segunda-feira, 3 de abril de 2017

MINHAS DUAS ESTRELAS (PERY RIBEIRO E ANA DUARTE)*



10 - Nelson Gonçalves e seus dramas

Mais uma vez volta à memória a cena da infância: havia alguém dormindo no chão da sala. Mas quem seria aquele novo personagem Sobre quem eu e Bily precisávamos pular a caminho do colégio? Sabíamos que tinha um vozeirão, mas ainda não havia estourado como grande cantor. Acabaria transformando em grandes criações inúmeras canções de Herivelto, como “Camisola do dia” e “Pensando em ti”. Porém, naquele momento, não passava de um vulto estendido no chão da nossa sala. Como havia sido lutador de boxe, mantinha certa dureza no jeito de cantar. Um estilo ainda sem polimento, sem as nuances que o tempo, a experiência e o exercício da sensibilidade trariam às suas interpretações. Eu o via sendo orientado por meu pai, nas mínimas notas a emitir, até altas horas da madrugada. O tempo e Herivelto, com sua mania de “Pigmalião”, em horas e horas com o violão, contribuíram para que ele arredondasse o fraseado e se tornasse o grande Nelson, o Nelson Gonçalves. Quando gravou “Nega manhosa”, samba manemolente, a ginga e o molejo todo foram passados por Herivelto, pacientemente. As românticas, como “Pensando em ti” e “Atiraste uma pedra”, Nelson interpretava exatamente como meu pai orientava. Eram sessões de interpretação cansativas. Mas o resultado, com o tempo, se mostrou maravilhoso. Nelson se tornou intérprete de enorme sucesso neste país. Ao começar a ganhar fama, Nelson conheceu outro grande compositor: Adelino Moreira. Adelino o acompanhou por muitos anos e lhe deu muitos sucessos: “A volta do boêmio”, “Deusa do asfalto”, “Escultura”, “Fica comigo esta noite” e muitos outros. Vieram os Discos de Ouro, a glória, o dinheiro e… o vício, uma história que machucou muita gente. Herivelto ficou bem enciumado com a ligação de Nelson com Adelino. Não sem motivo: Nelson passou a evitá-lo, não procurava mais suas músicas, não frequentava mais sua casa. Nelson Gonçalves tinha relacionamentos tempestuosos com as mulheres. Era passional, até violento. Meus pais seguraram muitas barras dele com as namoradas. Um desses casos rumorosos aconteceu com a cantora Betty White. Nelson era apaixonado por ela. Betty White, morena muito bonita, crooner no Cassino da Urca, cantava em inglês. Nelson tinha um estilo muito livre de vida. Apesar da paixão e do ciúme tremendo de Betty, não abria mão da boêmia, dos amigos. A Lapa falava mais alto. Certa noite, na casa em que moravam na Urca, na rua Cândido Gaffrée, Nelson, todo arrumado para sair, enfrentou uma das crises de ciúme e apego de Betty : ela queria ir com ele. Impossível. Os amigos o esperavam na Lapa para mais uma noitada. Como sempre, Betty insistiu, chorou, apelou, chantageando: “Você não liga mais pra mim, não me ama mais. Eu não suporto isso, não sei viver sem você, Nelson. Já falei: se você me deixar, eu me mato!”. Nelson já tinha escutado esses choramingos e ameaças muitas vezes, não deu importância e saiu pela porta dizendo apenas: “Ora, Betty, deixa de bobagem. Só vou me divertir com os amigos. Logo mais, estou de volta”. Nem bem estava atravessando a rua, uma vizinha gritou pela janela: “Nelson, corre aqui, pelo amor de Deus. Tá pegando fogo!”. Sem imaginar o que poderia estar acontecendo, mas sentindo o nervosismo da voz, Nelson voltou correndo para o apartamento. Triste surpresa. Encontrou sua Betty em chamas: num desatino, ela havia derramado um vidro de álcool nas roupas e ateado fogo. Em desespero, ele tentou apagar o fogo, enrolando-a em cobertores. Apavorado, via a pele da linda Betty se soltando inteira. O cheiro de pele queimada dominou o apartamento. Aos prantos, levou-a numa ambulância para a Casa de Saúde São Sebastião. Foram quatro dias de agonia. Nelson ao lado dela o tempo todo, procurando confortá-la: “Meu amor, pra que foi fazer isso?”. “É, meu amor, fiz uma loucura, não? Te amo tanto!” Infelizmente, Betty não resistiu às queimaduras. Nelson ficou abaladíssimo e, para muitos, o caminho das drogas em sua vida começou aí. Herivelto, careta convicto e biriteiro por opção, tentou várias vezes aconselhá-lo. Inútil. Nelson também estava se afundando nas drogas pesadas. Tempos depois, Nelson se envolveu com a cantora Lourdinha Bittencourt, nossa vizinha na rua João Luís Alves, 88, na Urca, quando meus pais ainda viviam juntos. Nós morávamos no térreo; ela, no último andar. Tinha o hábito de fazer “vocalização” pela manhã. A cada vez que Lourdinha subia nos exercícios, nas notas altas, sua cachorrinha pequinesa uivava junto, bem alto, a ponto de incomodar a vizinhança, acordando todo mundo. Era terrível quando esses exercícios começavam. Mas havia algo mais com relação a ela em casa. Certa vez, assisti a mais uma briga de minha mãe com meu pai, em que o pivô era Lourdinha. Meu pai negava, como de costume. No entanto, tudo indica mesmo um casinho com ela na época do Cassino. Não seria de admirar. Lourdinha foi mulher belíssima. No palco da Urca, uma deusa: altiva, descia a escadaria cantando a opereta de Franz Lehár Viúva alegre, de soirée, chapéu enorme cheio de laços de fita, voz empostada, agudíssima. Mais tarde Herivelto a aproveitaria no Trio. Os homens faziam procissão à frente de seu camarim, depois do show, para vê-la de perto. E quem organizava tudo? Quem escolhia os que podiam ou não entrar no camarim? Os que ganhariam ou não sua companhia para um jantar? Os eleitos para sair com Lourdinha? Quem determinava tudo era sua mãe de criação. Dona Maria, uma mulata baixinha, invocada, criou Lourdinha desde cedo. Era ela quem selecionava os homens que cortejavam e entupiam o camarim e a casa de Lourdinha. Se tivessem dinheiro, muito dinheiro, tinham acesso garantido; se não, nem chegavam perto. Lourdinha foi cortejada por ministros e presidentes. Na porta de sua casa, ficavam parados os grandes milionários da época, políticos importantes, gente influente disposta a chegar perto dela, a qualquer custo. Nos meus anos de criança, Lourdinha Bittencourt foi a imagem mais forte do que representava a dinheirama toda. O perfume das mulheres dentro do Grill, a roupa elegante dos homens, os automóveis importados, o cheiro de dinheiro no ar faziam parte de um cenário que emoldurava o momento de glória de Lourdinha. Era um sonho dourado o que ela vivia e, eu supunha, jamais acabaria. A realidade que ela viveu ao lado de Nelson Gonçalves, contudo, foi bem diferente. O relacionamento deles foi tumultuado. Reflexo principalmente do envolvimento dele com as drogas ilegais. Nelson viveu muitos anos com Lourdinha, apesar da oposição de dona Maria. Moraram num apartamento na Glória, depois num outro em Copacabana, no Edifício Sevilha, na avenida Atlântica. Antes de seu envolvimento com ela, Nelson teve dois filhos. Junto com Lourdinha, adotaram duas crianças. Mas a paixão por ele era tão grande que ela acabou assumindo uma filha de Nelson de outro romance, Margareth, que Lourdinha tratava como sua própria filha. Certa vez, nesse apartamento da avenida Atlântica, Nelson, num ataque de fúria, arrebentou a casa, começou a bater em Lourdinha. Desesperada, roupa toda rasgada, machucada dos pés à cabeça, ela ligou para Herivelto pedindo socorro. Meu pai foi até lá com Lurdes, com quem casara depois de se separar de Dalva. Os dois a tiraram de lá e a levaram para a casa na Urca. Trataram dela até ficar curada. O tempo foi passando. Lourdinha ainda vivia com Nelson. Por sugestão de dona Maria, Herivelto a convidou para participar do Trio de Ouro (em sua terceira formação). Herivelto começou a treiná-la, modificando um pouco seu jeito de cantar, tirando aquela impostação exagerada de cantora lírica. Lourdinha participaria do trabalho com o Trio de Ouro de 1952 a 1979. Numa viagem de trabalho com o Trio, por causa de um acerto financeiro, Lourdinha se desentendeu com meu pai e o chamou de desonesto. Foi terrível para Herivelto, que se orgulhava de sua criação, simples mas honesta. Ficou uma mancha no relacionamento. O incidente o marcou e rendeu uma música maravilhosa em parceria com David Nasser,“Atiraste uma pedra”, que todos julgam ter nascido de um caso amoroso. Na verdade, a música foi feita para Lourdinha, num momento de decepção:

Atiraste uma pedra
No peito de quem
Só te fez tanto bem
E quebraste um telhado
Perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar
Quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra
Com essas mãos
Que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio
Te servia de abrigo
Perdeste um amigo
Que os teus erros não viu
Que o teu pranto enxugou
Mas acima de tudo
Atiraste uma pedra
Turvando essa água Essa água que um dia
Por estranha ironia
Tua sede matou

Nelson casaria depois com Maria Luísa. Ela trouxe à vida de Nelson estabilidade doméstica e afetiva. Com ela, Nelson adotou mais dois filhos. É de conhecimento do público (Nelson já contou isso nas TVs etc.) o grande empenho de Maria Luísa para libertar Nelson das drogas. Felizmente, saíram vitoriosos na batalha. E a geração mais recente pôde conhecer o talento de Nelson, que nos emocionou por mais de cinquenta anos e impressiona até a nova geração, como o roqueiro Lobão, seu fã declarado. O vozeirão de Nelson chegou mais longe ainda. Conquistou elogios de Frank Sinatra, quando o viu num show de Carlos Machado, apresentado no Radio City Music Hall, de Nova York. Conta-se que Sinatra cumprimentou pessoalmente no camarim. Para meus primeiros passos como cantor, o apoio de Nelson foi decisivo. Num momento em que não recebia amparo algum de meu pai — ao contrário, queria fazer de mim um militar — e ansioso por uma brecha no cenário artístico, recebi de Nelson um presente. Encontrei-o em São Paulo. Ele me disse que estava sabendo que eu havia começado a cantar. Perguntou se estava conseguindo abrir as portas certas, se meus pais apoiavam. Respondi que estava tentando e apenas minha mãe me dava força, que meu pai se negava a me ajudar. Indignado, Nelson, 
com aquele seu jeito de falar acelerado, parecendo uma metralhadora, me disse: “Porra, rapaz, qual é a do Herivelto? Tem de ajudar o filho, sim. Vou falar com ele”. Então me convidou para ir com ele até Santos, litoral de São Paulo, onde faria um show num clube. Além de sua elegância, num terno bege-claro, não me esqueço do anel de brilhante que usava. Era de chamar a atenção, um verdadeiro farol. Vaidoso, Nelson exibia a nova aquisição e explicava que era um solitário de cinco quilates, de alta pureza. Comentei: “Nelson, será que um dia minha carreira de cantor vai me proporcionar uma joia assim?”. “Mas claro, rapaz! E pra você ter certeza do que penso, vai entrar naquele palco comigo e cantar bonito como sua mãe.” Nelson me deu esse presente, importante naquele início de carreira: no meio de seu show, me chamou ao palco e me apresentou como “grande cantor que despontava para o sucesso”. Cantei uma música sozinho e outra, de meu pai, com Nelson. Foi uma emoção, uma honra. Este foi Nelson, ser humano de temperamento difícil, agressivo às vezes, mas capaz de um gesto doce com um jovem que carregara no colo, ainda criança.



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