segunda-feira, 3 de abril de 2017

PAUTA MUSICAL: CARLOS REICHEBACH E O LP DE RUSS GARCIA

Por Laura Macedo


Na seção Arquivo Aberto de algum tempo atrás, a Ilustríssima apresentou a memória do cineasta Carlos Reichenbach, que contou uma história dos anos de 1960 ligada ao LP "Fantástica", de Russ Garcia.


ARQUIVO ABERTO

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Garcia quase tomou minha casa

1960 e poucos, São Paulo

CARLOS REICHENBACH

Não me cobrem a precisão de datas, porque as armadilhas da memória e a distância do tempo já contribuíram para as fantasias dos sentimentos. O certo é que aconteceu em meados dos anos 60. Não sei se já havia iniciado o curso de cinema, mas já nutria interesse obsessivo por um estilo bem específico de música, o "space age pop".

Com três amigos, com quem gostava de flanar pelo centro de São Paulo, dividia e trocava livros e discos caídos em desgraça ou já no index do regime militar. Não estava preparado para ser abordado pelos "homens de preto" desacompanhado de meus amigos.

Havia emprestado um disco essencial de minha coleção para um ex-colega de cursinho, que eu sabia àquela altura já militando em grupos de extrema esquerda. O respeito e a admiração que eu tinha por sua opção não o autorizavam a desapropriar o bem mais precioso de meu pequeno acervo: o LP "Fantástica", do genial maestro e arranjador Russ Garcia.

O ex-colega, que vou chamar aqui de Toni, morava num quarto e sala na região do Glicério. No dia anterior ao nosso encontro, deixei um bilhete na portaria de seu prédio avisando que iria buscar o disco no final da tarde de domingo. Sei lá a razão, acabei chegando mais cedo e estranhei encontrar a porta de entrada do prédio aberta e sem o porteiro mal-humorado. Entrei no elevador ressabiado; alguma coisa não se encaixava.

Ao abrir a porta do elevador no 9º andar, dei de cara com uma mulher que parecia assustada. Ela revirou os olhos, talvez tentando dar algum sinal, mas não entendi e me restringi a deixá-la passar. Caminhei até o fundo do corredor apertando as hastes dos óculos, preocupado. A porta do apartamento de Toni estava só encostada.
Passou-me pela cabeça fugazmente uma maliciosa desconfiança envolvendo o militante e a mulher assustada. Não precisei tocar na maçaneta, a porta foi aberta por um homem forte e alto, de terno e gravata escura. E, lógico, o indefectível par de óculos escuros.

- Estávamos te esperando.
Naquela fração de segundos, vieram à tona todas as mínimas evidências da "séria ameaça" que eu representava ao governo. Entre elas, a minha certidão de nascimento, que minha mãe vivia insistindo em nunca carregar comigo. É que as duas testemunhas de meu parto prematuro em Porto Alegre - meus dois padrinhos de batismo- eram personas nada gratas ao regime: Lélio Telmo de Carvalho e Leonel de Moura Brizola.

Entrei no apartamento e vi meu colega sentado no chão, ao lado do aparelho de som, em posição de ioga. Os livros e discos todos espalhados pelo recinto e um outro homem de terno preto revirando o interior do banheiro.
O senhor A, que me atendeu, fechou a porta com exagerado zelo. De repente, se voltou para mim.

- Você é o padeiro? 
Devo ter feito cara de tacho. 
- Posso ver sua sacola?

Só então me lembrei que estava carregando uma sacola. Tomei um susto: será que eu estava levando algum livro proibido? Lívido, passei para o senhor A um romance de ficção científica escrito por Curt Siodmak, "Três Homens e um Planeta", se não me engano. Ele só olhou a capa e mandou guardar. Toni se apressou em pegar meu LP e me entregar na mão.

- Ele só veio buscar este disco. 
- Posso ver? 
O senhor A examinou detalhadamente a capa do disco. 
- Garcia é um nome cubano? 
- Esse é americano. Maestro e arranjador. 
- Você gosta de outros mundos... Cuba, por exemplo...

Toni se apressou em tentar livrar a minha cara. Disse com ênfase, e não gostei nada do tom, que eu era um bundão, que um cara que gosta de ficção científica só podia ser um alienado. 
Olhei feio para ele.

O senhor B apareceu na sala e deixou claro que estava por dentro de tudo.

- Ô, Queiroz, o "padeiro" é um tampinha. Libera o barbudo. 
O senhor A olhou bem para minha barba e, devolvendo o disco sem examinar o interior, disse:

- Você tem cara de quem conhece política. Então, sabe que se esse Garcia vier aqui, ele vai tomar a tua casa e vai botar quatro ou cinco famílias lá dentro. Você não vai poder nem cagar sossegado. Depois da contundente lição das vantagens do capitalismo, o senhor A me dispensou.

Antes de sair, perguntei o que iria acontecer com Toni. 
- Nada. A gente está atrás do padeiro.

Soube depois que liberaram Toni no mesmo dia e que prenderam o tal padeiro num apartamento do térreo. O porteiro mal-humorado, que fazia bico como dedo-duro, tentou faturar um extra "matando dois coelhos".

Em casa, ao colocar o disco na vitrola, congelei dos pés à cabeça. Como era hábito na época, Toni havia trocado todas as capas dos discos "proibidos". Em vez dos timbres estratosféricos de Garcia, ecoou no meu quarto a poesia visceral e revolucionária de Victor Jará, futuro mártir chileno. E, como se não bastasse, descubro, horas depois, escondidas na aba da contracapa do livro de Siodmak, duas folhas de uma fotocópia do "Catecismo de um Revolucionário", o anarco-explosivo texto de Nikolai Netchaiev, um dos mais subversivo manifestos já concebidos.


Fonte: Jornal Folha de São Paulo - Ilustríssima (06/02/2011).

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