terça-feira, 9 de agosto de 2016

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*






O sujeito da canção é aquele que, em teoria da poesia, ainda chamamos de eu-lírico, uma categoria complexa que, em síntese, é a voz que fala de dentro do poema a "mensagem" do poema. É a voz insuspeita que diz "eu navegava canções", por exemplo, na canção de Tom Zé; ou "minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá", no poema de Gonçalves Dias. É o eu-lírico que fala o verso, distinguido, mas ligado por sutis relações autoficcionais, com o autor da obra.

Diverso, mas engendrado também ao sujeito da canção, o sujeito cancional é aquele que é quando a canção está em execução. É quando o ouvinte escuta Tom Zé cantando o verso acima citado que o sujeito cancional é localizado. Mas, principalmente, é quando o ouvinte coincide seu estado de espírito com aquilo que o sujeito da canção diz - está dizendo - que o sujeito cancional se apresenta em sua totalidade estética à apreciação.

O sujeito cancional brinca entre a carência e a saturação das experiências e vivências tanto do cancionista emissor vocal da canção, quanto do ouvinte. É o sujeito cancional quem, no indivíduo adulto, transforma a angustia em sono e sonho, como as canções de ninar maternas fizeram na infância.

Talismã contra a desventura, o sujeito cancional, claro está, é utópico e irrenunciável. Se embalar e cuidar de alguém exige tempos longos, maternais, no tempo contemporâneo veloz, o sujeito cancional toca exatamente na necessidade de laços de afeto. Coincididos, sujeito e indivíduo se embalam, sutilizam a dor, freiam o novo sempre igual do cotidiano sem futuro.

Voz mediatizada vinda do turbilhão moderno, o sujeito cancional breca os estímulos, fluxos e intensidades do mundo moderno porque "cuida" do indivíduo. Ou melhor, estimula o indivíduo ao cuidado de si, que é transformador, porque não recusa o passado, ao contrário, lembra ao indivíduo que este não está solto do saber viver do passado. O sujeito cancional não busca a inovação, nem entra no jogo da monotonia que se alimenta do novo, como nos alerta Walter Benjamin.

Do lugar da experiência estética, o sujeito cancional instiga a formação do ouvinte, posto que convida este à contemplação. Ele sabe que a pressa aniquila o conhecimento, mas faz dela uma aliada, quando pode ser posto à disposição do ouvinte nos fones de ouvido, em qualquer lugar. Ele faz da recepção distraída uma cúmplice no engenho de transmitir a sua experiência de sujeito estético, valorizando o presente do ouvinte.

O sujeito cancional reconhece a incompetência da realidade. É dela que ele se alimenta. Ele afronta o tédio ideológico das classes tidas como superiores e o cansaço de existir das classes desabonadas de bens de consumo. O sujeito cancional, quando engendrado no ouvinte, recupera o esmero do artesão. Ele faz com que uma mensagem dada ao coletivo possa ser digerida nietzscheanamente por cada indivíduo.

O sujeito cancional respeita a individualidade e imprime a originalidade de ser do ouvinte. Por isso cada audição de uma "mesma" canção é sempre uma repetição em diferença, pois vai depender do estado de espírito do ouvinte o exercício espiritual que o sujeito cancional promoverá.

O sujeito cancional criado por Tom Zé em "Navegador de canções" (Tropicália lixo lógico, 2012) não é o expert que, treinado, mas sem conhecimento, dá conselhos sem experiências. Ele é o intelectual que, carregado de traços mnemônicos, defende uma tese: “Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!” (Tom Zé, revistaBravo! 179, jul/2012).

O sujeito cancional é o narrador: ponte entre passado e presente, apontando o pensar do esquecimento das diferenças. Pensar no presente é sempre rememorar e mirar no futuro. Nem as trevas da ignorância, nem as luzes da verdade. Utópico, o sujeito cancional mostra que sem utopia estamos condenados à irrelevância.

Ao cantar os versos "Longe, sozinho, / Ventos marinhos, / Eu navegava canções", acompanhado por uma melodia montada essencialmente por instrumentos de cordas (violão, violino, cello, rabeca) cujo conjunto lembra os provençais, o mítico cantador nordestino, Tom Zé rejeita o desaparecimento do passado e convida o ouvinte a com ele navegar na trama melódica. Isso sem contar a recuperação da presença do coro - muitas vozes - em momentos pontuais da canção.

O sujeito da canção "Navegador de canções", narrando sua experiência, abre o leque das possibilidades sonoras e vocais que compõem a brasilidade, algo que Tom Zé reconhece disparado na Tropicália: ápice estético da valoração da mistura, do resgate das culturais orais.

Ao ritmo da gavota (dança francesa) e do fado, o sujeito da canção narra sua dança particular, porque coletiva-Brasil, entre os bordões (palavras e cordas de instrumentos) que alimentam as canções nossas de cada dia. O narrador-cancionista afirma que canta, que chegou "ao porto dos bordões, / onde botam ovos as canções" ao navegar, ao se permitir correr o risco de se deixar ser afetado por diversos extratos sonoros.

Condenado à civilização ocidental e à liberdade da utopia tropical, o sujeito da canção de Tom Zé ancora no ninho, no centro, no núcleo duro da questão: berçário dos analfatóteles (analfabetos em Aristóteles) "onde botam ovos as canções". Ele descobre na confiança na dança "das cardeais direções" o seu lugar de cancionista brasileiro não comportado: tropicalista. 


***

Navegador de canções
(Tom Zé)

Longe, sozinho,
Ventos marinhos,
Eu navegava canções,

Ia na dança,
Na confiança,
Das cardeais direções.
Eu navegava canções.

O fado ministrava meu noivado
Com duetos, minuetos,
Corais, corais.
Uma gavota me guiou
Ao porto dos bordões,
Onde botam ovos as canções.
Canções, canções.

Ô ô canção



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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