Poucos passaram incautos diante de uma das figuras mais folclóricas e controversas da cultura brasileira e estrela do documentário de Renato Terra e Ricardo Calil no ano em que se estivesse vivo completaria 80 anos
Por Clarice Cardoso
Para divulgar 'Pode Vir Quente', Imperial inventou briga com Erasmo apartada por Roberto
No final dos anos 1960, havia quem fosse capaz de jurar: o sucesso brasileiro tinha chegado à Inglaterra, e os Beatles gravavam uma versão de Asa Branca. A canção seria a mais tocada nas rádios de lá, e o próprio Gonzagão teria comemorado a novidade, sugerindo que o quarteto usasse uma gaita escocesa para conseguir melhores efeitos.
Até hoje, há quem acredite que a gravação de fato existiu. É tudo, claro, mentira. Não passava de uma invenção do produtor, cantor, ator, cineasta e polemista que é o centro do documentário Eu Sou Carlos Imperial, filme de Renato Terra e Ricardo Calil em exibição no festival É Tudo Verdade.
Personagem de si mesmo, Imperial era dono de uma qualidade ímpar de ver à frente do seu tempo novas tendências e produtos culturais, aliada à desfaçatez própria dos canalhas inveterados. Por conta disso, era uma fábrica de ídolos (Roberto e Erasmo, Simonal, Tim Maia, Elis Regina), hits (Pode Vir Quente que Eu Estou Fervendo, O Bom, Mamãe Passou Açúcar em Mim, Nem Vem que Não Tem) e incontáveis histórias de procedência duvidosa.
O caso de Roberto Carlos é emblemático. Ele mesmo conta que, no começo da carreira, teria desistido após tantas negativas não fosse a persistência de Imperial. “Elvis Presley brasileiro” era como o chamava. Equiparável a seu gênio, apenas sua predisposição a comportamentos muitas vezes questionáveis. Tomava para si direitos autorais dos outros, aproveitava-se de mocinhas inocentes e foi o responsável pela mais infame história envolvendo Mario Gomes e um legume.
Não parecia haver limites para um homem que não titubeava diante de quase nada. Custasse o que custasse, Imperial estava determinado a se impor e ser aceito. Dizia alimentar-se das vaias. De diretor de pornochanchadas, virou "católico apostólico romano" quando entrou para a política, ocasião que o fez também equiparar Tancredo Neves a Jesus Cristo.
Em dada ocasião, sentou-se na privada, a mão no queixo em pose reflexiva e tirou uma foto que seria o seu cartão de Natal. Na legenda, desejava que “Papai Noel não faça no seu seu sapato o que estou fazendo”. Entre os destinatários, autoridades do Regime Militar. Em plena ditadura, o resultado não seria outro que não sua detenção sob acusação de atentado ao pudor.
Cartão de Natal enviado por Carlos Imperial a autoridades do Regime Militar - e que causaria sua detenção
Os diretores de Uma Noite em 67 são especialistas num estilo de narração da história da música brasileira que se mostra tão forte quanto fluida. A voz dos protagonistas de nossa cultura é o que serve para expor histórias sem as quais não teríamos uma cultura como hoje a conhecemos.
Dos relatos dos que o conheceram, vai se construindo uma imagem benevolente de um homem que certamente despertou mais desafetos que amigos por onde passou. Quaisquer que fossem os erros ou males que pudesse ter cometido em vida, estes são tratados quase como traquinagens de um menino travesso em uma produção que se priva de cair em qualquer moralismo. Pornógrafo, libertino e misógino, Carlos Imperial é envolto por uma atmosfera folclórica que dificulta sua apreensão por rótulos simplificadores que hoje circulam mais livremente. Difícil imaginar se sobreviveria nos tempos de hoje - ou se prosperaria ainda mais.
As imagens dos vários filmes feitos por Imperial (que incluem títulos como A Viúva Virgem e Loucuras, o Bumbum de Ouro) ajudam a entender a visão do personagem de si e do mundo ao mesmo tempo em que permitem vislumbrar as muitas contradições que o moviam. Assim, a graça maior de Eu Sou Carlos Imperial talvez seja dar conta do universo de uma figura quase arquetípica, cercando-o de uma atmosfera que se expande até o limite de fazer com que a própria narrativa do filme seja apropriada pela anarquia de Imperial. Poucas figuras seriam mais propícias para tamanha experiência. Onde começa a verdade documental e termina a ficção que se reinventa?
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