Por Leonardo Davino*
terça-feira, 14 de julho de 2015
LENDO A CANÇÃO
A certa altura da novela De donde son los cantantes, de Severo Sarduy, uma personagem canta: "Mamá yo quiero saber de dónde son los cantantes, que los siento muy galantes y los quiero conocer". Incorrendo deliberadamente no anacronismo sadio, encontro resposta para a inquietação da personagem de Sarduy em No caminho de Swann, de Marcel Proust, quando o narrador anota: "Erguemos os olhos e só vemos as caixas dos violinos, preciosas como estojos chineses, mas, por um momento, ainda nos iludimos com o enganoso apelo da sereia".
Ou seja, é da caixa acústica - do mar sonoro que ela representa e que se imprime no ouvinte - que a neosereia (o cancionista moderno) entoa seu canto (quase) real. E afeta-nos de forma tão profunda que nos supomos íntimos daquele canto. Tornamo-nos, pela irresistibilidade daquilo que é cantado - por ele nos revelar a nós mesmos -, amigos da voz que sai dos aparelhos eletrônicos: casa das sereias.
Dito ainda de outro modo, os cantantes modernos nascem e se criam nos suportes técnicos. E se adaptam aos recursos tecnológicos de mobilidade e de reprodução. E através deles produzem presença: interferem no real.
No disco Na confraria das sedutoras (2008), músicos inventivos e antenados, Dengue, Pupillo e Rica Amabis - formadores do grupo 3 na massa - mergulham naquele lugar onde a voz busca a corporeidade necessária ao toque físico no ouvinte: na intensidade sensual.
Com canções que primam pelas descrições exacerbadas dos sentidos, o disco - via compositores masculinos - dá voz às delícias de ser mulher: objeto desejante e desejado. Os sujeitos investem no corpo, no toque da língua, que, salivando os dentes, é mais do que o órgão muscular por onde - através do qual - articulamos os sons da voz. Com ela, as sedutoras roçam (afetam) o outro; dilatam poros.
E é a língua sedutora em comum, também, o que promove a possibilidade da tal confraria do título do disco: com todas as sedutores juntas, em conluio, sempre prontas para afirmar seus desejos e tatuá-los no outro-ouvinte. É o que faz o sujeito de "O objeto", de Felipe S., Vicente, Marcelo Campelo, Rica Amabis, Dengue e Pupillo, por exemplo.
Defendida por Nina Becker, a canção transpira desejo de toque carnal. Ouvinte - "Timidamente eu ouvia sua música / E sentia os estalos do seu caminhar" -, o sujeito canta uma resposta-convite irresistível: "Eu queria ter minha foto estampada em sua blusa / Minha carne em sua unha / Dentro e fora de você".
Como boa devoradora, a sedutora (neosereia) da canção quer arrastar o ouvinte para seu universo luxurioso. E ficcional, pois ao final descobrimos que tudo pode não passar de um sonho - espelho e vontades e verdades: "Deita-te comigo / Sem tu mesmo estar aqui / Dance nos meus sonhos e me implore a pedir / Para que eu abra os olhos", diz o sujeito lúdico, brincando com o juízo do ouvinte.
***
O objeto
(Felipe S. / Vicente / Marcelo Campelo
/ Rica Amabis / Dengue / Pupillo)
Pude então
Estar aqui
Sem recordações
Do que vivi
Só no pensamento
Timidamente eu ouvia sua música
E sentia os estalos do seu caminhar
Eu queria ter minha foto estampada em sua blusa
Minha carne em sua unha
Dentro e fora de você
Molhando a minha língua
Abrindo a cortina
Iniciando a rotina
Ativando os calafrios
Sinto a pele esquentar
O espelho e as verdades
O objeto das vontades
O espelho e as vontades
O objeto da verdade
Deita-te comigo
Sem tu mesmo estar aqui
Dance nos meus sonhos e me implore a pedir
Para que eu abra os olhos
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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