Por Leonardo Davino*
terça-feira, 7 de julho de 2015
LENDO A CANÇÃO
O cancionista moderno é um ouvinte privilegiado de canções, pois tem à sua disposição toda a sorte de dispositivos a serviço da preservação da performance vocal. Cantar é cutucar, pelo diálogo, as canções antepassadas. Deste modo, regravar é reposicionar, na linha evolutiva, a canção escolhida.
Sem prejuízo para os critérios intrínsecos da obra, qualquer análise comparativa de canção, via performance vocal, precisa atingir a emergência dos contextos: são eles que, entre outros fatores, deixam marcas na genealogia da canção: na sua existência enunciativa, empírica.
Quais são as intenções de cada gestualidade vocal e/ou melódica ao distinguir, e complementar, as várias interpretações de uma "mesma" canção? Eis a pergunta que precisa orientar a análise comparada. As possíveis respostas, passeando entre elementos internos e externos à obra, visarão a singularidade das performances.
A partir disso, posso dizer que o tratamento vocal e musical dado por Xangai e pelo Quinteto da Paraíba à canção "Brincadeira na fogueira" (no disco Um abraço pra ti pequenina, 1997) visa eliminar a paisagem festiva externa ao sujeito que canta e figurativizar a sua condição de desamparado.
Ou seja, esta versão da canção de Antonio Barros investe na passionalização, no estado (de espírito) autoivestigativo e autorevelador do sujeito que diz: "Meu São João eu não / Eu não tenho alegria / Só porque não vem / Só porque não vem / Quem tanto eu queria".
A versão de Xangai e do Quinteto da Paraíba, diferente da versão forrozeira do Trio Nordestino, por exemplo, que tanto anima as noites frias de junho no Nordeste, quer plasmar aquilo que o sujeito canta: sua desilusão diante da ausência de alguém.
Para ele "tanta fogueira, tanto balão, tanta brincadeira e todo mundo no terreiro" só intensifica sua solidão interior. E é isso que a releitura de Xangai mostra. Afinal, quando estamos tristes qualquer faísca do brilho do dia agrava nossa dor.
Mas nem por isso deixamos de cantar, pelo contrário. E, avançando um pouco nosso olhar, encontramos aqui a insinuação de um ponto de contato entre dois signos da canção brasileira: a melancolia que impulsiona, desde sempre, o samba e o baião.
Ou seja, as versões vocal e melodicamente alegres de "Brincadeira na fogueira" não são equivocadas - elas investem na fogueira, no balão e na brincadeira. Porém, elas sacrificam o sujeito que fala dentro da canção, em favor da festa coletiva: gesto recorrente na história da nossa canção. Afinal, o assum preto, com os olhos furados, sofrendo de dor, canta melhor.
Em "Brincadeira na fogueira", se na primeira parte da letra (verbos no presente) o sujeito canta sua situação atual, na segunda parte (verbos no passado) ele canta aquilo que fez na esperança de ver quem ele tanto queria surgir na festa: "Danei a faca / No tronco da bananeira / Não gostei da brincadeira / Santo Antônio enganou / Sai correndo / Lá pra beira da fogueira / Vê meu rosto na bacia / A água se derramou".
Esta versão, portanto, com as alturas trágicas das cordas do Quinteto, dá ênfase ao que é dito pelo sujeito: o fracasso íntimo. Ele não está ali para confraternizar, mas para, sofrendo e cantando, oferecer um bocado de si à festa dos brincantes. A tristeza individual, paradoxalmente, contrasta e alimenta a alegria coletiva promovedora das festas juninas.
Por fim, ao contrário do sujeito de "Eu fiz uma fogueirinha", de Assisão, que diz: "Eu fiz uma fogueirinha / Esperando meu amor / Tomou conta do terreiro / O forró se esquentou // É madrugada / Já chegou quem eu queria / Foi a dádiva da sorte / Da beleza que existia"; o sujeito reescrito por Xangai na companhia luxuosa do Quinteto da Paraíba desdobra pétala por pétala seus retalhos de cetim, de papel de seda azul e vermelho e amarelo e verde.
***
Brincadeira na fogueira
(Antônio Barros)
Tem tanta fogueira
Tem tanto balão
Tem tanta brincadeira
todo mundo no terreiro
faz adivinhação
Meu São João eu não
Eu não tenho alegria
Só porque não vem
Só porque não vem
Quem tanto eu queria
Danei a faca
No tronco da bananeira
Não gostei da brincadeira
Santo Antonio enganou
Sai correndo
Lá pra beira da fogueira
Vê meu rosto na bacia
A água se derramou
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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