segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




Saudades do Brasil


Com o início das operações da ‘Telemontecarlo, os pasolinianos escritórios da Globo International foram fechados e Filipelli e a companhia transferidos para Londres. Na Itália, a TV Globo deixaria de ganhar vários milhões de dólares com a venda de novelas e passaria a gastar: seria compradora. E precisaria de gente para produzir seus programas. De volta a Roma, como já tinha algum know-how de Itália, falava a língua, tinha experiência em televisão e vinha de um sucesso como o “Armação ilimitada”, achei que seria ótimo produzir um programa para a Telemontecarlo. Como ninguém me chamou, montei o projeto de um programa semanal para jovens misturando comédia e videoclips, e fui oferecer a Dionísio Poli. Ele não se interessou muito mas, como a produção era baratíssima, sem muito entusiasmo, aceitou: US$ 5 mil por programa, para pagar estúdio, equipe e equipamento, elenco e edição, para fazer a série “Pop Shop” por seis meses.

Com meu assistente Massimiliano, o DJ brasilianista da Rádio Dimensione Suono, montamos num galpão do Trastevere o cenário: um balcão de venda de discos numa loja de departamentos. Os dois apresentadores seriam minha amiga napolitana Maria Giulia, que não era atriz mas cantora, fazendo uma vendedora de discos, e o próprio Massimiliano, que estaria sempre atrás de uma câmera de vídeo. Ele seria o “vendedor” da seção de vídeo da “loja” e pegaria uma câmera para “conversar” com Maria Giulia, discutir, fazer charme, mostrar as pernas dela, dar closes nos seus lábios. O assunto dos personagens é música: Maria Giulia adora as estrelas internacionais, principalmente brasileiras, e ele detesta, só gosta de grupos de rock e new wave italiano, é um típico “paninaro”, um mauricinho, um garotão da hora. Com a ajuda de um roteirista italiano escrevi os diálogos para eles e para outros personagens, que aparecem em um “videofone” no balcão de Massimiliano, falando de algum lugar da Itália. Entre eles uma velhota de 70 anos, desbocada e libertária, metaleira de couro negro, “Giovanna Dark”, pedindo vídeos de bandas de rock pesado; e um veterano de 1968, “Dino Sauro”, sempre chapado de haxixe no seu sofá, lembrando os velhos tempos revolucionários e pedindo que ela passe vídeos do Pink Floyd e do Santana.

Fizemos tudo com uma câmera na mão, alternando diálogos, piadas e comentários com os clips escolhidos por Maria Giulia, Massimiliano e os personagens no “videofone”. Ficou tudo meio pobre, meio precário, pra lá de alternativo, mas ficou muito divertido, cheio de boa música de diversos gêneros e países, de piadas e truques visuais e de situações de comédia. Mas estreou quase despercebido, com 2% de audiência, e foi ignorado por crítica e público — como toda a programação da Telemontecarlo! Era impossível quebrar o monopólio de credibilidade dos telejornais das três emissoras da RAI, um dirigido pela democracia cristã, outro pelos socialistas e um terceiro pelos comunistas. Desde o início da televisão os italianos se acostumaram a acreditar no, “Telegiornale” das oito da noite.

Jamais deixarão de vê-lo para assistir a um outro feito por brasileiros e gerado de Montecarlo, por melhor que seja. Baseado nos ritmos e padrões do “Jornal nacional” e mesmo muito bem produzido, o telejornal da Telemontecarlo não funcionou. Não dava mais do que 2% de audiência. A novela . que vinha em seguida pegava a audiência com 2% e ali ficava ou caía. Com a pouca audiência da novela, o especial e o filme também naufragavam. No Brasil, a audiência absoluta do “Jornal nacional” entregava o horário para a novela com 60% de Ibope. A receita de programação brasileira funcionava ao contrário na Itália, onde um programa puxava o outro, mas para baixo. Antes, nas emissoras de Berlusconi as novelas brasileiras davam grandes audiências, faziam muito sucesso, porque entravam em seguida a programas populares, com grande massa de espectadores. Na Telemontecarlo, ninguém via.
Quando vi os mapas de audiência da programação da TMC, entendi tudo e me lembrei de uma conversa com Boni no Rio, quando disse a ele que iria produzir e dirigir um programa para a Telemontecarlo.

“Se você quer se divertir, comer bem e ficar morando numa cidade deslumbrante, não há lugar melhor. Mas é claro que vai dar errado. Esta operação toda é uma loucura e eu sempre fui contra.” E explicou por quê. Era exatamente o que estava acontecendo. Fora as brigas judiciais e policiais. Fazia parte da rotina da Telemontecarlo a notícia que em alguma cidade as emissoras locais tinham conseguido um mandado judicial para lacrar os nossos transmissores. Os advogados da TMC entravam com mandados de segurança, invocavam a liberdade constitucional de expressão e em alguns dias liberavam os transmissores e iniciavam interminável briga judicial à italiana. Até que outros fossem interditados. Nas principais cidades, sob o império da lei, os carabinieri executavam a ordem judicial de tirar a emissora do ar. Em regiões mais brabas como a Sicília e a Calábria, os transmissores da Telemontecarlo foram literalmente pelos ares, com bombas.

Três meses depois eu não agüentava mais. Tudo era difícil, a produção era paupérrima, a edição precária, a equipe técnica lentíssima (parava três horas para o almoço), era uma batalha conseguir os vídeos nas gravadoras. Passada a novidade inicial, era cada vez mais penoso escrever e gravar o programa cada semana. E a audiência não saía dos 2%. Comecei a ficar com saudades do Brasil, da eficiência e potência da TV Globo, de falar a minha língua e me divertir com minha família e meus amigos. Além disso, tirando o napolitano Pino Daniele e alguns “cantautores” dos anos 70 como Lúcio Dalla e Edoardo Benatto, o pop italiano era ruim de doer. Mas felizmente Daniel Filho me chamou ao Rio, para outro projeto longamente sonhado: escrever junto com Euclydes Marinho um especial para Tom Jobim. Não seria um especial tipo “vida e obra”, mas misturando alguns clássicos com as canções de seu novo disco, belíssimo, gravado em Nova York. Os pontos altos eram uma versão sinfônica de sua obra-prima “Saudades do Brasil” (que apesar de a gravação ter resultado belíssima, por ser muito longa — sete minutos — acabou não entrando na edição final) e um dueto de “Chansong” (que tem letra anglo-francesa) que imaginei com o maestro de smoking, tocando e cantando baixinho nos salões vazios do Hotel Pierre. Sua companheira de dueto seria Márcia Haydée, uma diva do balé clássico. 

Mas as negociações complicaram e as gravações foram feitas em Nova York, no Pierre, mas com outra Márcia bailarina, a Albuquerque, que tinha participado de alguns musicais da Broadway. Entre as novidades, a sofisticação novaiorquina de “Two Kites”, com surpreendentes ecos de uma batida disco-music, de muito bom gosto; e entre os clássicos, uma grandiosa versão de “Se todos fossem iguais a você” em marcha-rancho que fechou gloriosamente o programa. Entre as surpresas, um dueto com ele ao piano cantando junto com Marina Lima o clássico “ Lígia”. Além da música, Tom nos brindou com uma visita guiada ao Museu de História Natural de Nova York, com amplas explicações sobre pássaros,
mamíferos e roedores, e especialmente sobre seus favoritos, os urubus — que deram título a um de seus grandes discos. Em conversa, descendo a Quinta Avenida, olhou pra cima e comentou, citando Fernando Sabino: “A melhor maneira de conhecer Nova York é de maca.”

No Festival de Cinema e Vídeo de Nova York, “Antônio Brasileiro”, “ dirigido por Roberto Talma, ganhou o prêmio de “Melhor musical”. De volta a Roma, uma noite, no piano-bar Manuia, assim que entrei, o craque Toninho Cerezo, do Roma, me chamou a atenção para uma mesa com quatro morenas brasileiras. Embora as três garotas fossem bonitas, era a mãe que mais atraía olhares. Era Silvia de Azevedo Marques, exMonte, uma bela dama da sociedade carioca, amiga de minha irmã, com as filhas Lívia, Letícia e Marisa, de 19 anos, para quem ela havia me pedido, há quase um ano, que desse alguma orientação musical e acadêmica. Marisa queria ser cantora, estava indo estudar em Roma e, a pedido de minha irmã, me visitou no Rio, muito educada e discreta. Conversamos sobre música, ela cantarolou um pouco, mas como eu não sabia nada de professores e academias de ópera, falamos sobre música brasileira e fiquei surpreendido como uma menina da sua idade, fã de Maria Callas e Billie Holiday, conhecia tanto sobre João Gilberto, Vicente Celestino, Lamartine Babo, Velha-guarda da Portela e outros excluídos de sua faixa etária musical. Não a vi mais. Marisa ficou alguns meses estudando canto em Roma mas só a reencontrei naquela noite no Manuia, quando ela me disse que tinha desistido da ópera. Para fazer carreira lírica teria que morar fora do Brasil, o meio operístico era muito careta e competitivo e ela estava voltando para o Rio e queria ser cantora de música popular. Mas antes ia passar uns dias em Veneza e fazer um show num bar, acompanhada por um amigo violonista italiano, casado com uma brasileira.

“Aparece lá”, disse como quem fala do bar da esquina, e escreveu no guardanapo o telefone do casal em Veneza. No dia do show, em movimento que surpreendeu a mim mesmo, peguei um avião para Veneza. Claro, não era só para ver a garota cantar, eu mal a conhecia. Talvez para escapar das decepções televisivas, do pop italiano, não entendi muito bem por que estava indo, mas, afinal, quem precisa de um motivo para ir a Veneza na primavera? O bar à beira do canal era pequeno e charmoso. Suas portas se abriam para um calçadão, com mesas ao ar livre, vasos de flores e um pequeno palco ao fundo. Quando cheguei, nem metade das mesas estavam ocupadas. Era uma noite comum, o show semi-amador só foi anunciado no boca a boca de turma de amigos, Roberto Bortoluzzi amava música brasileira, era esforçado, mas era um violonista amador. Marisa nunca tinha feito um show profissional, mas quando começou a cantar, iluminada por meia dúzia de spots, estava muito diferente da garota que vi em minha casa e depois no Manuia. Com os cabelos negros cacheados descendo pelos ombros, sobrancelhas grossas, olhos escuros, um nariz grande e uma enorme boca vermelha, cantando Caetano, Gil, Milton, Chico, Tom Jobim, pura MPB de piano-bar, com uma certa dramaticidade operística, ótima afinação e belo fraseado musical. E uma voz linda. À medida que ia cantando, as mesas foram se enchendo, foi se enchendo o calçadão em frente ao bar, e o show terminou aplaudido pelo que, nas dimensões venezianas, pode ser considerado uma pequena multidão. Ela e Roberto, que esperavam uns trocados do dono do bar como participação na renda da noite, acabaram recebendo cada um 50 mil liras, US$ 70. Para Marisa, uma fortuna: seu primeiro cachê internacional. Fiquei mais uns dias flanando em Veneza e voltei para Roma. Marisa foi para Milão e de lá para o Brasil. Fiquei muito impressionado, não só com sua voz e performance, mas por sua atitude: a garota só
pensava naquilo, em cantar, em aprender música, em emocionar as pessoas. Tinha ótima cultura musical, conhecia jazz e ópera, bossa nova e MPB, choro e funk, tropicalismo e rock, tinha uma obsessão por qualidade e parecia muito séria e determinada em sua escolha. Não
ambicionava fazer sucesso: queria cantar bem, músicas bonitas. No Brasil, onde elegeu quase a totalidade dos governadores, o governo Sarney decretou a falência do Plano Cruzado logo depois das eleições. Com as reservas dizimadas, desmoralizado nos mercados internacionais, com a dívida externa fora de controle, a inflação reprimida explodindo e a economia desorganizada entrando em parafuso, o Brasil quebrou: a conta seria alta, recessão, inflação, desemprego, desilusão, desmoralização das instituições.

Fui passar o fim de ano no Rio de Janeiro e encontrei o país perplexo e revoltado, com a sensação de que, mais uma vez, tinha sido enganado. A lambada explodia nas rádios, perfeita trilha sonora para o momento. Passei o Natal no Rio e voltei para Roma com minhas três filhas, que passariam as férias comigo, enquanto eu continuaria as gravações do malfadado “Pop Shop”, num inverno gelado. Depois de um mês em Roma, com o naufrágio da Telemontecarlo, a pobreza da produção e a total falta de perspectivas, em uma rápida conferência familiar decidimos por unanimidade que a aventura romana estava encerrada. Era só gravar os poucos programas que faltavam para cumprir o contrato e voltar para casa.
Sem casa, sem trabalho e sem namorada, voltei feliz para o Rio de Janeiro, às vésperas do carnaval de 1987. “O Rio amanheceu cantando/toda a cidade amanheceu em flor/ os namorados vão pras ruas em bandos porque a primavera é a estação do amor.” A alegre marchinha de Braguinha da velha chanchada da Atlântida encheu meus ouvidos quando o carro saiu do Túnel Novo e o mar azul de Copacabana explodiu diante dos meus olhos. Bem, não era primavera, muito pelo contrário, o Rio estava fervendo, às vésperas do carnaval, na rebordosa da falência do Plano Cruzado. De volta à casa paterna, com 42 anos, pronto para começar tudo de novo. Para desapontamento de minha mãe, que estava adorando a minha temporada extemporânea sob o seu teto, logo aluguei um apartamento todo branco, de frente para o mar de Ipanema, e Esperança, minha filha de 12 anos, foi morar comigo. Abri os trabalhos.

Que trabalhos? Depois do exaustivo fracasso italiano, não queria ouvir falar em televisão por um bom tempo, não pensava em voltar ao jornalismo, estava completamente afastado da produção de discos, Lulu Santos fazia suas próprias letras. Eu estava tecnicamente desempregado. Logo que voltei ao Rio, Marisa Monte telefonou convidando e fui com Dom Pepe ouvi-la, num domingo, no Jazzmania, na Praia de Ipanema, num show semiprofissional produzido por sua irmã Lívia, com apoio da mãe e da irmã Letícia. A operação familiar funcionou, a beleza e simpatia das morenas da Urca ajudaram na promoção e a casa se encheu de amigos para ouvir Marisa cantar Chico Buarque, Tim Maia e
Caetano Veloso, mas também os inesperados i Kurt Weill (“Speak Low”), Marvin Gaye (“I’ve Heard it Through the Grapevine”) e Getulio Cortes, um grande compositor da jovem guarda (“Negro gato”, o ponto alto do show). Uma das primeiras pessoas que recebi no novo apartamento foi Marisa, interessada em conversar sobre música e em orientação para sua carreira.

O que eu tinha visto e ouvido me dava a viva impressão de estar diante de um real talento. E mais: de uma forte personalidade cênica, de uma jovem com ótima cultura musical e muito bom gosto na escolha do repertório e na maneira de frasear as canções, de uma musicalidade à flor da pele. Já vi e ouvi muitas pessoas de talento, muito talento, mas que não foram a lugar algum. Porque lhes faltavam a vocação e a determinação dos que vi triunfar. Ou o carisma. Ou a sorte. Ou tudo isto. Já ouvi muita gente cantando muito bem, mas seus repertórios, sua ignorância e mau gosto os levaram, no máximo, a acompanhar conversas de bar. Aquela garota de 19 anos parecia ter todas as qualidades para se tornar uma grande cantora. E uma obsessiva vontade de aprender, melhorar e crescer. Não ambicionava gravar um disco, nem tocar no rádio, nem ser popular. Queria ser uma cantora de palco, como as cantoras líricas, e as gravações, se acontecessem, seriam conseqüências naturais e secundárias. Porque ela acreditava que a grande música acontecia ao vivo, correndo todos os riscos, sem rede e fugaz como o teatro e a ópera. E por isso com mais emoção do que num registro trabalhado a frio, editado e transformado como o disco. E eu concordei.

Marisa não queria se envolver com gravadoras ou empresários, queria começar pelo começo, fazendo um show, depois outro e depois outro, até amadurecer seu repertório, suas interpretações e sua técnica. E depois seria depois: o importante era cantar, cada vez melhor, melhores músicas. Me ofereci para dirigi-la, com uma única condição: eu não me envolveria com a produção, empresariamento, dinheiro, pagamentos, contratos, nada que não fosse o roteiro e a direção do show. Para fazer o que tinha que ser feito. O namorado de sua irmã, Lula Buarque de Hollanda, que nunca tinha produzido um show na vida, produziria, eu e Marisa receberíamos uma porcentagem dos eventuais lucros dos shows, que sabíamos improváveis. Marisa morava com a mãe, não tinha pressa e não estava preocupada com dinheiro. O que era uma grande vantagem, porque a liberava de pressões econômicas e permitia que dedicasse todo o seu tempo à música, com o supremo luxo de não fazer nenhuma concessão comercial em seu trabalho. Mesmo assim, ela ia na música como quem vai num prato de comida. Diante do talento natural de Marisa, achei que valia a pena investir meu tempo e minha experiência naquela possibilidade. E melhor que tudo, era uma oportunidade rara para pôr em prática — com uma jovem com excelentes recursos — tudo que aprendi sobre o desenvolvimento de um artista. Fazer bom uso de minhas experiências
como jornalista e produtor, como compositor e empresário, como pedra e vidraça. Fazer o trabalho como se fosse uma tese universitária de design artístico, como um projeto completo de produção, não de um disco ou um show, mas de um novo artista. Sem influência de nenhuma gravadora ou televisão ou empresário, sem concessões de qualquer ordem, com a qualidade artística como prioridade absoluta. Fazer o que tinha que ser feito.

Primeiro a base de tudo: escolher as músicas, não só as mais bonitas, mas as mais adequadas à artista, a seu timbre, a seu jeito de cantar. Sim, porque muitas vezes um artista gosta de uma música — mas a música não gosta dele e o desastre é certo. Ouvimos centenas de músicas de diversos estilos e gerações, entre elas uma belíssima canção do napolitano Pino Daniele, com uma letra que, a pedido da cantora portuguesa Eugênia Melo e Castro, comecei a escrever dois anos antes. Demorei tanto que Eugênia desistiu e, quando finalmente a terminei, ofereci a Marina, mas ela também não se interessou. Marisa adorou: parecia que a música estava esperando por ela. “Bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz mas já não há caminhos pra voltar o que é que a vida fez da nossa vida? o que é que a gente não faz por amor?” Não era uma tradução de “E po ché fá”, mas uma letra totalmente
original sobre a melodia de Pino.

Mesmo porque, como metade da letra era em napolitano, eu não entendia absolutamente nada. Marisa e eu estávamos nos entendendo às mil maravilhas, parecia incrível como, apesar do generation gap, tínhamos uma grande identidade de gosto musical. Além de João Gilberto, Marisa adorava Custódio Mesquita, sofisticado compositor dos anos 30/40, um dos favoritos de João. Escolhemos dele os foxes “Nada além” e “Mulher” Não sei/ que intensa magia/ teu corpo irradia/ que me deixa louco assim/ mulher”), que naturalmente sempre só foi cantado por homens. De Custódio para Tim Maia, out o favorito, com os funks “A festa” e “Chocolate”, um jingle divertido que ele compôs nos anos 70 e depois transformou em música. Na seqüência, “Negro gato”, como um blues bem pesado, rascante e sensual, Billie-Holiday-no-Estácio.

Outras boas descobertas: a pouco conhecida “Samba e amor” (“Eu faço samba e amor até mais tarde/ e tenho muito sono de manhã...”), que Chico Buarque compôs em seu exílio italiano, em 1970, também a ser levada em heavy blues, sexy e preguiçosa. E o hit brega de Peninha, “Sonhos”, reabilitado por uma regravação recente de Caetano Veloso. Mas a versão de Marisa teria uma dramaticidade intensa e ansiosa, deliberadamente over, como um quase tango, o ambiente musical mais adequado para sua letra de perda e abandono. Como um Piazzolla suburbano.

Aos poucos formamos um repertório básico, cada vez mais desigual, buscando grandes contrastes para surpreendentes harmonias, dentro de um conceito que contrariava todas as tendências da indústria do disco. As gravadoras queriam bandas de rock ou então especialistas, com um padrão definido, e principalmente que compusessem  suas músicas. Além de não ser compositora, Marisa não era uma cantora de rock, nem uma sambista, nem uma romântica, porque era um pouco de tudo isto e mais, cantava blues e funk e soul e até bossa nova. Por que não um repertório que expressasse exatamente isto? Sem truques. Escolher com rigor grandes músicas de diversos estilos e de várias gerações. Um repertório que funcionasse como uma declaração de princípios musicais, que mostrasse a cantora como uma encarnação da frase de Torquato Neto: “Há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira. Gilberto Gil prefere todas.”

Porque Marisa também gostava muito de muita coisa dos melhores autores da sua geração, como Renato Russo, Cazuza, Lobão e a rapaziada dos Titãs, que tinha acabado de lançar um novo disco. Em Jesus não tem dentes no país dos banguelas, encontramos um clássico instantâneo do rock brasileiro, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, que avançava a discussão política em forma e conteúdo: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte, a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte, a gente não quer só comer, a gente quer comer e quer fazer amor, a gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor, a gente não quer só dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade, a gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro e não pela metade.” “Comida” foi imediatamente incluída no repertório, numa ambientação mais jazzística. Junto com uma nova canção de Lobão, de seu recém-lançado e estupendo Lp Vida bandida, com letra de BernardoVilhena, que também deu nome ao show de Marisa: “Tudo veludo”. “Tudo, tudo veludo, tudo, tudo, tudo azul na noite.” Uma música de estranha beleza, ultradissonante, com sequências harmônicas complexas, intervalos raros em música pop, dificílima de cantar. E mais ainda de cantar bem.

Para (des)equilibrar, em seguida escolhemos dois grandes sambas, que Marisa conhecia desde criança, quando seu pai, Carlos Monte, era da diretoria da Portela: o belo samba-enredo “A lenda das sereias” e o lento e pungente “Preciso me encontrar (Deixe-me ir)”, de Candeia. E fechamos o repertório com um blues de Rita Lee e Paulo Coelho, “Cartão-postal”, uma linda versão de Augusto de Campos para a “Elegia”, de John Donne, musicada por Péricles Cavalcanti em ritmo de beguine, um clássico de Os Mutantes, “Ando meio desligado”, e uma marchinha de Assis Valente lançada por Carmen Miranda, “Good Bye Boy”. Quanto mais o repertório se integrava com músicas aparentemente inconciliáveis, mais nos divertíamos. Isto contrariava todas as receitas do sucesso, resultava em cantores sem estilo e, no máximo, em crooners, diziam as lendas do mercado musical. Mas era justamente o que se buscava, a liberdade de cantar canções extremamente diferentes entre si, mas unidas pela qualidade musical e poética. A cantora seria a soma de todas essas escolas e gerações, dessas contradições, mostraria que era possível fazer disso um estilo, afirmaria uma visão da música brasileira aberta e libertária, integrando opostos e contrários em nome da surpresa e da beleza.

Segundo movimento: conseguimos um jovem pianista, um aluno de Luiz Eça que tocava bem e estava disposto a passar as tardes ensaiando, quase de graça. Roberto Alves adorava tocar piano. Como não tinha piano em casa, tocava todos os dias na seção de pianos da Mesbla, graças à boa vontade do gerente. No apartamento da mãe de Marisa, de frente para a Baía de Guanabara, Roberto passou as tardes repetindo dezenas, centenas de vezes cada música, enquanto Marisa encontrava uma forma de cantar e procurávamos um ritmo, uma levada, um fraseado para cada uma. Suave, cool, elegante, pesada, agressiva, econômica, dramática, irônica, até achar um jeito pessoal de dizer cantando aquelas coisas tão diferentes. Uma a uma, frase a frase, sempre mais uma vez. Fiel ao método gilbertiano, que pela repetição sempre diferente procura a forma perfeita, sempre em movimento sem sair do lugar, torturei Marisa e Roberto tardes a fio, entre cafezinhos, pães-de-queijo e um eventual baseado. Às vezes me sentia um professor de ginástica.  Outras, um designer pop.

Centenas de vezes depois, quando cada música começou a tomar forma, a ganhar uma linguagem própria, começamos a chamar outros músicos, jovens conhecidos de Marisa: o baterista Edu Szajinbrum, o baixista Ronaldo Diamante e um percussionista de suingue sutil e elegante, Marcos Suzano. E improvisamos um trio de backing-vocals em três músicas com Letícia, irmã de Marisa, minha filha Joana, de 17 anos, e o jovem ator Carlos Loffler. Estávamos prontos para começar. O RPM começava a acabar. Depois de vender mais discos mais rápido do que qualquer outro artista brasileiro e de se apresentar para milhões de espectadores em todo o país e na América Latina. Sob a barragem cerrada de legiões de fãs histéricas, o maior fenômeno do rock nacional naufragava num mar de álcool, cocaína e megalomania. Rock é clichê. Como em toda banda de sucesso, os egos entram em conflito, todos os excessos são permitidos, cada um quer um pedaço do sucesso, todos querem compor as músicas e ganhar direitos autorais. Quando a banda faz sucesso, o sonho coletivista do rock se transforma em seu pior pesadelo: a disputa pelo poder. Todos sempre acham que são iguais perante o rock, embora em todas as bandas, sempre, haja obrigatoriamente um vocalista carismático e um grande compositor, porque não há rock and roll sem eles. Os outros são, geralmente, apenas músicos competentes, mas sem eles também o rock não rola. Com o RPM não foi diferente.

Quando Paulo Ricardo e Luiz Schiavon mandaram uma carta para a CBS avisando que estavam acabando com o grupo, no auge do sucesso, a gravadora subiu nas tamancas e seus advogados rodaram a baiana. Havia contratos a cumprir, milhares de dólares que a companhia tinha investido, milhões que esperava faturar com a maior banda do Brasil. E chegou-se a um acordo: um último disco, com total liberdade criativa e orçamento ilimitado. Claro, se desse certo, a banda continuaria, de um jeito ou de outro, acreditavam os experientes executivos. Mas Quatro coiotes foi um fracasso retumbante. E a banda acabou, pouco mais de dois anos depois de começar, na mais breve e fulgurante aventura do Rock Brasil. O rock é rápido. Com os Titãs acontece exatamente o inverso. Seu sucesso e sua originalidade se devem e se alimentam exatamente dos talentos, egos e vontades de seus oito integrantes. Nesse conflito permanente, movido a fúria e criatividade, a banda vive e cresce na anarquia, num exercício radical de convivência e tolerância. Nos Titãs, uns são mais inteligentes, outros menos; uns tocam melhor e outros pior; uns cantam muito bem e outros nem tanto. Mas todos cantam e todos compõem, não há líder nem estrela, todos ganham igual. Uma exceção absoluta no mundo do rock. Mas mesmo assim, não por ser um dos principais vocalistas e nem pelo escândalo da sua prisão, mas pela qualidade de suas letras e o brilho e originalidade de suas opiniões, Arnaldo Antunes se destaca como um dos artistas mais talentosos e respeitados da nova geração. Nele se cruzam a cultura pop e a vanguarda paulistana, o conceito e a performance, a música e a letra. O rock, o tropicalismo e a MPB.

O novo disco dos Titãs é ainda melhor do que Cabeça dinossauro. Produzido por Liminha, Jesus não tem dentes no país dos banguelas é mais agressivo e mais musical, mais vigoroso e mais rigoroso, ainda mais provocativo e sofisticado, com bateria eletrônica e cheio de efeitos. Além de “Comida”, se destacam a libertária “Lugar nenhum” (“Não sou de São Paulo, não sou japonês/ Não sou de Brasília, não sou do Brasil/ Nenhuma pátria me pariu”) e a furiosa “Nome aos bois” (Nando Reis/Arnaldo Antunes/Marcelo Fromer/Toni Bellotto), com uma letra feita apenas dos nomes de inimigos da liberdade, da alegria, da paz e dos Titãs: “Garrastazu/ Stalin/ Erasmo Dias/ Franco/ Lindomar Castilho/ Nixon/ Delfim/ Ronaldo Bôscoli/ Baby Doc/ Papa Doc/ Mengele/Doca Street/ Rockfeller/ Afanásio/ Dulcídio Wanderley Bosquila/Pinochet/ Gil Gomes/ Reverendo Moon/ Jim Jones/ General
Custer/ Flávio Cavalcanti/ Adolf Hitler/ Borba Gato/ Newton Cruz/ Sérgio Dourado/ Idi Amin/ Plínio Correia de Oliveira/ Plínio Salgado/ Mussolini/ Truman/ Khomeini/ Reagan/ Chapman/Fleury...” Ronaldo entrou na letra porque no episódio da prisão de Arnaldo detonou a banda como drogada e corruptora da juventude em sua coluna na Última Hora.

Com 20 anos, Marisa estava pronta para começar. Seriam quatro noites no Jazzmania, de quinta a domingo. Marcamos a estréia para o dia da chegada da primavera no hemisfério sul. À medida que avançavam os ensaios, conversávamos muito não só sobre música, mas também sobre gravadoras, rádios, televisões, imprensa, tudo que se relacionava com uma carreira artística. Sobre tudo que está em volta da música, seu melhor e seu pior, sua nobreza e vulgaridade, o comércio e a arte. Ensinando o que aprendi, eu queria que ela soubesse como funcionam as engrenagens do mundo musical, a realidade de uma carreira. E advertia sempre: “Hoje música não é mais só música, é cada vez menos.” É imagem, é palavra e atitude, é dança e teatro, é tecnologia e produto de consumo, é tantas outras coisas. À medida que a informava eu me ouvia, fazendo a mim mesmo um relatório editado de minhas experiências em cada área e identificando Marisa com o idealismo de meus 20 anos. Nosso pacto era fazer o melhor possível, sem truques, era preciso conhecê-los para evitá-los. Queríamos produzir um trabalho que tivesse uma fluência natural, uma sinceridade radical, uma liberdade ilimitada. Sem nenhuma expectativa popular e com imensas ambições artísticas.

Embora eu lhe falasse sempre sobre João Gilberto como padrão de excelência e de integridade artística, Marisa não sabia mas eu queria produzir uma artista para João, que ele gostasse de ouvir, que lhe mostrasse como aprendi com ele. Ele estava morando no Leblon e nos falávamos quase todos os dias pelo telefone e fui lhe contando cada passo da aventura musical com Marisa. Decidi pôr em prática o estrito conceito publicitário gilbertiano: “Informar corretamente às pessoas interessadas.” Só isso e mais nada: sem adjetivos, sem chamar a atenção, sem oba-oba. Mas, no país das cantoras, quem estaria interessado em (mais uma) nova cantora? Não pedi nada a nenhum de meus colegas jornalistas, nem uma notinha, nem uma foto, nada em rádio ou televisão, só o serviço dos jornais informava data e local. O único esforço promocional foi a distribuição de folhetos no Baixo Leblon: queríamos saber como as pessoas reagiriam, sem nenhuma sugestão, sem truques, sem explicações, queríamos enfrentar a verdade. Duzentos convidados para a noite de estréia quase lotam o Jazzmania, seja lá o que Deus quiser.

Antes de irmos para o Jazzmania, num exagero de misticismo musical, telefonei para João Gilberto e pedi que ele falasse com Marisa, para uma inspiração, uma força, como se fosse uma bênção musical. Ele falou, ela ouviu sorrindo e agradeceu. Mas não me disse nada, nem
eu perguntei o que ele tinha falado. E fomos para o show. Há duas versões controversas sobre o que aconteceu na noite de estréia de Marisa Monte no Jazzmania: a minha e a dela, as duas honestas e de boa-fé, mas contraditórias. Para mim, o início do show foi ouvido e vivido como uma tragédia, com Marisa nervosíssima, semitonando notas e atravessando ritmos, como não acontecia nem nos piores ensaios, um pesadelo que durou alguns intermináveis minutos. Ou seria um problema do som, da amplificação de sua voz? Ou as duas coisas? Não posso afirmar que foi exatamente assim, mas com certeza foi assim que ouvi. Embora absolutamente sóbrio, ou por isso mesmo, estava mais nervoso do que ela e tentando aparentar calma e controle, não comentei nada, a única coisa que consegui lhe dizer no pequeno intervalo foi: “O pior já passou. Vamos lá.”
 
Marisa voltou para a segunda parte e cantou com a segurança que cantava nos ensaios e com grande emoção, num crescendo empolgante, e o público delirou. Com seu repertório surpreendente, com a juventude de sua bela figura de minivestido de seda branca e colar de pérolas, com sua performance. Na primeira fila, Dom Pepe e Euclydes foram os primeiros a aplaudir de pé no final e com eles todo o público. Como Marina, as empresárias Silvinha e Monique Gardenberg e o temido cronista Tutty Vasquez, que estavam entre os mais entusiasmados. Um pesadelo que se transformava em sonho de final feliz. Comemoramos discretamente o sucesso e não falamos sobre as primeiras músicas, só sobre a parte final. O pior já tinha passado, pensei, o melhor estava começando. Falamos do futuro, de ampliar ainda mais o repertório, de melhorar alguns arranjos. Só tempos depois conversaríamos sobre aquela noite. Na noite seguinte, sexta-feira, meia casa com alguns amigos e muita gente que tinha ouvido na praia, nos bares, no trabalho, comentários entusiasmados sobre a estréia da nova cantora. O boca a boca tinha começado. Marisa fez um show perfeito, segura,
emocionada, com uma postura dura e tensa mas um gestual expressivo, às vezes meio operístico, passeando com naturalidade e competência pelas paisagens musicais tão diferentes daquele repertório eclético. O público adorou.

Mas André Midani assistiu só à primeira parte e saiu sem falar nada. Na manhã de sábado, diante do mar de Ipanema, abri o Jornal do Brasil e, para minha surpresa, toda a capa do Caderno B era ocupada por uma foto de Marisa cantando no Jazzmania e uma matéria entusiasmadíssima de Alfredo Ribeiro, com o título: “Nasce uma estrela”. Parecia um filme. Não só o título, a coisa toda que estava começando a acontecer. À noite, o Jazzmania abarrotou, voltou gente da porta e Marisa fez um grande show, aplaudida de pé. De Kurt Weill a Getulio Cortes, de Tim Maia a Augusto de Campos, de Peninha a Chico Buarque, de Pino Daniele a Marvin Gaye, harmonizando contrastes e surpreendendo o público. Como queríamos demonstrar. Naquela primavera o Rio de Janeiro amargava uma das piores  “secas” de sua história. Não que faltasse água ou que o asfalto rachasse e houvesse caveiras de burros pelas esquinas. Há mais de um mês não havia maconha na cidade e quando havia era caríssima e de péssima qualidade. E a resposta dos “vapores” era sempre: “É a seca, é a seca.” Os surfistas estavam desesperados, o meio musical nervoso, o público dos shows e das danceterias inquieto. Quando o milagre aconteceu.

Latas, latas e mais latas prateadas, do tamanho de latas grandes de leite em pó, começaram a aparecer boiando no mar do Arpoador e em outras praias cariocas, como cardumes metálicos. Quando os primeiros pescadores e surfistas recolheram as latas hermeticamente fechadas e as abriram, não acreditaram no que viram, cheiraram e fumaram. Cada uma tinha quase dois quilos de maconha prensada com um gosto e uma potência desconhecidos no Brasil. A notícia se espalhou pela praia e pela noite, mas muito pouca gente acreditou: era bom demais para ser verdade. No dia seguinte, mais latas em mais praias, mais pescas miraculosas, arrastões de latas, delírio no Rio de Janeiro. As latas ganham as primeiras páginas dos jornais e o mistério começa a se esclarecer. Um navio, o Solana Star, vindo da Ásia carregado com mais de dez mil latas de “cannabis índica” prensada, de altíssimo teor de the, rumava para a Europa quando sofreu sérias avarias próximo de Angra dos Reis. Antes de abandonar o navio, a tripulação desovou no mar todo o “flagrante”. A bordo, ficou só o cozinheiro, que não sabia de nada mas mesmo assim foi preso. Mas era tarde demais: as latas continuaram a aparecer em cardumes não só nas praias cariocas, mas também no litoral de São Paulo e do Espírito Santo, em Santa Catarina e até no Rio Grande do Sul. Pescadas, compradas, divididas, multiplicadas, distribuídas, as latas derrubaram o preço do jererê no mercado porque eram muito melhores e mais baratas do que o similar nacional. Viraram um símbolode status nas rodas de surfistas e roqueiros e originaram a expressão “É
da lata!” (significando excelência), que se integrou ao vocabulário carioca.

O show de Marisa era “da lata”. Harmonia e contrast Com o governo Sarney completamente desmoralizado e a crise econômica descontrolada, a lambada enchia as pistas e os ares de vulgaridade e o rock brasileiro, rebelde sem causa, entrava em decadência. Parecia o pior, ou melhor, momento para lançar uma artista nova e sofisticada como Marisa. Mal terminaram os shows do Jazzmania, recomeçamos os ensaios, acrescentando e tirando músicas. O novo show seria dentro de dois meses, no mesmo Jazzmania, a pedidos insistentes da casa. Mesmo procurada por diversos jornais, Marisa não deu nenhuma entrevista nem tirou fotos. Para o novo show a “publicidade gilbertiana” continuaria a mesma, só uns folhetos distribuídos em bares jovens, com uma bela foto de Marisa quase de costas. Acabei não resistindo e incluí um pequeno texto: “Suaves negras melodias/ harmonias, palavras luminosas/ sons e sentimentos/ luz e blues/ tons de azuis na noite carioca/ rio sonoro, fonte, ponte, voz: “Tudo veludo”, Marisa Monte.”

Só isso. Nem um anúncio, nem um “tijolinho” nos jornais, nem uma nota, testando e confiando no boca a boca. Só a informação correta aos interessados, na seção de serviços dos jornais, junto com todos os shows em cartaz. Foram quatro noites superlotadas e críticas entusiasmadas, os jornais a chamavam de cantora eclética, Marisa deu suas primeiras entrevistas, descartando qualquer possibilidade de gravar discos e anunciando novo show dentro de um mês. Marisa era uma jovem de hábitos um pouco estranhos para sua idade: não usava jeans e nunca a vi de tênis, andava sempre de blazer, minissaia e sapatos masculinos, era vegetariana e não comia açúcar, lia Nelson Rodrigues e Fernando Pessoa. Não ia à praia, a boates, nem praticava esportes, detestava festas e badalações, gostava de ficar em casa lendo, conversando e ouvindo música e seu sonho era voltar no tempo e fazer um show no Cassino da Urca com Carmen Miranda e Grande Otelo. Era uma espécie de neo-hippie urbana, com gostos muito pessoais, ecléticos como seu repertório.

O novo show seria não mais num bar, mas em um teatro, o pequeno e alternativo Laura Alvim, em frente ao mar de Ipanema, entre o Jazzmania e o meu apartamento. Incluímos o bolero tropicalista de Caetano Veloso e Ferreira Gullar, “Onde andarás”, outra música dos Titãs, o misterioso funk “O quê”, de Arnaldo Antunes, o clássico pernambucano “Ciranda de Lia” e uma peça pop-minimalista do erudito Phillip Glass, um dos grandes nomes da “next wave” americana, “Freezing”. Apesar de não ter ar-condicionado e de fazer um calor infernal no início de janeiro, o pequeno teatro lotou seus 200 lugares para a estreia de “Cantando na praia”. Entre eles Lulu Santos e Scarlet Moon, que não aguentaram mais do que 20 minutos e saíram esbaforidos e banhados em suor, como eu teria feito, se pudesse. Mas a platéia calorosa aguentou estoicamente até o final com “Do Leme ao Pontal” e Marisa foi aplaudida de pé pelo público encharcado. O polêmico encenador Gerald Thomas, amigo de Phillip Glass, gostou do estilo pop-operístico da cantora e do repertório caótico. O cineasta Walter Salles Jr. admirou seu estilo cool e elegante. O jornalista Sérgio Augusto, encantado com o que tinha visto e ouvido, decretou na saída, com autoridade: “Habemus cantora.” E escreveu uma matéria de página inteira na Folha de S. Paulo com o título “Marisa Monte é a nova musa da música pop”, que começava: “Desde Gal Costa não surgia no cenário musical brasileiro um talento vocal tão privilegiado.”



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