007)

Apesar de poucos, podemos identificar nos intérpretes e compositores masculinos também linhas claras entre eles e nomes do passado, como Marcelo Camelo, que tem em 39 Chico Buarque sua declarada inspiração, e Jorge Vercilo e Jair de Oliveira, freqüentemente comparados com Djavan, tanto por suas vozes quanto pelos maneirismos como compositores.

Uma última faceta que se relaciona com a idéia de “mistura entre o ‘novo’ e o ‘velho’” que é apontada como uma das características da Nova MPB é a utilização de elementos da música eletrônica como forma de atualizar o estilo. Assim, faz-se tanto versões de músicas consagradas da MPB adulteradas com elementos eletrônicos quanto novas músicas que utilizem estes elementos mas de alguma forma emulem aquelas canções antigas. Os dois expoentes dessa vertente são Max de Castro e Fernanda Porto. Mesmo isso não chega a ser completamente inédito. Nos anos 80, com a aproximação da MPB com o chamado BRock, tentativas de modernização semelhantes já podem ser encontradas. A inserção de elementos da chamada New Wave, com o excesso de teclados sintetizadores e baterias eletrônicas foi sentida em discos de diversos artistas da MPB – tanto principiantes como já consagrados. A tentativa de se melhorar a qualidade dos registros gravando e mixando os álbuns nos Estados Unidos acabou gerando uma pasteurização do som. Os álbuns Luz, de Djavan (gravado em Los Angeles com produção de Quincy Jones), lançado em 1982, e Velô, de Caetano Veloso, lançado em 1984, são exemplos dessa estética brasileira homogeneizada. O próprio Caetano, em 1987, já comentava o disco:

Não gosto tanto de Velô, gosto mais de Caetano Aliás, quando eu acabei de fazer
o Velô, já sabia que gostava mais de Uns, que é o disco imediatamente anterior, o que
não é uma coisa muito frequente de acontecer com um artista. Tem uma porção de coisas
no Velô que, para mim, pesam. Infelizmente, não sou suficientemente violento
para romper coisas que eu vejo. Todo disco meu é sujo. Não sou violento.
A minha visão é mais radical, mas a minha ação é mais comprometida.

 Nesse aspecto, os artistas da Nova MPB saem em vantagem em relação àqueles que fizeram essa tentativa nos anos 80. As facilidades de gravação, produção e divulgação decorrentes das novas tecnologias permitem que o produto final sofra menos interferências mercadológicas, garantindo uma música mais fiel à concepção inicial do artista e mais autêntica, menos modificada em favor de uma estética vigente no mercado suscetível a modismos.

 Em 29 de outubro 1978, na coluna do especial “Anos 70” do caderno Folhetim, da Folha de São Paulo, o crítico Dirceu Soares não poupava fogo contra a produção musical da década que estava acabando. Para ele, a segunda leva de “música universitária” (por ele chamada de “rock nordestino”) 

nada mais era que uma imitação barata da Tropicália, sem ao menos saber o que
foi aquele movimento de Gil, Caetano, Torquato Neto e Rogério Duprat.
Jovens compositores, interessados em caminhos mais fáceis, salpicavam
Beatles nas cantorias dos violeiros e se achavam gênios. (Soares, 1979).

Hoje enxergamos os anos 70 como uma das décadas mais profícuas da Música Popular Brasileira, mas a crítica de Soares deixa claro que isso não era unânime já naquela época. Assim, resta saber qual será o julgamento da história para a chamada “Nova MPB”.



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1 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Leio outra hora,com mais tempo.

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