Na casa de Samuel, dias depois, conheci outra jovem amiga dele e fiquei fascinado com a beleza de seu rosto anguloso, seu corpo forte, sua voz grave e rouca e seu riso luminoso. Mônica Silveira era uma moça da sociedade carioca, educada na Suíça, personagem das colunas sociais, quatro anos mais velha do que eu. Fiquei louco. Mas antes de enlouquecer completamente, procurei descobrir se havia alguma coisa entre ela e Samuel, porque o clima, pelo menos da parte dele, era meio dúbio. Ela me disse que eram amigos, que tinham
saído juntos algumas vezes. Samuel, apesar de todo o seu espírito liberal, não parecia estar gostando muito dos nossos papos e risos na varanda. Convidei Mônica para ir comigo no dia seguinte visitar Sérgio Mendes, que tinha alugado uma cobertura na Vieira Souto e fazia um
almoço com música para os amigos. Nocaute: dois dias depois estávamos namorando e seis meses depois casando.
Ronaldo e Elis foram meus padrinhos e na véspera nos ofereceram uma festança na sua casa suingue, em black tie. No casamento, na capela da Reitoria da Universidade do Brasil, Dom Hélder Câmara, amigo de meus pais, foi o celebrante. A igreja abarrotada suspirou quando a música começou: acompanhada por um quarteto de cordas regido por Luiz Eça, Joyce solfejou a “Aria para a quarta corda”, de Bach, e em seguida Elis cantou, sem microfone e sem letra, “O cantador”. Não foi só minha mãe que chorou. Na festa, no apartamento de meus pais, na hora de cortar o bolo, todo mundo em volta da mesa começou a pedir em coro a Vinícius para dizer alguma coisa, ele que era especialista. Em casamentos e em dizer coisas. O poeta, já de “pé queimado”, ria e se fingia de difícil. “Fala! Fala! Fala!”, pediam os noivos, pedia a festa. Vinícius levantou a taça e falou, com voz poética: “Que não seja imortal, posto que é chama... mas que seja infinito...”, fez uma pausa dramática e completou,”... enquanto duro!” As gargalhadas explodiram e tocou-se e cantou-se e comeu-se e bebeu-se até o dia clarear.
No dia seguinte, partimos para Lisboa, onde encontramos Caetano, Gil e Guilherme Araújo, que passavam uma temporada na cidade a caminho do exílio em Londres. Eles ficaram dois meses presos no Rio e depois de breve liberdade condicional na Bahia e de um apoteótico show de despedida no Teatro Castro Alves, foram mandados embora: seriam presos se voltassem. Era a primeira vez que os encontrava, desde o show na Sucata. Gil me pareceu muito bem, mais leve, alegre e animado. Caetano nem tanto, parecia mais tristonho, meio murcho. Guilherme animadíssimo, chamando todo mundo de “meu querido” e fazendo pianos. Era divertido ver a reação dos portugueses, em plenas trevas salazaristas, diante das calças estampadas de Caetano descendo o Bairro Alto: “Florzinha! Florzinha!”, gritavam os gajos. E Caetano ria. De Lisboa fomos de avião para o Marrocos, de Rabat cruzamos o deserto à noite num apavorante ônibus cheio de árabes até Tanger, onde atravessamos de barco para a Espanha; de lá fomos para Paris e depois Londres, onde reencontramos Gil e Caetano já instalados com Sandra e Dedé em Chelsea. E também Hélio Oiticica, que tinha acabado de fazer uma mostra de suas instalações na Whitechapell Gallery com extraordinária repercussão crítica. Uma noite Caetano me falou horas seguidas, com grande admiração e emoção, sobre um dos seus personagens favoritos: Jorge Ben. Mônica e eu desembarcamos no Brasil vestidos exatamente iguais, com idênticos conjuntos de calça e camisa e jaqueta, provocando olhares, espantos e risos: a moda unissex estava começando. ; A explosão de sons e cores da “suingueing London” era uma revolução de jovens, de novas roupas e atitudes, de uma nova política de mais liberdade e independência, afrontando cada vez mais as regras do establishment. E o Brasil cada vez mais fechado e sufocante. Como tinha vivido e trabalhado no México, terra dos boleros e das novelas, André Midani viu na popularidade das novelas da TV Globo uma ótima oportunidade para aplicar um bem-sucedido projeto mexicano: discos com as suas trilhas sonoras.
Até então na TV Globo as novelas eram sonorizadas com gravações já existentes, geralmente trilhas de filmes americanos, quase sempre instrumentais, com uma ou outra música cantada. A ideia de André era produzir trilhas criadas especialmente para as novelas, pelos melhores compositores, gravadas pelos cantores mais populares, que eram quase todos do elenco da Philips. A Philips pagaria todos os custos e daria à TV Globo uma participação nas vendas. Foi a proposta que levei a Boni e Walter Clark, depois de vender a ideia para Daniel Filho, diretor das novelas, que era meu amigo, adorava música e ficou entusiasmadíssimo com o projeto. André foi lá e fechou o contrato: era um ótimo negócio para todo mundo, embora, diz a lenda, os royalties da TV Globo fossem de apenas 3% das vendas. De todos na Globo, Daniel Filho, como diretor das novelas, era o mais empolgado com o projeto.
Grande fã de cinema americano, alucinado por musicais, Daniel conhecia muitas trilhas sonoras e sabia da importância que as músicas poderiam ter para enfeitar e modernizar as suas novelas. “Véu de noiva”, escrita por Janete Clair, quebrava o modelo novelão de época, com sheiks, toureiros e ciganos, que tinha predominado no reinado da cubana Glória Magadan, desde o sucesso de “O direito de nascer”. Nomeado por Boni, Daniel tinha tomado o lugar da cubana e queria modernizar as novelas da Globo. Não que fosse muito diferente nos personagens, situações e conflitos clássicos das novelas anteriores, mas “Véu de noiva”, com Regina Duarte e Cláudio Marzo nos papéis principais, era passada em tempo atual, com personagens contemporâneos: ele protagonizava um piloto de Fórmula 1, no vácuo do campeonato mundial de Emerson Fittipaldi. Conversei muito com Daniel sobre a história, ele me deu um briefing dos personagens, falava que tipo de música imaginava para eles, citava exemplos americanos, falava dos pares românticos, dos “temas de amor” indispensáveis. Me pendurei no telefone encomendando músicas, ouvindo dezenas de fitas,
explicando para os compositores que tipo de música precisava, orientando as letras de acordo com o perfil dos personagens, escolhendo intérpretes, gravando no estúdio, produzindo uma trilha sonora de verdade.
Encomendei aos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, que eram dinâmicos e esportivos, um tema de abertura sobre imagens vertiginosas de corridas de Fórmula 1. Era só instrumental, com um grande arranjo de orquestra, e Daniel delirou: parecia um filme! Depois fiquei sabendo que Vinícius e Chico tinham feito uma letra para uma velha canção do violonista Garoto e que Ângela Maria tinha gravado. Uma das minhas promessas era que todas as músicas seriam inéditas. E “Gente humilde” ainda não tinha saído. Daniel adorou, era romântica e sentimental, ideal para ser fundo sonoro de todas as ações do “núcleo pobre” da novela. Para os jovens e ricos, para o par romântico, Antônio Adolfo e Tibério Gaspar produziram “Teletema”, inspirada no tema do filme Um homem e uma mulher, de Francis Lai. Precisávamos também de uma bela música para o personagem “Lúcia”, de Betty Faria, e estava difícil. Foi quando ouvi na Philips a recém-chegada gravação que Caetano tinha feito de “Irene” na Bahia, antes de partir para o exílio. Era sofrida e lindíssima, só com Gil acompanhando no violão, gravada num estudiozinho baiano. Depois Rogério Duprat colocou baixo, bateria e pequenas intervenções de orquestra em São Paulo.
A música era tão boa que não foi difícil convencer Daniel a ligar para Janete Clair e pedir que ela trocasse o nome do personagem de Betty para “Irene”. “Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui, eu não tenho nada, nada, quero ver Irene rir, quero ver Irene dar sua risada.”
Janete topou e a música virou um sucesso. Outras músicas da trilha, como “Gente humilde”, também. “Teletema” foi um dos maiores hits do ano. O disco de “Véu de noiva” vendeu mais de 100 mil cópias em poucos meses, lançou um novo produto, abriu uma poderosa frente de exposição para a música brasileira. Todo mundo queria fazer e cantar músicas para a novela.
Além da qualidade das músicas, o importante era a integração dos temas com os personagens, em diversas versões diferentes da música (triste, alegre, tensa), conforme as situações. Muito do sucesso da trilha e da novela deve-se à utilização intensa que Daniel fazia das músicas como recurso dramático, para ilustrar sonhos e memórias, para sugerir situações, para fazer clima, para encher linguiça, para fazer o povo rir e chorar.
E para vender discos, acrescentaria André. Não só as músicas tocavam abundantemente na novela como a TV Globo, como parte do contrato, ainda veiculava maciçamente comerciais do Lp, que foi um dos mais vendidos do ano e abriu um novo caminho: para o disco e para as novelas. E para a TV Globo. Depois do sucesso das trilhas de “Verão vermelho” (com abertura cantada por Elis Regina), “Irmãos coragem”, “Pigmalião 70” e “Assim na terra como no céu”, terminado o contrato de um ano com a Philips, a TV Globo fez as contas e teve uma ideia: sua própria gravadora.
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