SÉRIE “O CHORO” – “DOS LUGARES ONDE PASSEI” – PARTE V
Por Joaquim Macedo Júnior
Reduto do choro e da feijoada no Guarujá
Para produzir esta série gastei um tempo precioso, que só me trouxe informações e alegria. Foram compromissos daqueles que a gente cumpre com o maior prazer, embora tenha de respeitar todos os rituais, como contatos, agendamentos, encontros e principalmente cumprir horários e saber o momento certo de abordar a matéria-prima da reportagem, o músico e sua sensibilidade.
Disso não tenho do que me queixar: na maioria arrasadora da vezes, fui bem recebido e fiquei à vontade.
Neste texto de hoje, trago o título: ‘Dos Lugares Onde Passei!’ Incluindo aí lugares onde passei antes mesmo de fazer a reportagem.
Doce do Coco (1951), de Jacob do Bandolim, com o próprio
No Tahiti
A escolha do Tahiti como primeiro cenário para minha pesquisa musical – a reportagem – foi ocasional. Coisa de unir o útil ao agradável.
Vontade de devorar uma feijoada com a informação de que ali estaria tocando, ao léu, ou para quem quisesse ouvir amiúde, o grupo de choro ‘Primas & Bordões’, formado por Marcio de Abreu (“Márcio do Cavaco”), o Mauro Alves (“Mauro 7 cordas”) o Toledo (Carlos Toledo, flauta e sax) e Edinho do Pandeiro (Éderson Schmidt), que foi nosso guia e de quem fiz o perfil que ilustra essa reportagem.
O grupo foi fundado nos anos 1960 pelo “Mauro 7 Cordas” – hoje com 80 anos – e o já falecido “Walter do Bandolim”, uma das lendas da Baixada Santista.
“Chora, Genésio”, de São João Del Rey
Como que para consolidar a ideia da pauta, chega no meio da tarde, de repente e de mansinho, mineiramente, uma meia dúzia de pessoas com instrumentos na mão, cavando um espaço para dar uma canja.
Era o “Chora, Genésio”, formado em São João Del Rey, que estava peregrinando pelo Brasil afora e, naquele dia, havia pernoitado no Guarujá. Com a anuência do conjunto principal, que tratou os mineiros com lhaneza e generosidade, o “Chora, Genésio” danou-se a despejar um repertório versátil, do tradicional ao choro moderno, encantando os que ali estavam.
Não me fiz de rogado: aproveitei a conjunção dos astros, digo músicos, e peguei também uma palavrinha de dois integrantes do grupo: “Márcio Luiz 7 Cordas”, natural de São João Del Rey, e Bill Davison, brasiliense por adoção e piauiense de nascimento. Pertencem ainda à trupe Milena Lopes, no pandeiro, e Pablo Araújo, no cavaco. Este um garotão com a cara do David Luiz, da seleção, sendo moreno e – suponho – mais competente.
Eram nômades, músicos de qualidade em busca de oportunidade. Comprei seu CD “Moderno Antiquário” e trocamos e-mails e telefones.
Minha reportagem havia se reforçado com o acaso e dele me servi para enriquecer meu material.
Continuo no Tahiti, como falarei ainda dos outros espaços que vivi. O restaurante é aquele espaço praieiro que todo mundo gosta de frequentar. Dividido em vários setores, salões e áreas menores ou maiores, o cliente fica ali à vontade: perto do som do chorinho; a média distância; a música de fundo; ou simplesmente entrar e sair, depois de se deliciar uma bruta, mas suave, feijoada no ponto para todos os gostos.
Jairo Nobre, que parece ter nascido para o negócio, sabe deixar todo o mundo à vontade e, como bom proprietário, está de “olho no seu gado”. Pratos decorativos com dizeres do restaurante estão pendurados por todos os espaços. O material predominante é a madeira, como pilotis, palhas de coco ao redor e teto com palhas secas de coco. Uma graça! O cheiro da feijoada, combinado com o choro e o burburinho das conversas de tantas mesas faz um ambiente agradável e atraente. Como o esquema é de self-service, cada um pega a parte do brasileiríssimo prato da forma que lhe convém: light ou com todos os ingredientes “pesados” da feijoada completa.
Além de ter posição firme quanto ao gosto musical, Nobre é corintiano, recém-campeão brasileiro, como eu, coisa que já nos aproximou mais ainda e me fidelizou como cliente especial.
Bar do Julinho, Vila Madalena
Foi o mais batalhado, sofrido e novidadeiro lugar que conheci nesse périplo pelo choro e seus integrantes e circunstantes. No caso do “Julinho”, ali na Mourato Coelho, em plena Vila Madalena, o que se apresentou para mim – digo nós, pois a Eva, minha companheira não dispensa “trabalhos dessa natureza” – foi um lugar mix de boteco de segunda, com som de primeira, comida para enganar bebedor, atendimento amador e uma alegria contagiante, que fez até velho chorar e senhora tocar pandeiro.
Fui encontrar com o “Luizinho 7 Cordas” o que informei acima, meu mentor sentimental, teórico e musical, o tradutor do choro para esse desafinado que nem sabe direito o que é um ré menor.
Porém, o bar de Julinho tornou-se mais uma referência de lugar para visitar, nas noites paulistanas, de boa música, petiscos e animação. Adquiri também meu cartão fidelidade com o dono da casa, um bossa-novista de primeira, que executou algumas músicas durante o intervalo dos músicos principais da noite – “Zé Maria, acompanhado de “Luizinho 7 Cordas” e Priscila Amorim.
Como a parada do grupo de samba era também o meu intervalo, aproveitei para pedir ao seiscordista para executar ‘Retrato em Branco e Preto”, uma saliência do repórter que se licencia de seu cargo por um instante e cai na muvuca.
Restabelecida a sequencia natural da noite, voltam Zé Maria, Luizinho e os demais. Como não fosse o Luizinho do choro, que era o que eu pensava ter ido ver, aproveitei bastante para observar o violão de 7 Cordas executado por aquele ‘monstro’. Foi de sambas-enredo a sambas-canção, passando por sambas-choro e grandes sambas tradicionais – coisas como “Alguém me Avisou”, de Ivone Lara, até “Foi um Rio…”, de Paulinho da Viola.
A orquestra, que é o 7 Cordas do Luizinho, apareceu para mim como o pontificado de um rei reinando seu reinado. Ele era aquilo e muito mais que me disseram. Acompanhou o Zé Maria, espécie de Jamelão paulista e magro, puxador de muitas escolas paulistanas como a Unidos do Peruche e a ocasional Priscila Amorim, cantora da noite, bela figura de pessoa, afinadíssima e descendente direta do patrimônio musical e do jeito de Clara Nunes.
Foi um momento de intensa musicalidade e alegria. O prazer como tal, sem culpas, nem horários. Puro hedonismo. Só sincronia: um senhor enorme, parecido com Antônio Maria, de circunsferência alargada, dançava saltitante que nem um Ney Matogrosso, vinte anos atrás. Duas ou três cabrochas (perdoem-me o politicamente incorreto) à disposição de nosso “Antônio Maria”. Que molejo, que suingue, que ritmo alucinante, parece que flutuava com as damas soltas no ar, ao som dos sambas e das marchinhas dos carnavais de outrora.
No Bar do Julinho o que não faltam são figuras. Sim, figuras sem pudores nem pecados, figuras do prazer, pândegos, seja lá o que forem. Alguns, já passados os primeiros ponteiros maiores do relógio da madrugada, já estavam para lá de Teerã ou de Marrakkesh, à escolha do leitor.
O conjunto encerra a apresentação. Estamos entrando pelas duas da manhã. Cumprimentei Luizinho, conferindo minha presença, aludindo para a conversa que já havíamos marcado previamente para o ‘Espaço Uirapuru’, na terça-feira seguinte. Isto era um sábado.
Antes de ir embora, graças ao olhar pontiagudo da águia Eva, percebemos a cantora da noite, um homem que descobrira ser um “7 Cordas” e o “Barão do Pandeiro”, indivíduo atlético, bem apessoado, cor de jambo, que vinha a ser o namorado – ou equivalente – da Priscila, voz de veludo (a mulher cantava canções de Ivone Lara como se estivesse falando, nenhum grito ou som fora do tom).
Estavam do lado de fora, fumavam que nem caiporas. Sentei-me à mesa, apresentei-me e passei a realizar entrevistas, como houvera feito no Guarujá, com o Edinho do Pandeiro e os meninos do “Chora, Genésio”.
Conversamos mais uma meia hora com o “Cleber 7 Cordas”, o “Barão” e a Priscila, que não pouparam elogios a Luizinho. Priscila, a dama da noite, chamou a atenção para um detalhe importante: o “7 Cordas” é um acompanhamento, instrumento que praticamente não sola, mas que pode engolir um show inteiro de um cantor ou de um solista instrumental, se seu executante não tiver a sensibilidade e a capacidade de se imiscuir nos momentos da música onde será harmonioso, mas não será demais. É instrumento perigoso, posto que versátil por demais, pode fazer seu dono se estender além das notas pertinentes.
Foi ali naquela fumaceira danada, quando já tossia a plenos pulmões, que me despedi. Abraços, beijinhos, cartões trocados, e-mails e até facebook. A Patrícia agora me manda toda a sua programação artística, além de postar algumas fotos.
Ah, o malabarista da cintura larga já estava fora, também pitando, aproveitou para nos dar um cartãozinho que informava seu ofício de origem: alugava passeios de bicicleta ou coisa assim. Bem, eu não bebo e não bebi naquela noite, mas a vista embaçada e a cabeça sonorizada podem levar a devaneios. Não vou me arriscar aqui.
‘Entre Amigos’, no Recife-PE
Foi no tradicional “amigos do bode”, que é como chamamos amistosamente o restaurante que serve um dos melhores bodes guisados e assados de Pernambuco, que vi um ótimo Regional de choro.
Lá, a gente se esbalda com o feijão verde, a farinha de mandioca, o arroz, a manteiga de garrafa, e os quitutes mil. Tem algumas filiais, sendo a de Boa Viagem a nossa preferida para almoços familiares no atacado e no varejo.
É espalhado em variados espaços – com ar condicionado, sem ar, com brisa do mar, envidraçado, ao vento, parte mais rústica, self-service ou à la carte, conta, aos fins de semana, com a apresentação de um conjunto afinadíssimo de choro que, para não deixar de ter um sotaque de regionalidade, utiliza-se também do triângulo, além dos tradicionais instrumentos do gênero.
Foi ali que, ainda em fevereiro deste ano, nos refestelamos nas delícias do ‘bode’ e na encantada melodia do chorinho, executando-se Anacleto de Medeiros, Garoto, Canhoto da Paraíba, Valdir Azevedo, Altamiro, Jacob, Déo Rian, Chiquinha, Pixinguinha, João Pernambuco, Radamés Gnatalli, Guerra Peixe, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu, Paulo Moura, Abel Ferreira, entre outros. Ah sim, lá permeia-se o choro, o samba-choro, o samba-canção com a marcha de bloco, música regional tocada durante os carnavais, em grupos de paus e cordas e coro feminino – os conhecidos blocos líricos do Recife. Como são executados com muitos instrumentos em comum – cavaquinho, bandolim, violões – não estaria de todo errado se falássemos em músicas primas ou parentes em sonoridade, melodia e ritmo.
Conhecia Luizinho do Auditório Ibirapuera (Era o “Roda de Choro”):
Roda de Choro
Quando meu irmão Zeca Macedo aqui esteve em julho deste ano, lembro-me que fomos ao Auditório Ibirapuera para assistir a uma apresentação de grupo de choro no foyer daquela sala. Era o “Quarteto Roda de Choro”.
Zeca é músico autodidata, com uma folha de serviços prestados à música pernambucana, composições de gêneros variados, como choro, bossa-nova, frevos e marchas de bloco. Com a marcha “Bloco do Regresso” ganhou prêmio de participação em LP, além de ter gravado CD para o festival “Canta Nordeste”, da Rede Globo, e de ter seu disco autoral “Vida de Boêmio”. Exímio violonista, lida com alguns instrumentos de corda, entre os quais o cavaquinho. É compositor, contando com parcerias importantes com poetas recifenses. Hoje, Zeca, que nunca chegou a ser profissional, resolveu seguir o estudo acadêmico da música e frequenta a Escola Municipal de Artes João Pernambuco, no Recife.
Quando de sua temporada por São Paulo, tratei de levar o mano para alguns shows, entre os quais este do Auditório Ibirapuera. Foi uma grande noite, com choros de primeira linha, com direito a pedidos da plateia. Difícil foi o conjunto conseguir sair do hall do auditório, tantos foram os bis.
Pois bem, remexendo meus papéis, vi o ingresso daquele show. E o quarteto – vejam só -, era formado por Luizinho 7 Cordas, Alexandre Ribeiro, Léo Rodrigues, Milton Mori, considerado um dos maiores cavaquinistas da atualidade, segundo avaliação do pesquisador Ricardo Giufridda.
Esses acasos, encontros inesperados e até coincidências me deixaram muito próximo do choro e me deram um grau de familiaridade importante com a música, de tal forma que posso agora formalizar o meu pensamento de maneira oficial para encaminhar-me ao fim desta reportagem – a minha missão primeira para a revista, em lançamento, “Música Instrumental Brasileira”, da Trampo, de recontar a história do choro e reforçar sua popularidade.
Lendo, estudando, ouvindo e convivendo com o mundo do choro digo é gênero dos mais genuinamente brasileiros, como tem um panteão de fundadores e compositores pouco visto em outras áreas da música considerada nacional.
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