Por Leonardo Davino*
Um conhecido soneto de Gregório de Matos, feito "ao braço do Menino Jesus quando apareceu", começa dizendo que "O todo sem a parte não é todo, / A parte sem o todo não é parte, / Mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo". E encerra: "Não se sabendo parte deste todo, / Um braço, que lhe acharam, sendo parte, / Nos disse as partes todas deste todo".
O persuasivo poema quer certificar ao fiel que aquele braço-parte contem o significado do Menino-todo. Anotando sobre as relíquias da Igreja Católica, no texto "O corpo, a igreja e o sagrado" (História do corpo, vol 1, p. 97-98), Jacques Gélis anota que "a fragmentação do corpo santo não perturba a consciência religiosa. Esmigalhar o corpo multiplica até os benefícios da relíquia, pois cada parcela conserva a carga sacral primitiva: aqui, a parte vale pelo todo. Portanto, nada se opõe à dispersão dos restos e até seria prejudicial privar deles os outros fiéis".
Tal artifício de montar afetivamente o todo através de partes dispersadas pode ser identificado na Arte, e em especial na teoria da literatura, naquilo que Eisenstein e Chklovski chamaram de "princípio da montagem" e "procedimento da singularização", respectivamente. O primeiro, a partir do cinema e do ideograma e, o segundo, partindo da literatura de Tolstoi.
Por sua vez, se a mitologia é o estudo dos mitos, estes resistem ao tempo naquilo que seus mitemas – unidades constitutivas do mito – tem de capacidade de adaptação e reinvenção nos encontros culturais. Ou seja, o mitema é aquilo que no mito se repete, mas se adapta. Por exemplo: Iemanjá é a rainha das águas. Esse mitema pode ser detectado nos vários mitologemas (conjuntos de narrativas míticas sobre um tema) no mito Iemanjá. Deste modo, não estaremos cometendo um erro grave se dissermos que é nas (re)montagens dos mitemas – partes no mito –, e, consequentemente, na permanente singularização deste, que está o núcleo vital do mito: a tradição que se trai para continuar tradição.
Como já me referi em outro momento, segundo Verger (1981, p. 190), "Iemanjá, cujo nome deriva de Yèyé omo ejá ("Mãe cujos filhos são peixes"), é o orixá dos Egbá, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações iorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX. Evidentemente, não lhes foi possível levar o rio, mas, em contrapartida, transportaram consigo os objetos sagrados e os suportes do àse da divindade. O rio Ògùn, que atravessa a região, tornou-se, a partir de então, a nova morada de Yemanjá".
Mais adiante, Verger anota que "Iemanjá é uma divindade muito popular no Brasil e em Cuba. (...) Diz-se na Bahia que há sete Iemanjás: Iemowô, que na África é a mulher de Oxalá; Iamassê, mãe de Xangô; Euá (Yewa), rio que na África corre paralelo ao rio Ògùn e que frequentemente é confundido com Iemanjá em certas lendas; Olossá, a lagoa africana na qual deságuam os rios. Iemanjá Ogunté, casada com Ogum Alagbedé. Iemanjá Assabá, ela é manca e está sempre fiando algodão. Iemanjá Assessu, muito voluntariosa e respeitável." (p. 191).
Segundo Lydia Cabrera (Iemanjá e Oxum, 2002, p. 37), "podemos imaginar Iemanjá emanada de Olocum, com seu poder e suas riquezas, mas sem as características tremebundas que o associam mais à morte do que à vida, como sua manifestação feminina – 'Iemanjá é muito maternal' – e benéfica". A autora também dá sete nomes, mitologemas, qualidades, avatares, caminhos (para se chegar) a Iemanjá, em Cuba: 1- Iemanjá Awoyó é a primogênita. Aquela que usa os trajes mais ricos e sete anáguas para guerrear e defender seus filhos. Ela vive distante no mar e repousa na lagoa; come carneiro e, quando sai a passeio, usa as jóias de Olokum e coroa-se com Oxumarê, o arco-íris; 2- Iemanjá Ogunte é azul-clara e vive nos arrecifes próximos à praia. É a guardiã de Olokum. É uma amazona temível e mulher de Ogum, deus da guerra; Ela é severa, rancorosa e violenta; 3- Iemanjá Maleleo ou Maylewo mora nos bosques, em um pequeno poço ou manancial. Assemelha-se à Oxum pela relação com as feiticeiras. Tímida e reservada incomoda-se quando se toca o rosto de sua iaô (filha) e retira-se da festa; 4- Iemanjá Asaba é perigosa e voluntariosa. Usa uma corrente de prata no tornozelo. Seu olhar é irresistível; 5- Iemanjá Konla ou Akura vive na espuma da ressaca da maré, envolta numa vestimenta de algas e lodo. Por ser navegante, vive nas hélices dos barcos; 6- Iemanjá Apara vive na água doce, na confluência de dois rios, onde encontra sua irmã Oxum. Gosta de dançar, é alegre e muito correta. Cuida dos doentes, prepara remédios; 7- Iemanjá Asesu é a mensageira de Olokum. Vive na água agitada e suja. Muito séria e trabalhadora. É muito lenta em atender seus fiéis, pois conta meticulosamente as penas do pato a ela sacrificado, e caso se engane na conta, começa de novo indefinidamente.
Para Antonio Risério (A utopia brasileira e os movimentos negros, 2007, p. 213): "Os brasileiros alcançaram realizar, ao longo dos séculos de sua existência histórica, a construção de um país ao mesmo tempo singular e plural, uno e caleidoscópico, tecendo a sua trama biossemiótica ao abrigo e à luz de uma língua portuguesa que se transfigurou, sincreticamente, para delimitar um novo espaço linguístico, o do português do Brasil".
Essa concepção de um signo uno e múltiplo, sincrético é muito bem exemplificado em Iemanjá (a grande mãe africana do Brasil), explicando, de viés, o motivo de, no Brasil, o orixá se identificar com Maria. "Porque o sincretismo não foi coisa de uma gente passiva, mas iniciativa de atores vitais de nossa história e de nossos processos culturais. (...) é mais correto pensá-lo no campo de forças ou no jogo semiótico das apropriações simbólicas", (Risério: 2007, p. 219).
É homenageando Iemanjá em suas sete mais conhecidas representações (mitemas) que o DVD Mães D’Água – Yèyé Omó Ejá (2010) reúne sete cantoras para interpretar canções que evocam e montam a Iemanjá una. Sendo força, energia, axé, Iemanjá é “montada” aqui em sua mitopoética pelas singularizações sutis lançadas nos filigramas entre versos, melodias e performances vocais.
É o caso de "Gandaia das ondas – Pedra e areia", de Lenine e Dudu Falcão. O sujeito da canção, tal e qual o sujeito de "O mar", de Dorival Caymmi, demonstra-se encantado com a beleza do mar que quebra na praia, inaugurando verdes novinhos em folha. "É bonito se ver na beira da praia / A gandaia das ondas que o barco balança / Batendo na areia, molhando os cocares dos coqueiros / Como guerreiros na dança", diz o sujeito.
Acompanhada pela Sinfônica Yèyé Omó Ejá, sob a regência do maestro Ângelo Rafael Fonseca, Luciana Mello faz o convite: "quem não viu vai ver / a onda do mar crescer". Para depois agregar os versos de domínio popular, da Ciranda de Lia de Itamaracá: "Eu tava na beira da praia / Ouvindo as pancadas das ondas do mar".
Importa destacar a referência a Dakar – "Rezo, paguei promessa / E fui a pé daqui até Dakar". Como sabemos, a capital do Senegal, na península do Cabo Verde, foi o maior centro de tráfico de escravos para a América, entre os séculos XVI e XIX. É nos versos de domínio público "Iemanjá, sai do mar / Vem buscar sua iaô / Ó santa de azul, ó santa do mar / Vem ver seus filhos, Iemanjá", que reconhecemos o sujeito da canção como um filho em estado de oração e de afirmação.
Foi Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral e Além do bem e do mal, quem observou que, diferente da tradição domesticadora do humano da moral judaico-cristã, no mito reside a força do herói que não se deixa abater diante do destino, da moira. Em "Gandaia das ondas" o sujeito elogia a natureza ao mesmo tempo em que pede o amparo da deusa e se afirma: "Água, mágoa do mundo / Por um segundo / Achei que estava lá".
Para Vinicius de Moraes: “O negro americano, absorvido, como o negro brasileiro, pela escravatura, é originário das mesmas regiões da África que o nosso. (...) o que houve, com relação ao negro brasileiro, é que ele pôde, em terras brasileiras – e na Bahia com especialidade, conservar a força e a autenticidade dos seus mitos. O candomblé baiano é um híbrido antes bastante puro. (...) Já o negro americano sofreu o impacto do protestantismo, e os escravos tiveram que adaptar seu ritmo aos hinos religiosos protestantes que, em última instrução, resultaram nos spirituals e souls, de onde originou a forma de blues e, posteriormente, (...) no chamado ‘hot jazz’ de King Oliver, Louis Armstrong etc”. (“O negro no samba e no jazz”, em Samba falado, 2008, p. 15).
Toda feita em partes, Iemanjá se presentifica. Mimetizada na cantora, Iemanjá se fortalece fortalecendo o ouvinte que sente aconchegado no colo e útero da grande mãe, como ele, sincretizada, desterritorializada, porém, ela, ser resultado de nossa competência brasileira à tolerância, ao amálgama.
***
Gandaia das ondas - pedra e areia
(Lenine / Dudu Falcão)
É bonito se ver na beira da praia
A gandaia das ondas que o barco balança
Batendo na areia, molhando os cocares dos coqueiros
Como guerreiros na dança
Oh, quem não viu vá ver
A onda do mar crescer
Olha que brisa é essa
Que atravessa a imensidão do mar
Rezo, paguei promessa
E fui a pé daqui até Dakar
Praia, pedra e areia
Boto e sereia
Os olhos de Iemanjá
Água, mágoa do mundo
Por um segundo
Achei que estava lá
Eu tava na beira da praia
Ouvindo as pancadas das ondas do mar
Não vá, oh, morena
Morena lá
Que no mar tem areia
Iemanjá, sai do mar
Vem buscar sua iaô
Ó santa de azul, ó santa do mar
Vem ver seus filhos, Iemanjá
Odô odô odô odô odoiá
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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