segunda-feira, 17 de abril de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*




12 - Nossa infância

Como já disse, as brigas entre meu pai e minha mãe eram enormes, violentas até. E essa violência se refletia também em nós, filhos e parentes, que assistíamos a tudo. Eu, por exemplo. Filho mais velho, era sobre mim que recaíam certos ataques de fúria de meu pai. Ao fazer coisas que toda criança faz, meu pai tirava o cinto e me cobria de pancada. Eram surras desmedidas, momentos coléricos para situações de pouca gravidade. Muitas vezes minha mãe tentava interceder. De nada adiantava, não conseguia conter meu pai e, às vezes, acabava apanhando também. Na Urca, muitas vezes eu ia para a praia, me distrair (sempre adorei o mar), e acabava me esquecendo da hora da escola, como qualquer criança. De repente, meu pai aparecia, me segurava e eu, sem saber por quê, ia tomando porrada desde a areia até a frente de nossa casa. Lá dentro, continuava a me bater; depois me enfiava dentro de um armário de roupa suja, no banheiro. Ai de quem me tirasse de lá! Minhas tias Lila, Margarida ou Edith bem que tentavam, mas era complicado. Ninguém enfrentava meu pai nesses momentos alucinados. Edith era uma pessoa apaixonada por minha mãe. Ela veio do Recife com meus pais, ainda adolescente, por volta de 1943, para morar conosco. Esteve presente em todos os momentos de nossa vida. Cuidava de mim e de Bily quando pequenos (e grandes também!), ajudava minha mãe no camarim, acompanhava meu pai nos shows. Enfim, Edith passou a ser considerada por minha mãe como sua irmã de criação. E por nós — eu e Bily —, uma verdadeira tia. Era completamente dedicada a minha mãe. Foi sua confidente e companheira nas horas difíceis. Apesar de ser um verdadeiro “cão fiel” de Dalva, conseguiu a façanha de se manter também amiga de meu pai e de sua nova família com Lurdes. Lá também era considerada da família. Inclusive, era uma das poucas pessoas que se atreviam a dizer algumas verdades a Herivelto. Com o passar do tempo, eu e Bily “herdamos” Edith. Sua fidelidade foi transferida para nós, e posso dizer que muito me honra essa herança, porque é um ser humano da melhor qualidade. Nossa casa não tinha luxo, mas minha mãe gostava muito dos seus móveis e objetos de decoração. A sala de jantar, no estilo Chippendale, muito usado na época, tinha uma cristaleira, onde eram guardados todos os copos, cristais e objetos mais finos, para receber as visitas. Num de seus dias de violência, após uma discussão ferrada, meu pai pegou um banquinho de madeira na cozinha e começou a quebrar a cristaleira e tudo o que havia dentro. Até hoje me lembro dos detalhes da cena. Primeiro, como ele foi até a cozinha pegar o banco, de um jeito bruto, truculento; ouvi seus passos pesados no chão, na ida e na volta. Depois, o modo como segurou o banquinho pelos pés. E em seguida as pancadas no vidro. As taças, os copos, as portas, tudo foi destruído em segundos. Meio de lado, eu recebia os estilhaços e o impacto brutal daquele momento. Meu pensamento de criança não entendia o porquê daquilo tudo. Minha mãe não esboçou um gesto sequer para impedi-lo. Ficou atônita e começou a chorar. A fisionomia dele, os gritos que dava, os palavrões que soltava faziam meu coração disparar. Fiquei sem ação, perplexo, até que ele parou. E me lembro que sua mão estava sangrando. Só quando tudo acabou as pessoas (acho que minhas tias) tentaram nos acudir. Minha cabeça parecia que ia estourar como os vidros. O medo me dominava. A lembrança dos gritos e do barulho de vidro quebrando era muito forte. A partir daí, não podia olhar para o canto onde estava a cristaleira. Era uma sensação terrível, como se a qualquer momento tudo aquilo pudesse acontecer outra vez. Depois desse terrível incidente, minha mãe contava que passei a ser sonâmbulo. Acordava à noite, ia até a sala, falava com as pessoas, mas não me lembrava de nada no dia seguinte. Também chorava muito à noite, sentindo dores nas pernas. Muitas vezes, carinhosamente ela abria a roupa e colocava minhas pernas sobre seu peito. Dizia que era o único jeito de conseguir me esquentar e me fazer dormir. Esse episódio me marcou muito. Afinal, eu estava ao lado da cristaleira, assustado nos meus oito, nove anos. Posso garantir que aquela cena — o barulho do vidro estourando, os estilhaços — jamais sairá de minha memória, assim como o cheiro de roupa suja, lembrança adquirida dos castigos dentro do armário do banheiro. Num desses dias, depois de sair do castigo, escutei meu pai dizendo a seus amigos na sala que me amava muito. Minha cabeça ferveu com essa declaração. Não conseguia entender como alguém que dizia me amar me tratava daquele jeito. Pensava: será isso o amor? Todas essas surras me deixaram tão traumatizado que jamais pude me imaginar batendo em meus filhos, seja no Bernardo, hoje com 23 anos e que vive comigo desde o nascimento, ou na Paula, minha filha mais velha de quase 27 anos, de quem, por razões alheias à minha vontade, sempre estive distante. Acredito na importância da disciplina, não na força bruta, e acima de tudo acredito no amor. Procuro dar a meus filhos muito carinho, muitos beijos, muitos abraços. E dizer aos dois com muita frequência: “Papai te ama!”. Minha mãe também tinha os momentos de bronca, mas não chegavam nem aos pés dos ataques de meu pai. Sempre foi mais doce. Na maioria das vezes, dispunha-se mais a curar os estragos que meu pai fazia do que propriamente a nos castigar. Ficava mais ligada nas coisas do cotidiano: nosso banho, as roupas, o horário do colégio, a comida (era uma grande cozinheira). Era uma dona de casa ativa e cuidadosa, mesmo quando nossa casa era bem humilde. E, à medida que a situação financeira melhorava, foi aprendendo a curtir uma mesa bem-posta, com boa porcelana, cristais e guardanapos de linho. Tinha paixão por toalhas bordadas da Ilha da Madeira. Em quase todos esses “maus dias” de meu pai, era eu quem pagava o pato, pois meu irmão Bily se fazia de sonso — aprontava, corria e depois ficava num canto: “Não fui eu, não. Não sei quem fez. Juro!”. E adivinhem para quem sobrava! Até hoje não entendi como o Bily conseguiu a proeza de nunca ter apanhado de meu pai. Por falar em irmão, preciso contar que meu pai, antes de Dalva, viveu com uma senhora, Mariazinha. Com ela, teve dois filhos, Hélcio e Hélio, dos quais Bily e eu gostamos muito. Conta Hélio que a avó dele, dona Carolina, era um osso duro de roer. Ela viu sua filha Maria dar dois filhos a Herivelto e nada de ele registrar as crianças. Herivelto vivia uma vida boêmia, de pouca grana, e era a sogra quem segurava as despesas. Espírita praticante, com intuições e até visões, dona Carolina sonhou que Herivelto deixaria Maria sem reconhecer os filhos. Preocupada, foi até ele, pediu, conversou, ponderou que as crianças não podiam ficar sem registro. E nada. Chegando a seus ouvidos o envolvimento de Herivelto com Dalva e cansada de pedir o que era mais do que justo para seus netos, ela se enfureceu e cobriu meu pai de porrada. Uma confusão tremenda. Foram parar na delegacia. Diante do delegado, e graças a uma “livre e espontânea pressão”, Herivelto finalmente registrou Hélcio e Hélio. Uma das testemunhas desse momento tragicômico foi Benedito Lacerda. Depois desse tumulto todo, a danada da dona Carolina disse para meu pai: “Pronto, agora o senhor pode seguir seu caminho, fez o que era importante. Meus netos já têm sobrenome. E ninguém aqui precisa de mais nada do senhor. Eduquei a Mariazinha, educo os filhos dela. Sua vida não é para ela”. Só viemos a conhecer esses irmãos anos mais tarde. Bily e eu, então com oito e dez anos, estávamos na casa de minha avó paterna, Lolota, no Engenho de Dentro. Do terraço, vimos dois rapazes subindo a ladeira. Moleques, começamos a jogar pedra neles, pedaços de telhas, o que tivéssemos na mão. De repente, Lolota nos chamou, pois queria nos apresentar a dois rapazes. Nosso susto foi enorme quando vimos quem eram: os mesmos em quem tínhamos acabado de jogar pedras! Eram Hélcio e Hélio, em visita à avó, que achou ser a hora certa para os irmãos se conhecerem. Que vergonha! Desde então, nossa amizade é grande e sólida. Nos queremos muito. Esse sentimento era estimulado por minha mãe, que sempre cobrou de meu pai uma atenção maior com esses filhos. Hélcio, o mais velho, tem uma personalidade mais fechada, é de pouca conversa. Convivemos pouco, mas sempre de forma afetuosa. Com Hélio desenvolvi uma afinidade especial, independentemente de estarmos ou não juntos. Seu temperamento calmo se equilibra com meu jeito esquentado, mais passional. Temos uma amizade franca e sincera, trocamos experiências sem nos impormos um ao outro. Ele é uma pessoa de bem com a vida, generoso e conciliador, sempre procurando o melhor lado de tudo e de todos. Recordo com muito carinho alguns gestos seus, especialmente delicados comigo. Morando em São Paulo, que adoro, por mais de vinte anos, sempre mantive um apartamento no Rio, na Barra. Quando ia de avião para o Rio e estava sem carro, quem me salvava era Hélio. Morador do Humaitá, ia trabalhar a pé, no prédio de Furnas, e deixava seu carro a minha disposição. Era um fusquinha branco, entregue a mim com o maior carinho. Quando Ana e eu passamos o ano de 1988 morando em Nova York longe de todos, sem nosso filho Bernardo e numa difícil investida profissional, Hélio, mesmo sem ser o mais abonado dos irmãos, foi o único a me fazer uma ligação internacional. Disse que tentava matar a saudade escutando meus discos e queria saber como estava minha vida. Hoje, morando em Miami, viajo para o Brasil com frequência para cumprir minha agenda de shows. Quando vou ao Rio, é em seu apartamento, em Botafogo, onde me hospedo e sou recebido com o maior carinho — e ótimos quitutes — pela minha cunhada Sara e meus sobrinhos Alexandre e Marquinhos.


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