segunda-feira, 8 de agosto de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Tim Maia estourou no Brasil inteiro com “Primavera” e o dueto com Elis fez dele a nova sensação no meio musical. Começou a gravar o seu primeiro Lp e, como produtor das trilhas sonoras das novelas da Globo, procurei-o no estúdio para ver o que ele tinha. Uma delas, a romântica “Azul da cor do mar”, servia para qualquer novela, era o sonho de um produtor: um “tema de amor” perfeito para qualquer casal, com tudo para ser um grande sucesso, como foi. Outra novela, “Verão vermelho”, era passada na Bahia e precisava de um tema nordestino. Tim tinha uma música muito boa, um baião-soul, que já tinha uma letra que falava de coisas muito diferentes da novela. Não foi difícil convencê-lo a fazer outros versos, no espírito de “Verão vermelho”. No dia seguinte, ele apareceu com “Padre Cícero”, a velha música com uma nova letra. E gravou-a espetacularmente, unindo a Motown ao sertão, misturando James Brown com Luiz Gonzaga, inventando um novo gênero. No final da música, entre gritos e improvisos, ele berrava, cheio de suingue: “Father Cícer! Fa-ther Cí-cer! Father Cícer!” Foi um dos grandes sucessos da novela. Assim como o seu primeiro Lp, que se tornou um dos mais tocados, vendidos e elogiados do ano. Roqueiros e emepebistas,
baianos e sambistas tinham que aturar: o homem era um monstro, público e crítica concordavam.

Ninguém cantava melhor do que ele ou tinha aquela voz e aquele suingue, poucos tinham como ele a capacidade de montar todo um arranjo de orquestra, com riffs de metais e quebradas de ritmo, sem saber uma nota de música, dizendo “de boca” o que o maestro tinha que escrever. Poucas fusões musicais foram tão naturais e eficientes como a sua Motown do sertão, poucos tinham como ele a capacidade de fazer dançar e de inspirar romances. Entre outros talentos, Tim parecia saber os segredos do sucesso, como agradar à alma popular, como fazer uma música brasileira internacional, unindo o seu fraseado e seus arranjos muito sofisticados a suas músicas e letras muito populares. Tim foi a Londres e se esbaldou. Fumou, cheirou, bebeu, viajou de ácido, ouviu música, brigou com a mulher — tudo muito — e voltou para o Brasil com 200 doses de LSD para distribuir aos amigos. Assim que chegou foi à Philips, que ele chamava de “Flips”, onde visitou diversos departamentos, começando pelos que considerava mais caretas, como a contabilidade e o jurídico, onde cumprimentava o titular e repetia o mesmo discurso, com voz pausada e amistosa: “Isto aqui é um LSD, que vai abrir sua cabeça, melhorar a sua vida, fazer de você uma pessoa feliz. É muito simples: não tem contra-indicações, não provoca dependência e só faz bem. Toma-se assim.”

Jogava um ácido na boca e deixava um outro na mesa do funcionário atônito. Como era um dos maiores vendedores de discos da companhia, todo mundo achou graça. No departamento de produção e de imprensa, os presentes fizeram sucesso. Até André Midani, o presidente da companhia, recebeu o seu. E Tim voltou para casa viajandão, dirigindo seu jipe e certo de que tinha salvado a alma da “Flips”. Depois de oito anos nos Estados Unidos e no México, João Gilberto voltou ao Rio de Janeiro, contratado por Ricardo Amaral para fazer um show numa cervejaria recém-inaugurada em Botafogo, o Canecão. E daria, pela primeira vez na vida, uma entrevista para a televisão. Como repórter da TV Globo e com o melhor cinegrafista da casa, Roberto Padula, cheguei à cobertura de Amaral, no Leblon, no meio da tarde. João já estava lá, animado e sorridente, feliz em reencontrar a beleza do Rio. No terraço, na linda luz da tarde carioca, conversamos por dez minutos diante da câmera de Padula e dos sorrisos de Amaral. Sobre música, naturalmente. João respondia com simpatia, mas com pouco mais que monossílabos, mas não importava: era o suficiente para mostrar ao Brasil que o mito falava. Com o coração aos pulos, voltei correndo para a TV Globo para revelar e editar o material na moviola, a tempo de entrar no “Jornal nacional”. Roendo as unhas, esperei na porta do laboratório, ansioso para ver o filme ainda úmido da revelação. Quando o laboratorista me entregou a lata e disse pesaroso que, por um defeito na câmera, o material estava inutilizado, pensei que era brincadeira. Mas era verdade: no filme inteiro não havia nenhuma imagem impressa e nenhum som gravado.

João se divertiu muito quando lhe contei a história e, no dia seguinte, passou a tarde e a noite no Canecão, testando o som. A cervejaria era pouco mais que um galpão de concreto e zinco, com péssima acústica e um sistema de som precário que reverberava por toda a casa. De madrugada, João desistiu. Cancelou o show e voou de volta para Nova York. O trabalho com Elis na produção do disco, surpreendentemente, transcorreu na mais absoluta paz e harmonia. E mais: ela se entregou com entusiasmo e confiança, com prazer e alegria. Em nenhum momento, nenhuma vez, respondeu a qualquer sugestão com rispidez, com palavrões e gritos — como era seu estilo com Ronaldo e com quase todo mundo com quem trabalhava. Aceitava muitas idéias, recusava outras, com delicadeza e tranquilidade. Perguntava muito, queria saber as novidades, o que estavam fazendo os jovens americanos e ingleses, o que havia de novo no Brasil. Desde o primeiro momento deixei claro que meu objetivo não era dirigi-la mas ajudá-la a escolher o que fosse melhor para ela, naquele momento, oferecer-lhe opções e alternativas. Ela queria mudar, precisava mudar, mas não faria — como nunca fez — uma mudança radical, mas um avanço calculado, um disco de transição. Com sambas de Baden Powell e Jorge Ben, como sempre, e com Roberto, Erasmo, Gil, Caetano e Tim Maia como novidade.

Deu certo: o samba de Baden estourou nas rádios populares e as novidades reaproximaram Elis do público mais jovem e inquieto — que começava a migrar em massa para Gal Costa, a nova musa do underground, com uma postura roqueira e sensual, cantando um repertório mais jovem e audacioso. Com Gil e Caetano no exílio, era Gal quem carregava a chama do tropicalismo. Começava-se até a discutir quem era melhor, mas decididamente Gal era considerada mais moderna do que Elis. Elis tinha 24 anos, uma exuberância e uma potência vocais, um estilo explosivo de cantar para fora muito mais adequados aos rocks e blues e às outras modernidades que Gal cantava, com sua voz suave e intimista, sua origem gilbertiana, suas sutilezas minimalistas. Mas era Gal quem gritava, quem botava para fora, quem cantava mais alto para os ouvidos mais jovens. Elis estava preocupada. Uma tarde na Philips encontrei Ivan Lins, perguntei as novidades, ele sentou ao piano e tocou um samba sensacional, balançado e percussivo. Gravei e levei correndo para Elis, que imediatamente percebeu o tamanho da encrenca, chamamos os músicos e marcamos o estúdio. Lançado em compacto, “Madalena” foi um dos maiores sucessos populares do ano, um dos maiores de sua carreira. Elis se sentia jovem e moderna, podia — e queria — ir adiante. Ronaldo não estava gostando muito das mudanças, fazia piadas com a ânsia de modernidade de Elis, mas o sucesso dos discos contrariava seus argumentos. 

Quando os advogados da Philips mandaram aquela música para a aprovação da Censura Federal, mesmo se tivessem tomado os ácidos de Tim, não tinham a menor expectativa de liberação. Mas o censor cochilou, ou era muito burro, ou não notou que a música era de Chico Buarque. E “Apesar de você” foi liberada e gravada imediatamente. Assim que as rádios começaram a tocar, tornou-se um sucesso instantâneo, o disco começou a vender como A banda. Ninguém acreditava no que ouvia: um samba extrovertido, guerreiro, alegre, dizendo o que tanta gente queria dizer e ouvir: era um recado à ditadura, corajoso, abusado, contundente, num grande samba que lavou a nossa alma: “Apesar de você amanhã há de ser outro dia e eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia, como vai proibir quando o galo insistir em cantar... ... você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada nesse meu penar.” Em poucos dias o Brasil inteiro estava cantando “Apesar de você”, como um hino da resistência, como um desafio e uma esperança, a primeira que experimentávamos desde 1969. Mas a alegria durou pouco: os militares não eram burros como o censor e logo perceberam o tamanho da encrenca e tomaram providências: a música foi sumariamente interditada e os discos confiscados. Mas já era tarde: mais de 100 mil discos já tinham sido vendidos e mesmo que a música não tocasse mais no rádio todo mundo já tinha aprendido e cantava, cada vez mais, com mais força, em qualquer lugar, a qualquer pretexto.



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