segunda-feira, 19 de setembro de 2016
NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*
Na primeira parte, toda em inglês, Raul Seixas cantava rock, na segunda virava baião, e era tudo a mesma coisa: “Let me sing, let me sing, let me sing my blues and go. Tenho quarenta e oito quilos certos \ quarenta e oito quilos de baião não vou cantar como a cigarra canta mas desse meu canto eu não abro mão: Let me sing, let me sing...” Raul era baiano, mas fazia questão de dizer que não era nem dos novos nem dos velhos — no caso, Caetano e Gil, que tinham 30 anos. Fundador e carteira número um do Elvis Presley Fã-Clube de Salvador,
Raul detestava João Gilberto e achava uma chatice o que faziam Gil e Caetano. Claro: ele era o líder e crooner da banda Raulzito e os Panteras, que animava os bailes jovens de Salvador no fim dos anos 60. Mas a Bahia não era muito roqueira e ele veio para o Rio e começou a fazer músicas e a produzir discos de estrelas da jovem guarda como Jerry Adriani e Renato e seus Blue Caps na CBS. Sempre como “Raulzito”. Só virou Raul Seixas no Festival da Canção, quando o conheci nos camarins e logo gostei dele, de seu humor e seu jeito irreverente.
Inteligente e irônico, Raul era atrevido e desconfiado, anárquico e articulado, e engraçadíssimo. Com sua experiência com artistas populares e seu espírito rebelde e inovador, Raul, pós-tropicalista, somava a tradição ao futuro e quando gravou seu terceiro Lp, com músicas sensacionais como “Al Capone” e “Mosca na sopa”, lançou também um talentoso letrista, de alma roqueira e língua afiada: Paulo Coelho. “Ei, Al Capone, vê se te emenda Já sabem do seu furo, nego No Imposto de Renda. Ei, Al Capone, vê se te orienta Assim desta maneira, nego Chicago não aguenta Ei, Júlio Cesar, vê se não vai ao Senado Já sabem do teu plano para controlar o Estado. Ei, Lampião, dá no pé, desapareça Pois eles vão à feira exibir tua cabeça...” Paulo conheceu Raul quando editava com um amigo uma revista
hippie underground, a 2001, e num fim de tarde recebeu a visita de um de seus raros leitores. De cabelos curtos, terno e gravata, óculos de grau, Raul se apresentou como um produtor da gravadora CBS, apaixonado por discos voadores. O artigo que o tinha interessado e levado à “redação” em busca de mais informações era assinado por Augusto Figueiredo, que não existia, era um dos inúmeros pseudônimos que Paulo e seu amigo usavam para a infinidade de “colaboradores” da revista. Em seu augusto nome, Paulo deu novas informações a um tímido e interessado Raul, que se entusiasmou e acabou convidando-o para jantar em sua casa para continuar a conversa. Com fome, Paulo aceitou. Mas estava menos interessado em discos voadores do que nos discos da CBS, de quem esperava conseguir um anúncio para a sua revista, por intermédio de Raul.
Raul tinha 25 anos e morava num apartamento pequeno e bem arrumadinho em Copacabana, que para os padrões hippies de Paulo era luxuoso. Era casado com Edith, uma americana filha de um pastor protestante, seu professor de inglês na Bahia. Na CBS, Raul produzia discos de artistas populares, trabalhava duro, ganhava dinheiro, tinha carteira assinada. Depois do jantar, Raul levou Paulo ao seu “estúdio”, o quarto de empregada, e cantou com o violão algumas de suas músicas, entre elas “Mosca na sopa” e “Let Me Sing”. Completamente alheio ao mundo da música, Paulo não se impressionou. Só uma delas chamou sua atenção, uma balada romântica que dizia “o teu sorriso me acordou mais do que mil manhãs”. Paulo adorou, pediu para Raul repetir várias vezes. Mas Raul, que via Paulo como um intelectual e um místico, dizia que não sabia fazer letras e convidou-o para ser seu parceiro. Paulo, que via Raul como um próspero profissional, ficou animado mas não aceitou, porque também não sabia. Raul insistiu, Paulo ficou de tentar. Alguns dias depois, Raul recebeu uma “letra” de Paulo para musicar: um longo e assimétrico bestialógico hippie, absolutamente imprestável. Mas Raul insistiu, pediu outra, mais curta e mais ritmada, mais sonora. Sugeriu que se encontrassem e fizessem juntos, música e letra. E fizeram “Al Capone”. E depois “Rockixe”, uma tentativa de misturar rock com maxixe, na seqüência do que Raul já tinha feito com o candomblé em “Mosca na sopa”. Com Paulo, Raul se iniciava no mundo esotérico e no misticismo; com Raul, Paulo aprendia a fazer letra de música e entrava de cabeça no show business. Uma dupla do barulho.
Separado da filha do pastor, Raul casou-se com outra americana, Gloria Vaquer, irmã de seu guitarrista, deixou crescer a barba e o cabelo e mudou-se para um apartamento no Jardim de Alah, onde nasceu sua filha Scarlet. Lá fui visitá-lo muitas vezes, me diverti muito com suas histórias, suas mentiras, sua maledicência, sua megalomania, cheias de humor e auto-ironia. Com alma de farsante e fervilhante criatividade, Raul fazia músicas e planos a granel, teorizava com Paulo as bases de uma “Sociedade Alternativa”, uma radicalização hippie, mais politizada e mais libertária, que em plena e feroz ditadura tinha como lema “Fazes o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. No apartamento do Jardim de Alah, muitas vezes eu ficava tão fascinado pelo talento e as performances de Raul que o elogiava com entusiasmo de corpo presente. Ele encabulava e parecia se sentir meio incomodado, meio constrangido por ser levado a sério, e aí gostava de repetir: “Olha aqui, Nelsówsky, eu não sou um cantor nem um compositor, eu sou um ator fazendo esses papéis.” Dava uma pausa e completava, com sotaque baiano: “Eu sou é um magro abusado.”
Além disso, era uma metamorfose ambulante, como cantava em uma de suas primeiras e melhores músicas: “Quero dizer agora o oposto do que eu disse antes prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...” No final de 1972, a Philips era a TV Globo (ou a velha Record dos musicais) das gravadoras. Nosso anúncio de fim de ano, imenso nos jornais e revistas, foi afrontoso à concorrência: todos os nossos artistas reunidos numa foto e a frase provocativa: “Só nos falta o Roberto.” Era (quase) verdade: todos os grandes, menos “Ele”, que era da CBS (e Milton Nascimento, que era da Odeon, e que André fingiu desprezar), eram da Philips: Elis, Nara, Caetano, Gil, Gal, Os Mutantes, Chico, Vinícius, Erasmo, Jorge Ben, Tim Maia, Raul Seixas, Maria Bethânia, Ivan Lins e outros que formavam a “seleção brasileira da música” (no caso, desfalcada de Pelé). Embora Pelé, o próprio, até ele, tivesse gravado na Philips um compacto duplo com Elis Regina, que passou longe do gol. Em dois anos André Midani e seus, como ele chamava, com seu sotaque francês, “mininos” fizeram da Philips a maior gravadora do Brasil.
Mas André queria mais, além do Roberto: queria descobrir a fórmula do sucesso, como um alquimista do disco, queria descobrir os mecanismos e fatores que determinam o sucesso e fracasso de um artista e de suas músicas. Ele, que tinha contratado todos os melhores, queria descobrir o que todos eles tinham em comum, o que os fazia queridos do público, por que eles faziam tanto sucesso. Em conversas com o amigo Paulo Alberto Monteiro de Barros, que tinha voltado do exílio no Chile e assinava como Arthur da Távola uma coluna sobre televisão na Última Hora, André ficou interessadíssimo nas leituras semióticas e teorias junguianas do “inconsciente coletivo”, que Paulo Alberto estava estudando apaixonadamente. Era a peça que faltava: André começava a montar seu laboratório de pesquisa alquímica-musical, para descobrir como se transformava vinil em ouro. Em grande sigilo, além de Paulo Alberto, convidou os jornalistas Zuenir Ventura e João Luiz Albuquerque, o escritor Rubem Fonseca, a jornalista Dorrit Harazin e o analista e pesquisador de mercado Homero Icaza Sanchez, conhecido como o “brujo” das pesquisas de audiência e da estratégia de programação vitoriosa da TV Globo, que não “entendiam” nada de música — mas de gente — e juntou-os comigo e com o principal produtor da Philips, Armando Pittigliani, descobridor de Elis Regina e Jorge Ben, num eclético “Grupo de Trabalho”. O assunto, por todos os motivos, era top secret: as reuniões seriam fora da Philips, na calada da tarde, numa suíte de hotel no Leme e durariam três horas: cada semana um artista da Philips seria entrevistado por nós, contaria “tudo” da sua vida, e na reunião seguinte nós analisaríamos e debateríamos as informações, procurando identificar as relações entre a personalidade, o caráter, as forças e as fragilidades do artista — e as músicas que fazia, os assuntos que escolhia — e o gosto popular. A ideia era encontrar os pontos em comum entre todos aqueles artistas — tão diferentes, com origens e histórias pessoais tão diversas — e o sucesso que faziam: a pedra filosofal da indústria do disco.
Claro que não se encontrou nenhuma “fórmula do sucesso”, mas foram tempos divertidíssimos, em ótima companhia. Ouvindo em “confissões” exclusivas os maiores artistas da música brasileira, batendo papo com gente inteligente e informada, trocando idéias e aprendendo: sobre a música, o mercado e a natureza humana. E sua imprevisibilidade. Mesmo com toda a ajuda da legendária Dra. Nise da Silveira, grande autoridade junguiana, especialista em “inconsciente coletivo”, com quem nos reunimos algumas vezes, não se chegou a nenhuma conclusão. Parecia coisa de maluco, mas como o futuro alquimista de Paulo Coelho, André encontrou um tesouro durante a sua própria procura. Como nenhum outro homem de disco no Brasil, ele passou a dispor de tantas informações e análises sobre os artistas e suas músicas e o mercado musical, que tornou ainda mais eficiente o seu já avassalador marketing, consolidando a Philips como a nº 1 do país.
Numa das reuniões do “Grupo de Trabalho”, Raul Seixas e seu parceiro Paulo Coelho, os dois de barba e óculos escuros, vestindo uma espécie de farda militar caqui, com botas até os joelhos, deram um inesquecível show de talento e farsa, de audácia e competência. A entrevista deles seria diferente, porque antes de começarem a falar sobre suas vidas, Paulo e Raul queriam fazer uma apresentação de suas idéias e planos. Diante do quadro-negro, como um professor, com absoluta fluência e segurança, aparentando total familiaridade com o tema e até com uma certa nonchalance, Paulo explicou em alguns minutos, através de mitos egípcios e persas (que ia escrevendo no quadro-negro), a origem do mundo e da humanidade. E a existência de Deus, naturalmente. Era só o começo.
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