Por Abílio Neto
Torquato Neto, Caetano Veloso e José Carlos Capinam.
O que é que existe por trás da letra de “Cajuína”, de Caetano Veloso, música que ele gravou em 1979, uma vez que todas as vezes que ele canta a música o seu semblante é de tristeza?
Cajuína é uma das melhores canções do seu disco “Cinema Transcendental”. É uma música de letra pequena que para muitos não tem sentido algum. Pois tem e muito! Tanto para o cantor-compositor quanto para a família do jornalista, escritor e poeta Torquato Pereira de Araújo Neto, nascido em Teresina/PI, a 9 de novembro de 1944.
Torquato Neto, um dos ícones da Tropicália, era filho do Dr. Heli da Rocha Nunes, que foi advogado de oficio e militante espírita em Teresina, tendo desencarnado em 2010, aos 97 anos de idade. Torquato foi um dos grandes poetas do Brasil e cometeu suicídio no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1972, ao abrir o gás do fogão e fechar todas as portas e janelas do seu apartamento. Era casado e tinha um filho.
A nota de suicídio de Torquato dizia o seguinte:
“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo que FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”. (Thiago, o filho, tinha dois anos na época).
Um de seus poemas mais famosos é ‘Go Back’, musicado anos depois por Sérgio Britto dos Titãs:
Você me chama,
Eu quero ir pro cinema,
Você reclama,
Meu coração não contenta,
Você me ama
Mas de repente a madrugada
mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou
Passou daqui pra melhor,
Foi!
Só quero saber
Do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
Não é o meu país
É uma sombra que pende
Concreta
Do meu nariz em linha reta
Não é minha cidade
É um sistema que invento
Me transforma
E que acrescento
À minha idade
Nem é o nosso amor
É a memória que suja
A história que enferruja
O que passou
Não é você
Nem sou mais eu
Adeus meu bem
Adeus! Adeus!
Você mudou, mudei também
Adeus amor! Adeus!
E vem!
A tragédia pessoal de Torquato foi que motivou Caetano a compor esse xote triste e instigante. A letra é muito sugestiva porque questiona o problema ou mesmo o drama do existir, interrogando desta forma a quem souber responder: ‘existirmos – a que será que se destina?’
É uma homenagem ao sofrido, porém conformado pai de Torquato, que carregava em si as dores e o trágico destino de seu filho.
O jornalista, poeta e escritor piauiense Paulo José Cunha, sobrinho do Dr. Heli Nunes, pai do poeta falecido (um dia após completar 28 anos), esclarece melhor:
‘Caetano havia chegado a Teresina para um show, estava muito triste. Retornava pela primeira vez à cidade onde havia nascido um de seus principais parceiros na Tropicália e seu grande amigo, o poeta Torquato Neto, meu primo, que havia se suicidado em 1972. Caetano procurou Tio Heli, pai de Torquato. Já se conheciam do tempo em que Tio Heli ia a Salvador ver Torquato, que estudava na mesma escola de Caetano. Levou Caetano pra casa, serviu-lhe uma cajuína, e procurou consolá-lo, pois Caetano chorava muito, convulsivamente. Em determinado instante, Tio Heli saiu da sala e foi ao jardim, onde colheu uma rosa menina, que deu a Caetano. Ali mesmo os versos de Cajuína começaram a surgir, entre antigas fotos do menino Torquato, penduradas pelas paredes’.
Assim sendo, passados alguns anos apareceram gravados em disco do artista esses versos monumentais de Caetano na música ‘Cajuína’ cuja melodia é também de sua autoria:
“Existirmos – a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina.”
Para finalizar esta crônica, uma frase genial de Abdalan da Gama sobre a música Cajuína:
“É curta, como curta deve ser a dose da cajuína: concentrada, muito em pouco, cristalina, com o travor da morte na garganta, equilibrando a doçura da vida, efêmera e frágil”.
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