Ciro Monteiro, o Sr. Samba
O cantor Luís Barbosa foi o responsável pelo fato de Ciro Monteiro estrear no rádio no Programa do Casé. Abandonando a dupla que formava com Caboclinho, Luís abriu espaço para Ciro, sobrinho de Romualdo Peixoto, o Nonô, pianista que criou escola na música popular brasileira.
Ciro, extraordinário intérprete de samba, após também formar dupla com Sílvio Caldas – não esqueçam o grande sucesso das parcerias –, apresentou-se ao final da década de 1930 ao lado do cantor Dilermando Pinheiro. Pela magreza e irreverência dos dois, a dupla ficou conhecida como 11. Décadas depois, em 1960, Dilermando e Ciro reeditaram a parceria em show no Teatro Opinião. Só que agora a chamaram de dupla 10, visto que Ciro estava redondinho...
Diga-se de passagem, o estilo malandro e bem-humorado de Dilermando Pinheiro encaixou-se como uma luva ao de Ciro. O maior êxito de Dilermando foi o samba “Seu Libório”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, gravado anteriormente por Luís Barbosa e pelo fulgurante cantor paulista Vassourinha.
Enquanto Dilermando batucava no chapéu com sua palheta, Ciro batucava em sua caixa de fósforos para marcar o ritmo, influência expressa, em ambos os casos, do sambista Luís Barbosa.
Ciro obteve seu primeiro sucesso com o samba “Se acaso você chegasse”, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, composto na calçada do Café Colombo, na Porto Alegre dos anos 1930. Lançado em 1937, o samba projetou-o no mercado nacional.
Também conhecido como Formigão, apelido dado pelo compositor Frazão pelo fato de ser ele muito magro, Ciro compôs com Dias da Cruz o seu maior êxito: “Madame Fulano de Tal”. Na década de 1940, como intérprete, lançou um sucesso atrás do outro. Cantava Ary (“Os quindins de Iaiá”), Denis Brean (“Boogie-woogie na favela”), Pedro Caetano (“O que se leva desta vida”)... Mas foi na tabelinha com o compositor mangueirense Geraldo Pereira, seu Coqueiro Preto, como carinhosamente gostava de chamá-lo, que descobriu a mina do samba sincopado: “Quando ela samba”, “Falsa baiana”, “Até quarta-feira”, “Você está sumindo”, “Voltei”, “Mas era tarde”.
Espirituoso, contador de histórias, Ciro é “um abraço em toda a humanidade”, como disse certa vez o poeta Vinicius de Moraes. Era tido quase unanimemente como boa-praça e companheiro. Sua picardia era tanta que, poucas horas antes de morrer, os médicos fizeram um teste de lucidez em uma alma que oscilava entre a realidade e o coma. Perguntaram-lhe qual era o seu nome, e Ciro, com sorriso sarcástico, respondeu: “Roberto Carlos!” Foi sua última graça.
Rei do Rádio
O poder do rádio era tão grande que formou uma corte de reis e rainhas adorados pelo povo. Para premiar os cantores foi instituído o título de Rei do Rádio, entregue àquele que obtivesse mais votação dos ouvintes. As pessoas desejavam saber tudo sobre seus ídolos, queriam tocar os donos das vozes que embalavam seus devaneios, compravam revistas especializadas sobre os bastidores da vida dos astros e organizavam fã-clubes. O primeiro cantor a aproveitar o avassalador poder do rádio para chegar às massas utilizando um acurado planejamento de marketing, nos moldes americanos, foi Cauby Peixoto. Até hoje identificado com a música “Conceição”, Cauby vestia-se de maneira extravagante para a época, fazia trinados e versos inexistentes em suas canções e tinha uma equipe de produção que contratava moças para desmaiar e rasgar suas roupas durante suas apresentações. Na segunda metade da década de 1950, foi considerado o cantor mais popular do Brasil, com uma penca de fã-clubes pelo país.
Flamenguista roxo como Ary Barroso (costumava cantar baixinho o “Bonde de São Januário”, modificando a letra: “O bonde de São Januário/ leva um português otário/ pra ver o Vasco apanhar”), recebeu um troco bem-humorado do tricolor Chico Buarque. Quando nasceu a filha de Chico, Sílvia Buarque, Ciro foi visitá-la e levou de presente... uma camisa do Flamengo! Diante de tamanha cara-de-pau, só restou a Chico responder com a melhor arma de que dispunha: a música. Compôs então “Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de neném”, que, sarcástica, é a cara de Ciro. Ela brinca com o presente do amigo – “um pano rubro-negro é presente de grego” – e com os infortúnios “temporários” de Flamengo e Fluminense – “nós separados nas arquibancadas temos sido tão chegados na desolação”. O “amigo velho”, como o chama Chico na música, deixou uma legião de admiradores dentro e fora dos estúdios.
Que era farta de cantores!
A novidade da radiodifusão criou uma relação privilegiada entre artista e público.
Pela primeira vez na história, a arte do canto tinha uma massa crescente de ouvintes. Na verdade, grande parte dos cantores apareceu para o público através dos programas de calouros que agitaram a vida artística do rádio de 1930 até meados da década de 1950.
Só para o leitor ter uma ideia, saíram dos programas de calouros os cantores Risadinha e Alzirinha Camargo, em São Paulo, e Jorge Veiga, Ângela Maria, Jamelão, Carmélia Alves, Luiz Gonzaga, Ivon Curi, Cauby Peixoto, Dóris Monteiro, Lúcio Alves, Claudete Soares e outras dezenas de artistas, no Rio de Janeiro.
Muitos foram os jovens que se apresentavam nos programas sonhando ser famosos cantores de rádio, cortejados e admirados por fãs. Para eles, geralmente advindos das camadas mais simples da sociedade, mal-remunerados, representantes de um país com grandes disparidades sociais, ser cantor de rádio representava, sobretudo, ascensão social. Poucos conseguiram um espaço no competitivo mercado. Pouquíssimos se tornaram ícones da voz.
Os cantores biografados anteriormente são considerados pela crítica especializada o que podemos chamar de continentes da música popular brasileira. Mas devemos ter sempre o cuidado, como há muito apontou o crítico marxista Georg Lukács, de ressaltar que no universo da arte e da cultura é impossível fugir ao discutível “critério de gosto”.
A onipresença desses cantores na Era do Rádio ofuscou a participação de outros intérpretes do nosso cancioneiro. É como se as vozes de Francisco Alves, Mário Reis, Orlando Silva, Sílvio Caldas e Ciro Monteiro equacionassem a síncope, a bossa e a malandragem do samba urbano. Seus peculiares e diversificados estilos moldaram toda uma era.
Para os demais cantores do período áureo do rádio, ficou a certeza de que também construíram um dos momentos mais produtivos da história musical brasileira.
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