Por Luana Ribeiro
Cinquenta anos depois, alguns dos principais tropicalistas ainda permanecem na ativa e dialogam com artistas contemporâneos, nas mais diversas áreas artísticas, mostrando que o movimento cultural iniciado em 1967 continua vivo, criativo, atento e forte
Yes, temos bananas. Já maduras. Estão sobre a mesa. Na sala, a TV ligada – não se sabe se no Raul Gil ou no Big Brother. No quarto, figuras conhecidas: a moça ruiva de noiva, dois garotos dentuços; o rapaz negro, barbudo, com riso largo; outro que anda sempre com ele, queixo pontudo, olhar agudo. Essa casa, construída em 1967, está sendo sempre revisitada. Sonho em preto e branco, as imagens da Tropicália evocam nostalgia. O movimento transgressor mexeu com as estruturas do que vinha sendo produzido até então nas artes no Brasil – tendo na música sua faceta mais popular.
Cinquenta anos depois, novas gerações convivem com essa herança cultural e, ao mesmo tempo, se deparam com boa parte de seus personagens vivos e ativos. “É um fenômeno que extrapolou as fronteiras pelo que significava e também pela permanência dos trabalhos de Caetano, Tom Zé, do meu próprio trabalho; Os Mutantes, especialmente Rita Lee. Foram desenvolvimentos artísticos que mantiveram o significado, a chama do Tropicalismo até hoje”, avalia Gilberto Gil, o rapaz barbudo de outrora.
A declaração foi concedida no camarim de um show que comemorava outro cinquentenário, o do Teatro Castro Alves. Gil dividiu o palco com Baby do Brasil e os Filhos de Gandhy, mas também com Saulo Fernandes e jovens músicos da Neojiba. Cantou Domingo no Parque diante de um público vibrante, como quando defendeu a canção no Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967, alcançando o segundo lugar. No palco, Os Mutantes e o maestro Rogério Duprat, responsável pelos arranjos.
“O maior legado que o Tropicalismo deixou foi o gosto pela diversidade. E sendo o legado do Tropicalismo um legado de liberdade, o que fica é muito mais o que as novas gerações trazem como contribuição, a partir da referência que têm, muito mais do que um repertório”, afirma, citando a própria Domingo no Parque, além de Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, Panis et Circensis, de Gil e Caetano, eternizada pelos Mutantes, e São, São Paulo, de Tom Zé. “Não é propriamente o repertório que faz a herança. O que faz a herança é o conceito de trânsito livre por vários setores, várias maneiras de fazer música e de compreender música para o Brasil, para o mundo”.
O espetáculo do qual Gil participou há 15 dias teve muito dessa fluidez. O ator Jackson Costa declamou Navio Negreiro, de Castro Alves. Outras intervenções incluíram Villa-Lobos, com as Bachianas Brasileiras nº 7; trecho de O Guarani, de Carlos Gomes, e o balé do Gandhy. Tudo que estava encadeado e costurado foi quebrado pela descontração de Baby, que como num happening, abraçou Carlos Prazeres – enlaçados, cantaram Eu e a Brisa, de Johnny Alf. Brasileirinho, de Waldir Azevedo, abafou!
A direção artística foi assinada por Gil Vicente Tavares. “Isso não é nada de ‘oh, que pessoa criativa, como ele conseguiu pensar uma coisa assim’. Isso está muito óbvio para quem assistiu às obras de Glauber Rocha. Ele começa Deus e o Diabo na Terra do Sol com Bachianas”. A menção a Glauber (que com seu Terra em Transe, de 1967, impactou Caetano) justifica-se ainda por sua conhecida obsessão por Castro Alves.
Gil Vicente cita também O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, encenada por Zé Celso Martinez em 1967, com Caetano e Duprat na trilha. A alegoria do quadro socioeconômico e moral brasileiro era temperada com a cenografia colorida de Hélio Eichbauer – em entrevista a Folha de S.Paulo, em 2006, o cenógrafo diz que este trabalho foi sua “revolução tropical”.
“Ver uma peça de Zé Celso é uma coisa orgiástica, dionisíaca. Ele trabalha com excesso, com aglomeração de coisas, entulhamento de linguagens, bem diferente de mim”. E exemplifica com o novo espetáculo, Os Pássaros de Copacabana. “Por incrível que pareça, as obras de arte que mais me alimentam são as que menos têm a ver comigo. Sou às vezes excessivamente apolíneo no que faço”.
Os Pássaros de Copacabana tem como ponto central questões de gênero: Marcelo Praddo vive uma travesti em 1964, que é desafiada por seu amante, um militar, a fazer um musical com canções de Ary Barroso. Para abordar o tema, Gil Vicente buscou fugir do discurso da “travesti empoderada” e ampliar as possibilidades de mexer com a plateia. “Todas as pessoas que são a favor da luta contra a transfobia iriam adorar, mas ficaria restrito a um determinado grupo”, reflete, o que o leva de volta às influências do Tropicalismo. “No fundo, você percebe que fica muito mais presente a Tropicália até hoje como influência, porque eles procuraram o caminho artístico, da ruptura, da provocação. Mesmo as músicas que têm fundo político trabalham através da metáfora, da citação, da paródia, do jogo, da brincadeira. Divino Maravilhoso é uma canção política’”.
A Perenidade do barato
Fica um pouco mais fácil tecer comentários sobre o movimento passado meio século? Em um cenário conturbado e ao mesmo tempo fervilhante – talvez, em parte, por causa disso – a Tropicália foi a expressão de diversos fatores que acabaram reunindo pessoas de várias origens. “Pessoalmente, não tinha nenhuma perspectiva dessa durabilidade, dessa permanência”, pondera José Carlos Capinan, um dos mais prolíficos compositores tropicalistas. Atualmente diretor do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), Capinan é autor de canções como Miserere Nobis (com Gilberto Gil), presente no clássico disco Tropicália ou Panis et Circensis; Soy Loco por ti América e Ponteio (com Edu Lobo).
Na tentativa de explicar a relevância do movimento, o poeta destaca a consistência da produção artística, em contraste com a fragmentação da cultura, associada à facilidade de difusão com a internet. “Talvez venha a partir de certa diluição da matriz cultural brasileira, das artes do mundo inteiro, em relação a modificação de padrões, e também ao que a internet e as redes ajudam a divulgar. Há uma perda de conteúdos, repetição de fórmulas, e isso favorece um núcleo como o Tropicalismo, que tem um apelo muito forte de poesia, muito densa, muito original”.
Capinan também aponta a pertinência dos temas, que ainda falam à sociedade brasileira, como um dado que atualiza o movimento. “O que se questionava na época, e de certa forma ganhou uma visibilidade muito maior hoje, são temas que ainda estão em jogo: sexualidade, ciência, religião e a própria arte. É um movimento que levanta bandeiras libertárias. Ao contrário do que pensavam os utópicos, o mundo não ficou melhor, a não ser na tecnologia”.
Pouco antes de a Tropicália estourar, Capinan atuava no Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, onde teve seu primeiro encontro com Tom Zé. Juntos, realizaram a peça Bumba Meu Boi, em 1962. No CPC, conheceu Caetano e Gil, este já em 1963. Esses tempos pré-tropicalistas foram fundamentais para que se formasse o chamado grupo baiano.
“Isso é resultado das atividades de uma universidade, a Ufba, em sintonia com a vanguarda cultural do mundo. E se localizou aqui na Bahia graças ao reitor Edgard Santos”. Durante sua gestão, foram criadas as escolas de Teatro (1956), que tinha à frente Eros Martim Gonçalves; Dança (1956), dirigida em seus primeiros dois anos pela polonesa Yanka Rudzka (que já aliava o expressionismo alemão às referências do candomblé); Música (1954), coordenada pelo maestro alemão Hans Joachim Koellreutter, que, por sua vez, convocou os suíços Ernst Widmer e Walter Smetak.
Colagem musical
Cria de fontes diversas, que incluem o Konservatorium Franz Schubert, em Viena, na Áustria, o maestro Letieres Leite percebe no braço musical da Tropicália o modo como se conciliaram as múltiplas influências que estiveram na base da produção daqueles artistas, que se situavam entre o erudito, as referências da MPB e aspectos do rock e da cultura de massa. “A Tropicália, para mim, é um movimento que tem a ver com um formato de estruturação musical muito ligado à colagem. Mas os elementos foram ressignificados”.
Por colagem, ressalta, não se deve interpretar a mera justaposição ou soma, e sim uma “abordagem mais profunda”. Letieres argumenta que disso resulta a ausência de um gênero musical definido. “Você reconhece uma bossa nova, é um movimento que mexeu com a estrutura musical, o samba conversando com as harmonizações do jazz. A batida do samba está lá clara, a questão harmônica, a melodia acaba sendo sempre uma consequência – a melodia sempre é filha do ritmo”.
Para ilustrar, aponta a variedade de ritmos que cada música tropicalista representa. “Alegria, Alegria é um frevo, o outro vai ser um baião, o outro, um rock híbrido, e assim por diante. Então não é essa a questão, você não vai julgar a Tropicália por esse viés”, detalha, ressaltando a contribuição do maestro Rogério Duprat à costura dos arranjos. “Ele bebeu na fonte do contemporâneo alemão, do [compositor Karlheinz] Stockhausen. O Duprat foi colega do Frank Zappa, que já fazia isso na música, essas colagens reestruturadas”. Ele aponta ainda que a antropofagia característica da Tropicália já havia aparecido antes na vida cultural brasileira com o Modernismo (1922-1945). “Não acho, posso estar completamente enganado, que é a primeira vez que a música brasileira sofreu uma necessidade antropofágica de reconstrução. Vou corrigir, digo a arte brasileira. Acho que esse pensamento também aconteceu na Semana de 22”.
Mais do que “a briga da guitarra com o violão”, Letieres considera a liberdade como a maior herança da Tropicália. “Essa liberdade está repercutindo até hoje, passou a repercutir para sempre”. Como exemplo, cita a cena musical paulistana. “Eles olham muito para o Nordeste, principalmente a influência afro-baiana, que está sendo muito utilizada. Os pernambucanos há muito tempo têm utilizado como matéria-prima. E, junto com isso, a eletrônica chega”.
Em seu trabalho, há 10 anos à frente da Rumpilezz, Letieres também trabalha com a junção de elementos díspares: o universo musical de matriz africana e o jazz. “Gosto de conversar com a música eletrônica; tenho um projeto inclusive, o ‘Rumpilezz Noise’, que é pegar toda a nossa música e derreter com instrumentos elétricos, através de processamentos”. Para ele, a maior novidade da orquestra é chamar a atenção para o que ele nomeia Universo Percussivo Baiano (UPB), que consiste na sistematização das claves e desenhos rítmicos da música matricial africana. “Tenho a intenção mesmo de propor aos colegas da cena da música instrumental, que é ligada ao jazz, que a matéria-prima da música afro-baiana pode ser interessantíssima para compor, improvisar”.
Play som, play som
Citada pelo maestro como um dos nomes na Bahia que vem bebendo dessa fonte, ao lado da I.F.Á. Afrobeat e da Opanijé, o BaianaSystem se tornou um fenômeno fazendo justamente essa interpolação: pagodão, dancehall, ijexá, cumbia, dub e eletrônica. “Todos nós, que viemos depois dessa geração, somos influenciados diretamente por eles. Acho que até no que se tem depois de movimento forte, talvez o Mangue Beat como um marco, percebe-se essa influência. Gil colabora com eles no primeiro disco, em que gravaram Maracatu Atômico, diz Roberto Barreto, idealizador do grupo. Pessoalmente, o músico destaca o trabalho de Gil, não somente no movimento, mas em toda a sua carreira. “Você vê que ele é um cara que passeia por muitos gêneros e, de alguma forma, apropria-se daquilo. Tem o reggae como influência, como já teve o samba, o forró...”.
O próprio Roberto trouxe um elemento que é destaque na geleia geral da banda, que é a guitarra baiana. “Tenho muita influência disso, do que eles fazem com a guitarra, de como a guitarra entra na música brasileira”. O guitarrista afirma, porém, que não foi puramente racional a fusão de múltiplos gêneros e referências presentes no som do grupo. “Não foi necessariamente pensado. Quando o Baiana começa, foi nessa experimentação de colocar a guitarra baiana pensando no ambiente de soundsystem, que já era uma coisa bem experimental na sua essência – na Jamaica se tem aquelas bases, as pessoas cantando em cima, de forma mais livre”. A cultura do soundsystem, por sua vez, já era trabalhada pelo vocalista, Russo Passapusso, com o coletivo MiniStereo Público.
Para Roberto, a antropofagia tropicalista é quase inescapável para as novas gerações. “A gente já vem processado por isso, a gente já é educado dessa forma, com essas possibilidades, isso já não fica tão claro, essa quebra, porque já vem pós-quebra. Quando você consegue ler e entender sobre isso, você percebe que tinha uma coisa mais clássica; uma forma mais vocal, de rádio, de cantar; tinha a bossa nova; tinha uma série de coisas que era mais padrão, e a Tropicália vem nessa quebra”. Essa noção de existir uma lógica própria de pensamento tocou o inventivo Tom Zé, que segue até hoje em clima de ruptura. “Isso é muito bonito”, disse, ao saber da conclusão de Roberto sobre a cabeça da sua geração.
Para o cantor, é sobre isso que estamos falando: aprendizado. Tom Zé fala de um filme do francês Alain Resnais, que lhe ensinou que a maior fase de absorção de conhecimentos ocorre entre 0 e 2 anos. Nesse berçário tropical, ele explica, os tropicalistas foram descobrindo diversos saberes: cabem aí a cultura provençal dos séculos 11 e 12, que chega por meio dos cantadores nordestinos; os conhecimentos da Escola de Sagres (que organiza as técnicas de navegação em Portugal, no século 15), personificada na Chegança; as canções celta e árabe, que fundamentam o cancioneiro urbano dos menestréis. “Repare que nós, tropicalistas, na nossa infância, tivemos uma educação... E aí ligando ao filme de Alain Resnais – nós não falamos a língua da tribo, a língua do povo ao nosso redor. Que línguas falamos para poder aprender tanto?”. Ele ressalta também o papel da escola pública da época nessa formação. “Os cursos de ginásio dos colégios eram muito bons, nos colégios da Bahia. Era uma educação pública sofisticadíssima”.
Toda essa pesquisa para explicar o movimento desaguou no álbum lançado por Tom Zé em 2012: Tropicália Lixo Lógico, no qual se cerca de jovens: Mallu Magalhães, Emicida, Pélico, Rodrigo Amarante e Washington Carlos (que conheceu em Caruaru). O disco entremeia as teses com músicas mais agitadas, para aliviar a moleira. Em Tropicalea Jacta Est, com o acompanhamento de Mallu, ele louva o avanço trazido pelos tropicalistas, mais diretamente Caetano e Gil: “Domingo no parque sem documento/ Com Juliana-vegando contra o vento/ Saímos da nossa Idade Média nessa nau/ Diretamente para a era do pré-sal”. Na marcha-enredo da Creche Tropical, faz menção ao conhecimento não aristotélico. “E assim funciona a creche, cada círculo, cada aula, iam se sucedendo, com aqueles jograis que casualmente circulavam entre nós”.
Os “bebês” que cultivou durante a gravação o impressionaram. “São uma elite, é assustador. Emicida é o cara, aquilo é um negócio de louco. Aquela menina [Mallu]... Todos têm semelhança com Caetano e Gil, que a gente só vive junto deles aprendendo. Eles são de uma velocidade de raciocínio e de imediata reação que parece um mecanismo de brinquedo”. De aluno, passou a professor, para, novamente, voltar a aprender aos 80 anos, fiel ao espírito tropicalista.
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