segunda-feira, 4 de julho de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



O percussionista Laudir de Oliveira, que tinha se formado nos tambores do candomblé da periferia carioca, se maravilhava com as possibilidades das múltiplas encruzilhadas de Los Angeles e garantia que um ebó bem-feito, com um cabritinho em cada uma daquelas cinco ou seis pistas sobrepostas, era tiro e queda: “...dá pra derrubar até o Nixon”, concluía ele premonitoriamente. Em Amarillo, a mesma coisa, ginásio abarrotado, show espetacular, palmas e gritos. Com uma diferença: no final do show, ainda que aplaudindo entusiasticamente, o público continuava sentado. Em frente ao piano, Sérgio agradecia os aplausos e, de braços abertos, se curvava e dizia sorridente para o público: “Levanta, putada! Levanta, putada!” Até que eles levantaram. No dia seguinte, voamos para Sacramento, capital da Califórnia, para grande show no ginásio da universidade. À noite, antes do show, passeando pela platéia com alguns músicos, encontramos na primeira fila uma fã ardorosa, que tinha os discos, que esteve em outros shows, que era simpaticíssima, louca por música brasileira. E linda, uma gata californiana morena, que imediatamente acendeu a cobiça dos rapazes e deflagrou intensa disputa por suas atenções.

Simpática com todos, cheia de amor pra dar, ela estava maravilhada por conhecer brasileiros, que faziam aquela música maravilhosa, e os brasileiros loucos por ela. Mas infelizmente para alguns, o dever os chamava ao palco. Quando o show começou, sem concorrência e sentado ao lado da gata na primeira fila, pude explicar-lhe detalhadamente cada grupo, cada música, as peculiaridades e simpatias da alma brasileira, o caráter alegre e festivo, e até mesmo sensual, de nossa gente, a qualidade e variedade de nossa música, de nossa fauna e flora, e no final do show estávamos íntimos. Levei-a aos camarins, apresentei-a a Sérgio e a todo mundo e saí triunfante com a morenaça, sob intensa vaia dos vários pretendentes frustrados.

Na manhã seguinte, quando cheguei, encontrei o pessoal tomando breakfast no hotel e ouvi de novo acusações de golpe baixo e a renovação de pragas rogadas na noite anterior. Subi para o quarto feliz, pensando na noite passada na casa da moça, mas já me sentindo meio culpado: ela era casada, o marido estava no Vietnam. Dois dias depois, já em Los Angeles, onde passaríamos três dias antes de seguir para Seattle, quando fui fazer pipi de manhã, não
consegui. Senti uma dor fortíssima, uma ardência terrível, um entumescimento, não havia dúvida: blenorragia. Telefonei para Sérgio, que riu muito de minha desgraça, me indicou um médico e disse que Flávio me acompanharia. E certamente começou a telefonar para o pessoal para contar a novidade.

O médico me obrigou a telefonar para a moça em Sacramento comunicando a infausta ocorrência e enquanto eu sofria tomando uma injeção de uma dose cavalar de penicilina, Flávio ria e eu pensava como ia encarar a turma: à noite Sérgio me oferecia um jantar no Martoni, em Sunset Boulevard, comemorando meus 24 anos. Grande sucesso popular nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, Sérgio Mendes voltou ao Brasil triunfante, para colher seus louros entre os patrícios. Não mais no Teatro Municipal, mas no Maracanãzinho, em um grande espetáculo promovido pela Shell e transmitido ao vivo pela TV Globo, o pontapé inicial da sua megacampanha promocional como patrocinadora da transmissão dos jogos da Seleção Brasileira na próxima Copa do Mundo. Há um ano a Shell já vinha investindo maciçamente na associação de sua imagem à simpatia e popularidade de Wilson Simonal, em diversos shows, eventos, promoções, comerciais e programas de TV e agora, a um ano da Copa no México, dobrava a parada e apostava tudo em seu contratado.
 
E Simonal não decepcionou: muito pelo contrário, no Maracanãzinho, onde era esperado que somente fizesse as honras da casa e um showzinho de aquecimento da platéia para Sérgio Mendes, esquentou tanto o público que criou um imenso problema: não podia sair do palco. Depois de uma histórica performance, a maior de sua vida, Simonal tinha levado 20 mil pessoas ao delírio, cantando com ele, obedecendo alegremente a todos os seus comandos, se comportando como disciplinados coros de colégio, rindo de suas piadas, exigindo furiosamente que ele continuasse, continuasse sempre, mais-um! maisum! mais-um!, Simonal não conseguia (nem podia, nem queria) sair do palco, Sérgio Mendes cada vez mais nervoso nos bastidores. Naquelas alturas, na histeria em que estava, o público nem se lembrava mais de Sérgio: queria cantar com Simonal, queria ser regido por Simonal. Nos bastidores, os patrocinadores comemoravam. Simonal era mesmo o “algo mais”, o tema da campanha da Shell. Depois de voltar à cena diversas vezes, finalmente Simonal não aguentou e desabou no camarim, com uma crise de choro, taquicardia e falta de ar, começou a gritar por sua mãe e desmaiou. Enquanto corriam em busca de um médico, Sérgio Mendes
entrava no palco com sua força máxima, seus músicos fabulosos, suas gatas com roupas ainda mais sexy, seu som internacional, seus hits planetários. Mas o público gritava furiosamente por Simonal! Simonal! Simonal!

Quando Sérgio tocava a sua versão de “Sá Marina” com Lani e Karen cantando em português, na segunda parte, de surpresa, Simonal voltou à cena, cantando com elas e provocando uma das maiores ovações da história do ginásio. Não havia dúvida: Simonal era o Sérgio Mendes brasileiro. Reencontrei numa festa aquele francês simpático de cabelos cacheados que frequentava as reuniões de bossa nova na casa de meus pais. André Midani tinha passado cinco anos no México dirigindo a gravadora Capitol e estava de volta ao Brasil, agora como presidente da Philips. Estava surpreso — e entusiasmado com a potência e vitalidade da música brasileira, com o tropicalismo, queria conhecer as novas gerações de cantores e compositores, queria criar estrelas.

Fui almoçar com ele no Museu de Arte Moderna. André queria se informar sobre o panorama atual da música e da cultura brasileira, sobre pessoas e nomes, sobre novas idéias e movimentos. Conversamos umas três horas sobre tudo, sobre a efervescência do momento, sobre música e política, arte e comportamento. Recém chegado, André testemunhou eletrizado todo o drama de “É proibido proibir” e apoiou seus artistas Gil e Caetano. E foi além: lançou em disco o histórico e furioso discurso de Caetano aos estudantes. André estava chegando ao Brasil em plena fervura. E era isso que mais o entusiasmava. No fim do almoço, ele me convidou para ser produtor da Philips, a gravadora de Gil e Caetano, de Elis e Jair, de Edu e Nara, de Chico e Bethânia, de Gal e Os Mutantes. Em boa hora. Depois de três meses penosos, a página semanal na Última Hora tinha acabado. Samuel estava assustado. Eu mais ainda. O arrocho político se somou a uma crise econômica, mais uma, do jornal, que entrou em parafuso, com os anunciantes sumindo, salários atrasados e Samuel procurando desesperadamente por compradores, enquanto havia o que vender.

André me convidou para fazer uma coisa que eu nunca tinha feito, que conhecia de longe, do outro lado do balcão, como crítico e jornalista, como compositor: produzir discos. Criar com o artista um conceito para o trabalho, escolher com ele um repertório, músicos, discutir arranjos e ritmos, dirigir as gravações, supervisionar a capa, ajudar no marketing e na promoção, na imagem do artista. Eu estava pronto para começar. Minha primeira produção seria o disco da jovem cantora e compositora Joyce, bonita e talentosa, que conheci na cobertura do “Véio”. Além de seus jovens amigos, discípulos e colaboradores, Samuel, que estava divorciado de Danuza Leão, apreciava a companhia de mulheres bonitas de várias gerações, que encantava e seduzia com seu charme e cavalheirismo. Uma noite na Sucata, nós dois, sentados numa mesa de pista, nos encantamos por uma jovem socialite que dançava sedutoramente à nossa frente. Enquanto ela dançava e sorríamos abundantemente e ela retribuía, Samuel me cochichou que a disputa pela jovem seria como uma metafórica luta de boxe em que um dos lutadores só sabe ganhar por nocaute, eu, e o outro só consegue ganhar por pontos, ele, o veterano “Raposa Prateada”, como o chamávamos entre nós. Vários rounds e drinques e charmes depois a disputa terminou empatada: a moça foi para casa sozinha.



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