Orlando quem?, perguntariam hoje 10 de cada 10 jovens. Publicado no site da Agência Estado, 1995.
Por Sérgio Vaz
Os três CDs da caixa Orlando Silva, O Cantor das Multidões, ajudam, da maneira mais límpida possível, a reafirmar algumas verdades e a destruir mitos que durante muito tempo foram tidos como verdadeiros. Além, naturalmente, de proporcionarem o mais fino prazer a todos as pessoas de ouvidos sensíveis.
A primeira verdade: Orlando Silva é o maior cantor de música popular brasileira de todos os tempos.
Claro, pode-se discordar dessa afirmação por uma questão de gosto pessoal – ou por desconhecimento. Não são muitas as pessoas nascidas na segunda metade deste século que conhecem bem Orlando Silva. Este é sabidamente um país de memória curta, rala, fraca, e muito mais voltado para o que vem das matrizes da indústria cultural, Estados Unidos e Europa, do que para a sua própria história. Além disso, ou até por isso mesmo, muitas das gravações do cantor que se encontravam até agora nas lojas de discos eram posteriores a 1943, fora de sua melhor fase, de seu período de ouro. A caixa lançada há pouco (em 1995, época em que este texto foi escrito) pela BMG-Ariola resolve a questão do desconhecimento. Aí estão agora, disponíveis em CD, 66 das 152 faixas gravadas por Orlando Silva na RCA entre 1935 e 1942, exatamente o seu período de esplendor.
Quanto ao gosto pessoal, esse obviamente não se discute. Mas quem preferir João Gilberto, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento ou qualquer outro, de Francisco Alves a Renato Russo, terá que admitir essa verdade, bastando simplesmente trocar a expressão “o maior” por o mais importante e influente. Até porque esta é a opinião de João Gilberto, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Arrigo Barnabé, para citar só alguns. Caetano e a geração brilhante surgida na década de 60 beberam na fonte João Gilberto, que por sua vez bebeu na fonte Orlando Silva. João o definiu como “o maior cantor do mundo”. Caetano diz que ele é “um dos mais importantes modernizadores do canto popular deste século”. “Depois de Orlando cantando com arranjos de Pixinguinha e Radamés Gnattali, não preciso ouvir mais nada na vida”, diz Paulinho da Viola. “Ele é diferente, inovador, moderno, um cantor cheio de surpresas, um gênio na plena acepção da palavra”, diz Arrigo Barnabé.
A música é o melhor produto brasileiro
Outras verdades que a caixa de Orlando Silva deixa mais claras são as seguintes: a música popular brasileira é o melhor produto do País. E o Brasil é o país que produz, há mais tempo, a mais rica e diversificada música popular do mundo, ao lado apenas dos Estados Unidos, único outro país multi-racial e de dimensões continentais que conseguiu reunir influências, estilos e ritmos das mais diversas culturas, em especial as várias herdadas da África. Nos anos em que a grande música americana tinha Cole Porter, George e Ira Gershwin e Irving Berlin, a brasileira tinha Pixinguinha, Noel Rosa, Benedito Lacerda, Cândido das Neves, Leonel Azevedo e J. Cascata. Nos anos em que a música americana tinha jazz, blues, ragtime, fox, a brasileira tinha samba, samba-canção, valsa, fox, marcha, choro. Lá havia Tommy Dorsey, aqui havia Radamés Gnattali. Assim como, antes ainda, quando lá havia Scott Joplin, aqui havia Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. Não se trata de patriotada, absolutamente. A qualidade, a variedade e a riqueza da música brasileira estão plenamente comprovadas pela sua ampla aceitação mundial, do Japão à França, dos Estados Unidos à Itália. Apesar do fato de a música brasileira ser cantada nesta língua bárbara.
No seu brilhante texto no livreto ilustrado de 42 páginas que acompanha os três CDs da caixa, o jornalista e escritor Ruy Castro diz: “O resto do mundo, naturalmente, não sabia de Orlando – porque ele era um cantor de ritmos exóticos, numa língua ainda mais exótica”. Embora tenha sido, entre 1935 e 1942, “um dos mais perfeitos cantores populares do mundo”. “É só comparar os seus discos dessa fase com os da concorrência internacional do período: Bing Crosby nos Estados Unidos, Al Bowlly na Inglaterra, Charles Trenet na França – cantores que deram nuance e elegância à música popular e silenciaram aqueles tenores e barítonos de opereta que a infestavam”, escreve.
Para destruir definitivamente um mito absurdo
E aí chegamos à questão dos mitos durante muito tempo tidos como verdadeiros. Criou-se, desde o lançamento de Chega de Saudade, o primeiro LP de João Gilberto, em 1959 (ou, para lembrar exatamente do ponto onde a bossa nova começou, desde o lançamento de Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, em 1958, no qual o violão de João já dava o tom em duas faixas), o mito de que a bossa nova dividiu no meio a história da música brasileira. Esse mito foi passado para todas as gerações nascidas na segunda metade do século: o de que, antes da bossa nova, o canto na música brasileira era operístico, grandiloqüente, dó no peito, vozeirão tonitroante se esforçando para passar por cima dos instrumentos, e de que só com a bossa nova aprendeu-se a cantar de um jeito cool, intimista, suave, a voz como parte da orquestra.
O bossa-novista ferrenho Roberto Menescal, bom violonista, autor de bobagens como “O Barquinho” e “Luluzinha Bossa Nova”, é ainda hoje capaz de dizer coisas deste tipo: “Para mim, Orlando Silva e João Gilberto são tão próximos quanto Michael Jackson e ópera. Tenho consciência da importância dessa forma de música, mas ela não me agrada. Nunca compraria um disco desses cantores”.
Esses mitos de que a bossa nova é divisora de águas, de que antes era tudo vozeirão, são a maior bobagem. Nada contra a bossa nova, bem entendido. A bossa nova foi importantíssima, fez a música brasileira dar um gigantesco salto à frente; alargou os horizontes, ultrapassou fronteiras, tornou-se conhecida em termos planetários. Abriu caminho para a geração de Caetano e Chico Buarque, que abriram caminho para tudo o que veio depois. Óbvio, nada contra a bossa nova. Trata-se apenas de reconhecer que tudo é evolução, tudo é processo. Sem essa de divisor de águas.
Como se a música brasileira pré-bossa nova fosse só Vicente Celestino, Carlos Galhardo e Gastão Formenti. Basta lembrar de Mário Reis, Noel Rosa, Lamartine Babo, João de Barro, Almirante, e, depois deles mas antes da bossa nova, Lupicínio Rodrigues, Lúcio Alves e Dick Farney. Sem falar de Chico Alves, que tinha grande voz mas não berrava. Todos eles cantavam com suavidade – e, cada um de sua forma, com suingue, graça, vivacidade, humor, malícia. (Tem toda a lógica o fato de que um dos grupos mais brilhantes, inteligentes e interessantes da música brasileira depois da bossa nova e do tropicalismo, o Rumo, foi procurar na fonte de Noel, Lamartine e contemporâneos a inspiração para seu canto da fala – uma espécie de radicalização do estilo cool.)
Uma impressionante variedade de timbres
E a música brasileira dos anos 30 e 40 tinha Orlando Silva. Ao contrário de Mário Reis e dos compositores-cantores citados no parágrafo anterior, Orlando Silva tinha uma voz grande, ampla – mas preferia a sutileza à potência. É absolutamente impressionante a variedade de timbres entre os quais ele passeia, a maleabilidade da voz que passa dos graves aos agudos com total facilidade – uma facilidade tão grande que parece até que é simples cantar daquela forma.
É impressionante como a voz de Orlando se adapta bem aos diversos estilos das músicas de seu repertório. Ele tem todo o suingue do mundo em, por exemplo, “Dama do Cabaré”, pérola de Noel, ou em “Boêmio”, de Ataulfo Alves, J. Pereira e Orlando Portella; tem o tom certo de melancolia (sem arroubos; sempre sem arroubos) nas valsas, como, por exemplo, “Lágrimas” e “Última Estrofe”, as duas de Cândido das Neves, e a nota exata de respeito à beleza de obras-primas como “Rosa”, de Pixinguinha, “A Última Canção”, de Guilherme A. Pereira, e “Nada Além”, de Custódio Mesquita e Mário Lago. Nesta música, que é uma de suas marcas registradas, ele se permite uma performance de virtuose com boca chiusa– um espetáculo.
Entre as 66 faixas, há pelo menos duas dezenas de clássicos – aquilo que os americanos chamam de standards, canções que passam a fazer parte do repertório básico da cultura de todo um país. Músicas que mesmo os mais jovens reconhecem, no mínimo porque os pais ouviam, tendo por sua vez aprendido a gostar delas com os seus pais; que são regravadas pelos artistas mais jovens, e se eternizam. “Rosa”, por exemplo, virou trilha sonora de novela na voz de Marisa Monte. “Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e José Gonçalves, e “A Primeira Vez”, de Bide e Marçal, são algumas das músicas gravadas por Orlando que estão no repertório de João Gilberto – que aliás, nos últimos 20 anos, pelo menos, tem gravado basicamente músicas dos anos 30 e 40. Alguns sambas e marchas de carnaval não há quem não saiba cantar – como, por exemplo, “Malmequer”, de Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar, “Abre a Janela”, de Roberto Riberti e Arlindo Marques Jr., “Meu Consolo é Você, de Nássara e Roberto Martins, “A Jardineira”, de Benedito Lacerta e Humberto Porto, ou a genial “Alegria”, de Assis Valente, de quem Caetano tomou emprestados os versos “Minha gente era triste, amargurada/ inventou a batucada/ pra deixar de padecer/ Salve o prazer, salve o prazer”
“Carinhoso”, o hino dos bêbados desafinados, ressurge majestosa
Um caso à parte é “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, a primeira das 22 músicas do primeiro CD, e a única que subverte a rigorosa ordem cronológica da data de gravação seguida por todas as demais 65 faixas da caixa. Para qualquer brasileiro de mais de 20 e menos de 60 anos, “Carinhoso” vem associada aos coros desafinados dos bêbados ou amadores que sempre teimam em cantá-la em qualquer reunião de fim de ano, formatura ou simples roda de bar. Pois com Orlando “Carinhoso” ressurge com sua beleza majestosa intacta, e rapidamente nos esquecemos dos coros de bar.
Também é impressionante a quantidade de canções de dor de cotovelo, aquilo que os americanos chamam de torch songs. Vinte e nove das 66 canções falam de amores desfeitos, histórias trágicas, sonhos que terminaram em soluços. Nessas letras surgem aquelas palavras e imagens à la parnasianismo que, a partir de Noel Rosa, a música brasileira desprezou. Estrofe merencória. Eleva o estro. Anjos liriais. Verbenas. Seios alabastrinos. (Mas disco não é cultura? Quem quiser conhecer pode ir ao dicionário. Aprender é bom.)
Fantástico é ver como essas expressões que fariam a felicidade de um Olavo Bilac saem fáceis, fluentes, simples, da boca de uma pessoa que mal se alfabetizou. Orlando fez só o primeiro ano primário, e abandonou a escola para ajudar a mãe no sustento de casa. A história pessoal de Orlando, barra pesada e cheia de tragédias, que já mereceu duas biografias (O Cantor das Multidões, de Jonas Vieira, de 1985, e Nada Além, de Jorge Aguiar, deste ano, 1995), vem bem muito bem contada no texto de Ruy Castro, no livreto que acompanha a caixa.
“Um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores”
Em um texto escrito para o jornal O Globo na semana do lançamento da caixa, Caetano, que já na década de 60 falava da “linha evolutiva” da música brasileira, joga a pá de cal naqueles mitos imbecilizantes nos quais Roberto Menescal ainda acredita. Ele diz: “Ninguém pode entender bem a MPB se não entender a bossa nova; ninguém pode entender a bossa nova sem entender João Gilberto; ninguém pode entender João Gilberto sem ouvir Orlando Silva. (…) Sem dúvida, foi por tê-lo ouvido que João sentiu a responsabilidade de radicalizar: um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores.”
A arte, no entanto, é sempre maior que a indústria que lucra com ela. A RCA Victor, hoje BMG-Ariola, simplesmente não tem mais as fitas master das 152 gravações feitas por Orlando Silva na gravadora, no período áureo de 1935 a 1942. Assim, o som que se ouve nos CDs tem como fonte os velhos discos de 78 rotações; foi feito um tratamento caprichadíssimo, com toda a parafernália da tecnologia moderna, para se obter o som dos CDs – mas a base, os 78 rpm, obviamente não tem a riqueza sonora que teriam as fitas originais de estúdio. Milagre a tecnologia ainda não faz. Os finais das músicas são às vezes abruptos (a chiadeira nos finais dos 78 rpm era um horror, e não haveria jeito de filtrá-la totalmente). Ouvido através de fones, o som fica opaco, sem brilho, sem corpo. Aí aparece a grande diferença entre as duas melhores e mais ricas músicas populares do mundo. Qualquer gravação de Billie Holliday nos anos 30, ou de Bessie Smith nos anos 20, nos chega perfeita em CD.
Apesar desse problema, que de resto a gravadora procurou compensar com um cuidado primeiro-mundista na apresentação da caixa, fica a esperança de que a indústria vasculhe os seus baús (ou os baús dos colecionadores, que tratam a arte melhor que ela) e produza novas caixas. Que venham Chico Alves, Noel Rosa, Carmen Miranda, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga. Para verificarmos de novo que tudo é processo, evolução, e os mais novos felizmente aprendem com os mais velhos. Ou sobretudo para que, simplesmente, seja possível curtir em CD a música brasileira, tão rica e bela pré quanto pós-bossa nova.
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