terça-feira, 8 de dezembro de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



A voz é a certeza de que uma pessoa de carne e osso a emite e existe. É uma assinatura. "Fui apresentado a Gal porque ela cantava bem. Não fui conhecer uma pessoa, e sim um canto", disse Caetano Veloso em entrevista ao jornal O Globo(29/11/2011).

Para além daquilo que viria a ser a sua presença redefinidora do corpo feminino em cena, Gal Costa é uma voz - do cóccix à boca - singular e única. Viva e corpórea, a voz nos distrai da obsessiva vigilância platônica, alertando-nos para a unicidade de cada indivíduo.

Como anota Adriana Cavarero, no livro Vozes plurais: "Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes".

Salvo engano, a canção "Autotune autoerótico", de Caetano Veloso, é síntese (e antítese) do disco Recanto (2011). O verso que abre a canção - "Roço a minha voz no meu cabelo" - dá visualidade sonora à capa do disco: o rosto de Gal Costa em close-up e sua voz (assim, meio de lado) "fotografada" no instante exato em que roça o cabelo da cantora. Notas (vocais) e fios (de cabelo) elétricos a serviço do cantar.

Aliás, com Recanto, Gal Costa se recoloca no posto da cantora que corre riscos, experimenta, cria - faz da técnica vocal ruminada pela experiência um aparelho à disposição do cantar. Gal mostra que não basta incorporar ruídos artificiais à canção para fazê-la ter ar contemporâneo. Para andar, o canto necessita das vivências e das lembranças do dono da voz. Como os arranhados (reminiscências de um tempo vivido) - ajustados eletronicamente - da agulha no vinil acompanhando a canção "Recanto escuro", por exemplo.

E é aqui que Gal Costa se redimensiona como intérprete cuja voz tépida (tons mais baixos dos que emitidos nos anos de 1970 e 1980) agora não luta mais (não precisa mais lutar, pois já sabemos que seu nome é Gal) eroticamente contra a estridência de uma guitarra elétrica, mas com a frieza de um equipamento eletrônico que ameaça distorcer (e distorce) sua voz.

São os versos "Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar / pelos caminhos que levam à grande beleza" que melhor representam a tese sustentada pelo disco. E estimulam a análise do processo de descarte da voz perpetrado tanto pela filosofia - de Platão a Derrida -, quanto, supostamente, pelo autotune.

Processador que corrige as performances vocais e instrumentais, o autotune tem servido para disfarçar erros e limitações. No entanto, como "belezas são coisas acesas por dentro" (Mautner), o autotune, de viés, revela que só o cantor - e seus botões de carne e osso - é capaz de pensar que nada "dá socorro no caminho inevitável para a morte" (Gil).

Obviamente, a intenção do sujeito de "Autotune autoerótico" não é execrar o equipamento. Pelo contrário, dizendo quem é o dono de quem, o sujeito faz da máquina um cúmplice na tentativa de significar (dar sentido a) o absurdo da vida. Sem a voz o autotune não se basta para satisfazer a urgência humana de belezas. Por sua vez, sem o autotune a voz (humana, orgânica) não chegaria aos resultados estéticos esperados.

Em "Autotune autoerótico" temos o perfeito equilíbrio entre forma e conteúdo. Tudo aquilo que é cantado por Gal Costa é mostrado sonoramente pela sua voz distorcida, através do uso do equipamento eletrônico.

É deste modo que um verso como "desço a nota até o sol do plexo" pode ser percebido em sua materialidade pelo ouvinte, já que a voz de Gal desce até o ponto mais grave das notas, localizando-se na altura da região do plexo solar, onde está o diafragma: equipamento (autotune) orgânico de sustentação e motor dos ajustes vocais.

O efeito autotune e o efeito orgânico se misturam fundando o efeito especial do ato de cantar. O cantar é maior do seus instrumentos, fura bloqueios e "coisas sagradas permanecem / nem o Demo as pode abalar". Manipulada, ou não, é a voz quem indicia a existência de um indivíduo-cantor.

Borrando fronteiras, ficção e realidade se misturam posto que, como é sabido, a jovem Maria da Graça exercitava a voz nas panelas da mãe, dona Mariah. Autoeroticamente (alter inclusive), o sujeito da canção diz: "Americana global, minha voz na panela lá / Uma lembrança secreta de plena certeza". Só lembra quem pensa. E vice-versa. O sujeito é Gal, é eu, sou eu, é nós.

É na voz vinda de um recanto (eternos relance e renasce) escuro que se alimenta o gesto vocal de Gal Costa: o humano acima (ou junto) dos artificialismos. Ou seja, a voz orgânica (quente) e a voz fria (eletrônica) levam à mesma plural Gal Costa - "instintos e sentidos" - frente ao infindo.

Não sabemos onde termina a voz do sujeito da canção e onde começa a voz (biográfica) de Gal: "O menino é eu, o menino sou eu". Elas se misturam, se autoerotizam e, respondendo à pergunta feita pela voz autotunizada da cantora Cher - "Do you believe in life after love?" -, Gal Costa, com voz também modificada e acompanhada por uma base eletrônica grave e áspera, parece querer dizer que sim, que "as coisas findas, / muito mais que lindas, / essas ficarão" (Drummond), sempre que houver alguém cantando, trazendo a vida na voz e não permitindo que o amor (à vida) se perca.

A voz - "esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim" - de Gal Costa joga/luta eroticamente - atrás, na frente, em cima, em baixo, entre vozes - com as intervenções do autotune a fim de afirmar que "a lembrança secreta de plena beleza" só é possível porque há Gal Costa sustentando tudo, na voz. É nela que tudo dói e canta: e é gozo vital.


***

Autotune autoerótico
(Caetano Veloso)

Roço a minha voz no meu cabelo
Desço a nota até o sol do plexo
Ai, meu amor, me dá, que calor, me beija
Ah, por favor, não vá, por favor, me deixa

Não, o autotune não basta pra fazer o canto andar
Pelos caminhos que levam à grande beleza
Americana global, minha voz na panela lá
Uma lembrança secreta de plena certeza



* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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