lançado recentemente, “Cada qual com seu espanto” é a primeira parceria fonográfica entre Raul Boeira e sua esposa Márcia Barbosa, atestando que a sintonia entre ambos paira para além da vida afetiva
Por Bruno Negromonte
Hoje retomo a abordagem do bem sucedido álbum "Cada qual com seu espanto", lançado recentemente pelo cantor e compositor Raul Boeira em parceria com a sua esposa, a professora-pesquisadora de letras na Universidade de Passo Fundo Márcia Barbosa. Segundo álbum da carreira de Boeira, "Cada qual com seu espanto" chega ao mercado fonográfico após oito anos do lançamento do primeiro disco e vem, assim como "Volume Um", recebendo os mais distintos e e sinceros elogios tanto da crítica especializada quanto do público. Composto por treze faixas o disco apresenta letras substanciadas pelos mais distintos temas, sentimentos e sensações e, a exemplo do seu álbum de estreia, "Cada qual com seu espanto" foi novamente gravado no Rio de Janeiro sob a direção musical do Dudu Trentin e conta com a presença de alguns dos maiores instrumentistas da música popular brasileira como foi possível atestar recentemente aqui mesmo no Musicaria Brasil a partir da pauta publicada sob o título "NO ESPANTOSO TEMPO EM QUE A DEBILIDADE SUPERA A QUALIDADE NA MPB, RAUL BOEIRA REITERA O SEU TALENTO". Hoje, novamente o casal tem seus nomes em evidencia aqui em nosso espaço a partir desta entrevista generosamente concedida. Um bate-papo informal onde Raul nos fala sobre suas reminiscências musicais, características de destaque em relação ao primeiro disco e sobre as suas primeiras composições. Já Márcia nos diz se houve algum tipo de apreensão ao incursionar pelo campo da composição, nos diz quais nomes tornaram-se suas maiores influências na hora de escrever as letras para o disco e se o fato de ter atuado como compositora a fez "tomar gosto" pela coisa. Essas e outras curiosidades estão relatadas logo abaixo neste gostoso e exclusivo bate-papo. Excelente leitura a todos!
Raul, em nossa primeira conversa não tive a oportunidade de questionar a respeito de suas reminiscências musicais. Gostaria de aproveitar esse nosso reencontro aqui no Musicaria Brasil para saber como e quando você se deparou com a música.
Raul Boeira - Eu nasci em 1956, em Porto Alegre. Meu pai era acordeonista (gaiteiro, como se diz aqui no sul), bem como alguns de seus irmãos, todos amadores. Nos encontros de família sempre havia cantorias e dança. Em casa, o rádio tocava o dia inteiro. Depois, na metade dos anos sessenta, a TV mostrava todos aqueles programas, Jovem Guarda, O Fino da Bossa, os festivais da Record, Simonal, Os Incríveis, Chacrinha, os programas de Flávio Cavalcanti, Som Livre Exportação, Dean Martin Show, os cartoons dos Beatles, os Concertos para a Juventude. Eu tinha uns doze, treze anos e tudo aquilo já me interessava. Aos quinze, comecei a trabalhar como auxiliar de escritório, e, com o primeiro salário, comprei um violão usado. Com dois amigos, Ico e Marcus, aprendi a tocar Beatles, Santana, Stones, essas coisas. Mas eu já trazia dentro da minha mente toda aquela música que ouvira antes de chegar ao instrumento: a bossa, tropicália, música orquestrada americana, os concertos, a soul music, que começava a chegar ao Brasil... E com aqueles acordes mais simples do rock não era possível tocar uma música mais elaborada, com balanço. Aos dezessete já estava tirando músicas de Caetano, Chico, Jobim. Havia, enfim, encontrado a minha praia.
Apesar de não viver da música, o Raul traz uma bagagem de quase quatro décadas dedicadas à composição. Houve algum tipo de apreensão de sua parte ao incursionar por um terreno que você até então não conhecia (apesar de tão familiarizada com as letras)?
Márcia Barbosa - Não. Em nenhum momento, eu fiquei apreensiva, porque a nossa vida em comum tem sido marcada por várias sessões de audição comentada de música e de leitura compartilhada de poesia. Então, fomos aprendendo um com o outro, e a nossa parceria foi sendo construída gradativamente. Assim, o momento em que eu comecei a fazer letras para as melodias compostas pelo Raul não foi, exatamente, um ponto de partida, e sim um instante de chegada ou o resultado – quase que natural, eu diria – de um longo processo. Além disso, o fato de termos começado essa parceria apenas pelo prazer de compor, sem prazos ou metas, me deu muita liberdade. A ideia do CD surgiu só quando tínhamos todas as canções prontas.
E as primeiras composições? Em que circunstâncias surgiram?
Raul Boeira - Em 1974, a família se mudou para Passo Fundo, uma cidade de porte médio no interior do Rio Grande do Sul. Logo ao chegar, fiquei amigo de uma rapaziada que tocava em conjuntos de baile, mas na hora da folga queria mesmo era tocar MPB. Nessa época, eu já estava comprando discos de jazz, Hermeto, Gismonti, Joe Pass... e mostrava a eles, que passaram a estudar com os raros métodos americanos que se conseguia (Berklee School, Joe Pass Method...) e partiram para música instrumental contemporânea. Rapidamente se transformaram em ótimos instrumentistas e ganharam o mundo: Alegre Corrêa, Ronaldo Saggiorato, Dudu Trentin, Guinha Ramires... Eu trabalhava e estudava, e não tinha como me dedicar a ponto de alcançar o mesmo nível técnico. Pensei: eu nunca vou tocar tão bem como esses caras; meu negócio é ficar em casa e fazer as minhas canções.
A literatura sempre teve uma convivência harmoniosa com a música de qualidade. Cito como exemplo nomes como Maiakovski e Carlos Drummond de Andrade que ganharam versões feitas por compositores como Caetano Veloso, João Bosco e Paulo Diniz. O seu interesse pela música se deu a partir desta realidade?
Márcia Barbosa - Sim e não. A música e a literatura surgiram na minha vida simultaneamente, e muito cedo, bem antes de eu aprender a ler. Meu pai, hoje com 83 anos, sempre foi um leitor, gostava de contar histórias e dizer poemas que guardava na memória ou lia em voz alta. Ao mesmo tempo, sempre foi um amante da música. Eu ouvia os sonetos de Camões (que ele ainda sabe de cor) e, também, Piazzolla, Gilberto Gil, Caetano, Chico Buarque, João Bosco, Villa Lobos e os eruditos. Então, a minha convivência com a música e com a literatura vem daí. Na infância e nos anos que se seguiram, o meu interesse pela literatura me aproximava cada vez mais da música e vice-versa, a ponto de eu ter me tornado professora universitária e ter me concentrado, como pesquisadora, no estudo da poesia lírica, um gênero que se caracteriza pela musicalidade.
Tolstói disse “se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”. E esse aspecto, por vezes, evidencia-se em seu trabalho, mesmo havendo uma grande abrangência rítmica em suas produções. Esse aspecto é algo que você busca evidenciar em suas letras ou geralmente é algo que surge no decorrer da composição de modo espontâneo?
Raul Boeira - Talvez Tolstói tenha razão. Mas, para mim, as questões são: o que é uma aldeia? Qual é, afinal, a minha aldeia? É possível, hoje, se delimitar alguma aldeia? Uma aldeia é apenas um território? Eu penso em português, falo em português. Aprendi a tocar e a compor ouvindo Gil, Joyce, Ivan Lins... Eu sou um compositor de música popular brasileira, antes de qualquer coisa. Não sei tocar os ritmos gaúchos, não tenho intimidade com o vocabulário ou com as temáticas. Algumas menções ou expressões, como por exemplo, mate, pago, mundo veio (velho), negrinho do pastoreio, são espontâneas, estão na letra porque cabem na cena que a canção ilustra. Mas há, neste novo disco, duas canções que dizem respeito a questões de ordem cultural, de certo modo polêmicas, localizadas, que estão em discussão há algum tempo no nosso estado. São elas: “Complexo de Épico II” e “Funk a contrapelo”. Nesses dois casos, claro que as canções são fruto de reflexão e posicionamento. A primeira, que, ritmicamente, remete a uma quase milonga, propõe o abandono da visão idealizada (épica) do passado do RS. E é muito interessante o papel do arranjo; ele complementa o texto ao criar uma sonoridade marcial (clarins e tambores), mas sempre atravessada pelo tom melancólico que relativiza e questiona a versão grandiosa dos fatos. A segunda é um funk dançante que contraria uma ideia existente no RS: a de que um certo determinismo geográfico pode ser transferido para o âmbito cultural, a fim de justificar uma espécie de separatismo/isolamento da música feita aqui no sul em relação à MPB.
A primeira faixa de “Cada qual com seu espanto” é uma explícita homenagem ao seu pai, que segundo a letra relata, foi o responsável por leva-la ao universo literário. Neste contexto literário quais tornaram-se as suas maiores influências na hora de escrever as letras para o disco?
Márcia Barbosa - O diálogo com textos literários, que perpassa as letras do disco, não foi planejado; foi aparecendo à medida que eu escrevia, como se as expressões, os versos, as ideias ou imagens tomados emprestados dos autores fossem solicitados pela própria melodia e estivessem ali, à espera de uma recriação, graças à intimidade que fui adquirindo com a literatura e ao repertório que fui construindo, sem perceber, ao longo de muitos anos. Bem, mas os autores que se manifestaram na criação das letras foram, entre outros: Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, Cyro Martins.
“Volume Um”, seu álbum de estreia, você o definiu como “hora da verdade”; Agora, oito anos após esse lançamento, você volta ao mercado fonográfico com “Cada qual com seu espanto”. A expectativa para este segundo lançamento se deu na mesma proporção do primeiro?
Raul Boeira - A minha primeira canção é de 1977. Trinta anos depois, decidi produzir o “Volume Um”, como uma espécie de inventário. Ao definir o repertório, na triagem, consegui eleger as doze que foram para o disco e que considero de um bom nível. Mas, no fundo, percebi que a obra deixava a desejar, especialmente no quesito letra. Fiquei um tanto decepcionado e decidi dar um tempo. Em setembro de 2014, Márcia ouviu umas gravações caseiras que continham muitas composições com melodias perfeitamente acabadas mas sem letras, e propôs que começássemos a escrever por pura diversão. A brincadeira deu tão certo que, em dois meses e meio tínhamos dezessete canções muito boas. Só aí é que passamos a pensar em fazer um disco.
Quando você decidiu começar a compor houve algum tipo de critério adotado para a elaboração das letras?
Márcia Barbosa - Eu escrevi letras para melodias prontas, o que deixou claro para mim, desde o início, que fazer uma letra e fazer um poema (algo a que eu estava acostumada) são processos completamente diferentes. O primeiro critério foi: a melodia e o ritmo é que sugerem as temáticas possíveis, ao instaurarem um clima, uma atmosfera, um sentimento. O segundo critério foi: o número de versos, o tipo de estrofe e a métrica estabelecem alguns limites (o meu conhecimento prévio desses elementos nos estudos de literatura facilitaram as coisas), determinando o que “cabe” no espaço daquela canção. O terceiro critério foi: as palavras e frases precisam soar bem (algumas, ainda que digam o que desejamos, são eliminadas porque não soam bem), o que me levou a decorar a melodia e criar os versos cantando (em voz alta ou mentalmente). Depois disso, cada letra era “testada” pelo Raul, que cantava acompanhado do violão. Nesse momento, nós víamos se o casamento entre a palavra e a música havia se realizado plenamente ou se havia necessidade de modificar alguma passagem, substituir alguma palavra.
Quais as características que você destacaria deste lançamento em relação ao primeiro disco além de sua parceria com a Márcia Barbosa?
Raul Boeira - No “Volume Um”, há canções feitas durante um período de trinta anos. E o disco foi gravado no decorrer de um ano, com músicos diferentes em cada faixa. Em “Cada qual com seu espanto”, as canções foram feitas em dois meses e as gravações se deram em três semanas. Além disso, gravamos com uma banda só, e alguns convidados. Esses fatores garantiram que o novo trabalho ganhasse em unidade. Esse disco acendeu em nós o desejo de continuarmos fazendo música e, quem sabe, outros discos.
Acho que a pergunta que não quer calar a muitos é a seguinte: Você tomou gosto pela composição? Podemos esperar outras investidas suas nessa área?
Márcia Barbosa - Eu gostei muito de fazer letras e não pretendo parar por aqui. Não apenas o processo individual foi prazeroso, mas também o “trabalho” a dois. Esse processo foi muito interessante e enriquecedor nas letras que fizemos em parceria e nas conversas que tivemos nas diversas etapas da composição: a escolha e a abordagem do tema, a consciência dos limites estabelecidos pela música, os ajustes.
Maiores Informações:
Facebook (Página Oficial) - https://www.facebook.com/raulboeiramarciabarbosa/?fref=ts
Serviço:
Cada qual com seu espanto (Raul e Márcia Barbosa)
Preço: R$ 30,00 (Pode ser solicitado pelo facebook ou pelo email raulboeira@gmail.com)
Para aqueles residentes fora de Passo Fundo (RS) o álbum pode ser enviado pelos Correios sendo acrescido ao valor do produto R$ 4,90 (valor da postagem de 1 cd por carta registrada - registro módico). O pagamento pode ser feito mediante depósito ou TED em conta corrente do BB ou do Banrisul.
0 comentários:
Postar um comentário