Cronista e sambista que cantou tipos populares do Rio do começo do século 20, Orestes Barbosa (1893-66) prefigurou tendências modernas da cultura brasileira, como o trânsito entre o meio letrado e o popular. Aos 120 anos de seu nascimento, dois livros inéditos prometem restituir seu lugar central nas artes do país.
Por Alvaro Costa e Silva
João do Rio morre em 1921 (dentro de um táxi, de infarto do miocárdio) e Lima Barreto sofre um colapso cardíaco em 1922, os cariocas ficamos momentaneamente sem crônica, a tradição literária de explicar, traduzir e --por que não?-- inventar uma cidade. É quando entra em cena Orestes Barbosa.
Nesta terça (7), este insuspeitado historiador do Rio --também poeta de linhagem penumbrista e parceiro de Francisco Alves, Silvio Caldas, Custódio Mesquita, Noel Rosa, Wilson Baptista, na época de ouro da música popular-- terá discreta celebração de seus 120 anos de nascimento: um bate-papo no Instituto Cravo Albin, na Urca, às 18h, com a presença do biógrafo de Orestes, o músico e pesquisador Carlos Didier.
Didier tem na agulha, prontinhos, dois livros em torno do Orestes Barbosa cronista: "Samba & Outras Crônicas", terceira edição do clássico "Samba", de 1933, acrescida de 17 textos publicados na mesma época na imprensa, e "Crônicas da Cidade do Rio de Janeiro: 1921-1927", com 61 peças pescadas em livros e jornais e agrupadas por temas: crime, malandragem, prostituição, sexo, amor, música, tipos e cárcere. Ambos estão à espera de um editor.
"O 'Samba' teve uma reedição desastrosa da Funarte em 1978: eliminaram os asteriscos que separavam as microcrônicas, e o livro perdeu seu encanto. Além de reparar o erro, escrevi 132 notas de pé de página, uma espécie de bate-bola entre o autor e seu biógrafo", diz Didier, que escreveu a biografia "Orestes Barbosa: Repórter, Cronista e Poeta" (Agir, 2005), escrita a partir de material organizado em banco de dados, com 1.263 tópicos e 8.833 registros, usado para cruzamento de informações.
Dito assim, parece um livro frio. Mas é dos mais quentes, como foi a vida do personagem e dos boêmios, sambistas, seresteiros, marginais, cafetões, viciados com quem ele conviveu nas calçadas, nos cafés, nas redações e rádios cariocas.
Orestes se orgulhava de ter vindo ao mundo na zona norte do Rio, e deixou isso estampado na abertura do seu mais famoso livro, "Bambambã" (que apresenta um insuperável glossário de gírias): "Nasceu na Aldeia Campista, às três da madrugada do dia 7 de maio de 1893". Note-se que é o mesmo território mítico --nas fronteiras das ruas Pereira Nunes, dos Artistas, Ambrosina, Possolo e poucas outras-- onde mais um grande cronista do Rio e de seus subúrbios, Nelson Rodrigues, ambientaria peças e contos da vida como ela é.
Foi menino de rua. Morou em barracos, com paredes de madeira ou taipa, cobertura de zinco, um ou dois aposentos e cozinha externa. Sem desconfiar, ali estava um tema que exploraria na sua obra-prima, a canção "Chão de Estrelas", feita em parceria com Silvio Caldas, com o verso famoso --"Tu pisavas nos astros distraída"-- que entusiasmou Manuel Bandeira e tantos mais.
Encontrou uma boa alma, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, que o desasnou e aproximou do violão. Aqui temos mais uma coincidência: Clodoaldo tornou-se o pai de Vinicius de Moraes, e Orestes anteciparia Vinicius, ao trocar, nos anos 1930, a poesia dita séria pela letra de música, o que autor de "Garota de Ipanema" só faria em meados dos anos 1950.
PRISÃO
No jornalismo, Orestes começou como revisor e logo passou a repórter de polícia, função na qual se especializou a ponto de, por duas ocasiões, ter estado preso. Daí resultando um de seus primeiros livros, "Na Prisão".
"Condenado a períodos de férias no presídio da Frei Caneca, foi ali que conquistou seu primeiro tema de impacto. Em vez de reclamar da própria situação, soube aproveitar a oportunidade: escreveu sobre os prisioneiros e a vida na prisão", conta Didier.
Cobriu o assassinato de Pinheiro Machado e o naufrágio da Barca Sétima. Entrevistou João Cândido, Dilermando de Assis e, em início de carreira, Pixinguinha, Donga, Cartola. Dividiu tiras de papel e tinteiros com Rui Barbosa e Mário Filho. Mas foi, sobretudo, como cronista da cidade que encontrou o seu estilo.
"De frases e parágrafos curtos, surgiu de modo natural por interferência da língua falada na língua escrita. O leitor sente que o cronista está batendo papo, o que é perfeito quando o assunto é uma história do dia a dia da cidade", explica o biógrafo. "Outra coisa: os parágrafos breves têm a dimensão próxima à de um verso, formato curioso mesmo levando-se em conta que Orestes era um poeta nato".
O crítico José Lino Grünewald fez a seguinte aproximação: "Concepção de texto absolutamente inédita. Faz lembrar, em várias passagens, as poesias de Oswald de Andrade". E Carlos Heitor Cony, esta, surpreendente: "Excelente cronista, criador de um estilo que lembra, até certo ponto, um Guimarães Rosa urbano, um ancestral de Guimarães Rosa, com as mesmas bossas, com alguma invenção vocabular, coisas que não existiam nos duros tempos de Coelho Neto e Humberto de Campos".
Quanto à temática, o jornalista contribuiu mostrando a cidade marginal e subterrânea, que ele preferia, e que convivia em oposição à outra, a "da avenida" (referência à avenida Central, atual Rio Branco, aberta com as reformas modernizadoras de Pereira Passos no início do século 20).
"Ele flagra a cidade no momento em que surgiu a cultura que os jovens hoje buscam reencontrar na Lapa. Aliás, uma de suas crônicas mais conhecidas descreve a cafetina Alice Cavalo de Pau, que atuava na rua Visconde de Maranguape, ali mesmo no bairro. A turma que curte os sambas de Noel Rosa, Ismael Silva, Cartola, que são criações do Estácio e redondezas, sabe que essa cultura brotou daquele meio que o Orestes fixou nas crônicas", explica Didier.
PERTENCIMENTO
Ao selecionar e apresentar a antologia "Cocaína: Literatura e Outros Companheiros de Ilusão" (Casa da Palavra, 2006), a pesquisadora Beatriz Resende agrupou Orestes Barbosa (com os textos "O Namoro na Cadeia" e "A Favela") ao lado de Álvaro Moreyra, João de Minas, Ribeiro Couto, José do Patrocínio Filho, Théo-Filho, Benjamin Costallat, Patrícia Galvão, a avançada Chrysanthème (pseudônimo da jornalista Cecília Bandeira de Melo Rebelo de Vasconcelos), ou seja, a geração pré-modernista, desvinculada da Semana da Arte de 1922.
"Orestes tem o mérito de levar para o espaço das crônicas a vida das favelas e das prisões", avalia Beatriz. "Creio que o olhar dele sobre essa parte da vida de excluídos da grande cidade é, sobretudo, de dentro. Mais do que João do Rio, um observador importante, Orestes Barbosa fala com mais pertencimento."
Orestes Barbosa e Benjamin Costallat colaboravam na incrível "A Banana", revista de humor e erotismo fundada em 1923 por Théo-Filho. Naquele mesmo ano, Costallat conquistou fama de escritor de escândalo ao publicar "Mademoiselle Cinema". Três meses depois, Orestes seguiu os passos do colega, ao escrever seu primeiro e único romance, "A Fêmea".
É um banquete apimentado, reunindo episódios em que um industrial frequenta a mulher de um empregado de confiança; um político moralista, após apaixonar-se pelo cunhado, conquista namorados na praça Tiradentes; uma madame é amante de "milionários e cachorros de linguinha afiada". Um dos relatos descreve uma cerimônia de casamento na qual há três defloramentos, menos o da noiva.
Um personagem aparece com o nome real e como frequentador de prostíbulos: Julio César de Mello e Souza, mais tarde famoso como Malba Tahan, autor de "O Homem que Calculava". Orestes quase apanhou dele e, para fazer uma segunda impressão, pois a primeira se esgotara em três dias, teve de retirar o capítulo em que o professor fazia das suas. Desde então, o livro não voltou a circular.
Quem não dava um doce para conhecer "A Fêmea"?
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